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Processo n.º 33/04
3ª Secção Rel. Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No presente processo, em que são recorrentes A. e B. e recorrido o Ministério Público, foi proferida a seguinte decisão sumária:
“1. A. e B. recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão de 13 de Março de 200 (fls. 735 e segs.) do Tribunal da Relação de Lisboa que negou provimento a dois recursos interpostos pelos recorrentes de decisões do Tribunal Judicial da Comarca de Almada, proferidas num incidente – pedido de despejo e de reposição da obra no estado anterior – suscitado num processo de ratificação extrajudicial de embargo de obra nova requerido contra o Estado. Por acórdão de 14 de Outubro de 2003 (fls. 787 e segs.), o Supremo Tribunal de Justiça decidiu “negar provimento aos dois agravos e, em consequência, confirma[r] o acórdão recorrido”. Tendo os recorrentes arguido a nulidade deste acórdão, nos termos do requerimento de fls. 807/810, em que concluem que “face aos invocados erros de julgamento, em que se confunde ‘Convite’ com ‘Despacho Final’ e em que se pugna pelo ‘minuto exacto’ em vez de ‘período exacto’ em que o auto de embargo foi feito – raciocínios desproporcionados à Justiça Material – e face às inconstitucionalidades suscitadas das normas dos arts. 666º, 712º e 690º/1/a/b e
690º/2/A do CPC que ofendem, na interpretação dada, o princípio fundamental do artº 20º da Constituição, deve declarar-se a Nulidade do Acórdão ora impugnado”, por acórdão de 20 de Novembro de 2003 (fls. 815), o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu tal arguição. Os recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“Tendo sido notificados, por carta registada de 17.10.03, do ACÓRDÃO proferido em 14.10.03, a fls. , que negou provimento aos dois agravos, E, por carta registada de 25.11.03, do ACÓRDÃO proferido em 20.11.03, a fls.
, que indeferiu a requerida arguição de nulidade apresentada em 30.10.03, a fls.
, Mas não se conformando com as Deliberações em foco, Vêm dos mesmos ARESTOS recorrer para o Venerando Tribunal Constitucional de Lisboa. A interpretação dada às normas dos artsº. 666º, 690º/1/a/b e 690º/a/A e 712º do CPP é inconstitucional, porque viola as garantias da tutela jurisdicional efectiva e a própria jurisprudência fixada para estes casos (Arts. 20º/4/5 e 22º da Constituição e Acórdão 2/2003 – DR, nº 25 – I A Série, de 30 de Janeiro).”
2. O recurso foi admitido no Supremo Tribunal de Justiça (fls. 825). Distribuído o processo no Tribunal Constitucional, o relator proferiu o seguinte despacho:
“No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional os recorrentes não indicam:
- A(s) alínea(s) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional em que se fundamenta o recurso;
- A interpretação normativa dada às normas indicadas, cuja apreciação pretendem; e
- A peça processual em que suscitaram tais questões de inconstitucionalidade. Assim, tendo em conta o disposto no artigo 75º-A, notifique-se os recorrentes para indicarem os elementos em falta – devendo, consoante o fundamento que escolherem ter presente o disposto nos seus nºs. 2, 3 e 4 – com a advertência prevista no nº 5 deste preceito. “ Ao que os recorrentes responderam nos termos do requerimento de fls. 841-851, que passa a ter-se em consideração.
3. Os recorrentes esclarecem que o recurso “é interposto com base nas alíneas b) e g) do n.º1 do artigo 70º da LTC” (fls. 844). Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, de decisões dos tribunais que apliquem norma já anteriormente
julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional, sendo
ónus do recorrente o de identificar a decisão que com anterioridade julgou inconstitucional ou ilegal a norma aplicada pela decisão recorrida (decisão pretexto ou decisão fundamento). Ora, apesar do convite que lhes foi dirigido, os recorrentes apenas identificam o “Acórdão 2/2003 – DR, nº25 – I A Série, de 30 de Janeiro”. Sucede que o acórdão que corresponde a esta identificação (número, data e local de publicação) é um “assento” do Supremo Tribunal de Justiça e não um acórdão do Tribunal Constitucional. Assim, o recurso não pode ser admitido ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo
70º da LTC.
4. E também não pode ser admitido ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º, pelas razões que passamos a elencar.
4.1. Requisito específico de admissibilidade do recurso de constitucionalidade ao abrigo desta alínea é o de que a questão de inconstitucionalidade da norma tenha sido suscitada “durante o processo”. Salvo situações anómalas ou excepcionais, só se satisfaz este requisito quando o recorrente tenha levantado adequadamente a questão de constitucionalidade antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final. Visando os recursos a apreciação de questões decidias e não a apreciação, por parte do tribunal ad quem de questões novas, a questão tem de ser colocada a tempo de o juiz recorrido poder e dever decidi-la. Assim, o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a arguição da sua nulidade não são, em princípio, meio idóneo de suscitação da questão de constitucionalidade. Com efeito, o poder do juiz sobre a matéria da causa esgota-se com a prolação da decisão (artigo 666º do CPC), sendo que a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão, nem a torna obscura ou ambígua (Cfr. acs. nºs
194/87, 670/94,126/95, 366/96, 436/99, 507/99, 674/99 e 155/00). Os recorrentes dizem que as “as inconstitucionalidades/ilegalidades foram suscitadas e ajuizadas nas seguintes peças: a. Nas alegações dos recorrentes apresentadas em Juízo em 2.5.03, a fls. , designadamente nos pontos II. 4, 5, 6; III. Conclusões do 1º Agravo/ Primeira/ Terceira /Quarta; IV. 8; V. Conclusões quanto ao 2º Agravo/ Segunda; b. No acórdão do STJ Lx. de 14.10.03, de fls. , conhecido como o Aresto da
“hora exacta” !!! c. Na arguição de nulidade de 30.10.03, de fls. ; d. No Acórdão do STJ Lx. de 20.11.03 , de fls. ; e e. No requerimento de recurso interposto para o TC em 9.12.03, de fls. .” Ora,
- Escrutinados as alegações dos recorrentes no recurso interposto do Tribunal da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente nos lugares referidos na antecedente alínea a), não se vislumbra nelas a suscitação de qualquer questão de constitucionalidade normativa, mas tão só de erros de aplicação do direito ordinário;
- No requerimento de arguição de nulidades do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (fls. 803 e segs.) os recorrentes já fazem referência à inconstitucionalidade “das normas dos arts. 666º, 712º, 690º/1/a/b e 690º/2/A do CPC que ofendem, na interpretação dada, o princípio fundamental do artº 20º da Constituição”. Porém, independentemente de outras considerações, esse já não é, como acima se referiu, o momento processualmente adequado para suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Aliás, a afirmação dos recorrentes de que o acórdão recorrido “é uma decisão surpresa” (fls.844) não é acompanhada de qualquer esforço demonstrativo de que tenha havido uma situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevista ou inesperada feita pela decisão recorrida relativamente às normas em causa.
- O mesmo vale para o requerimento de interposição do recurso, que é, por natureza, posterior à decisão. Assim, por não ter havido, por banda dos recorrentes, suscitação atempada de qualquer questão de constitucionalidade relativamente às normas que referem, não pode o recurso de constitucionalidade ser admitido
4.2. Se o que antecede não fosse suficiente – e é-o com inteira segurança – acresceria o obstáculo de os recorrentes, nem após o convite, terem procedido à indicação do sentido normativo de que se terá feito aplicação e que têm por inconstitucional. Segundo a jurisprudência firme do Tribunal Constitucional ao questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido (uma dimensão normativa) do preceito, enunciando-o de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição. Os recorrentes mostram, na resposta ao convite que lhes foi dirigido nos termos do artigo 75º-A da LTC, conhecer esta jurisprudência. Mas não procederam em conformidade, limitando-se a remeter para as suas anteriores intervenções processuais onde não se descortina tal enunciação.
5. Por tudo o exposto, ao abrigo do artigo 78º-A da LTC, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar os recorrentes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) unidades de conta.”
Os recorrentes reclamaram para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78º-A da LTC, tecendo considerações das quais, para o fim em causa, apenas interessam as afirmações de que a interpretação do artigo 666º do CPC acolhida pela decisão do STJ constitui uma “decisão surpresa”, de que
“indicaram/enunciaram nas alegações produzidas em 2.5.03, a fls., o sentido/dimensão inconstitucional das normas dos artigos em causa” e de que o recurso deve ser admitido ao abrigo das alíneas b) e c) do nº1 do artigo 70º da LTC.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público responde que a presente reclamação é manifestamente infundada.
2. A reclamação não logra infirmar os fundamentos da decisão reclamada, que integralmente se mantém.
Somente se acrescenta o seguinte:
2.1. No que respeita ao não preenchimento dos pressupostos específicos do recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º, apenas cabe reafirmar, porque só relativamente a esse ponto se surpreende algum esforço argumentativo útil por parte dos recorrentes, que a interpretação e aplicação do artigo 666º do CPC feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, nada tem de inesperado.
A questão nuclear do recurso interposto pelos recorrentes do despacho de 18 de Março de 2002 que fixou o âmbito da prova testemunhal a produzir (nas alegações de recurso para a Relação denominado “1º agravo”) consistia precisamente em saber se o tribunal de 1ª instância exorbitava dos seus poderes de cognição, face ao anterior e sucessivamente decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça (acórdão de 8/2/2000, que mandou ampliar a matéria de facto – fls. 535 e segs.) e pelo Tribunal da Relação de Lisboa (acórdão de
13 de Abril de 2000, que anulou a decisão de 1ª instância, para que se convidassem as partes a apresentar testemunhas e se procedesse, após a respectiva inquirição, à fixação da matéria de facto e decisão – fls. 553 e segs.). Tendo a Relação julgado improcedente esse agravo por considerar que o tribunal de 1º instância “longe de exorbitar funções, se limitou a escrupulosamente cumprir o que os tribunais superiores determinaram” (fls. 743), os recorrentes limitaram-se a sustentar, nas alegações de recurso que interpuseram para o Supremo Tribunal de Justiça, que “ [o] Tribunal da Relação de Lisboa mandou apenas “aferir a amplitude das demolições feitas” e mais nada, sendo certo que também este facto presentemente já se encontra assente nos autos principais, que não podem presentemente ser desfocados com providências velhas, que nada providenciaram ao longo de uma década (artigo 20º, n.ºs. 4 e 5 da Constituição” e que a decisão recorrida “não pode nem aceitar que o Tribunal Judicial de Almada, em sede de ratificação de embargo/excecução esteja patentemente a realizar no processo actos inúteis, em vez de se limitar a elencar os factos assentes, desobedecendo, assim, ao Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça (arts. 137º e 666º do CPC, que consagram o princípio da limitação dos actos e a extinção do poder jurisdicional)” (cfr. conclusões 3ª e 4ª a fls. 779).
Não há, nestas alegações, qualquer questão de constitucionalidade normativa que o Supremo Tribunal de Justiça seja chamado a decidir, mas apenas divergência quanto à interpretação de anteriores decisões judiciais proferidas no processo e
à utilidade de determinados meios de prova.
Ora, o Supremo Tribunal de Justiça ponderou a este propósito que:
“O Supremo Tribunal de Justiça ordenou que o processo voltasse à segunda instância, para ser proferido novo acórdão, sendo possível, pelos mesmos senhores desembargadores, no qual se descrimine a matéria de facto que se julgue provada. E fê-lo porque, para além e não haver discriminação da matéria de facto provada, quer no Acórdão da Relação, quer na decisão da 1ª instância, o auto de embargo judicial padecia de imprecisões factuais, que indica e que precisavam de ser esclarecidas.
Recebido o processo na Relação foi proferido acórdão, onde a determinada altura se diz:
‘Assim, de harmonia com o preceituado no artº 712º n.º 2 do C. P. Civil de 1961, aplicável in causa, há que dar integral cumprimento ao preceituado no artº 420º n.º 2do mesmo diploma legal, completando a prova pericial já efectuada com a audição de testemunhas e decidindo-se em conformidade com a posição assumida pelo S.T.J., no que à interpretação de tal normativo concerne. Destarte, anula-se a decisão proferida, devendo a mesma ser substituída por outra que convide as partes a apresentarem testemunhas, procedendo-se, após, à respectiva inquirição, fixação da matéria de facto e decisão’. Este acórdão transitou em julgado. Neste ponto está o cerne da questão suscitada pelos recorrentes no 1º agravo. Face ao teor das conclusões recursórias é nítido que os agravantes pretendem , tão só, que sejam elencados os factos provados, quer nos embargos, quer na acção principal, sem necessidade de qualquer outro acto processual. Porém, ao deixarem transitar o referido acórdão da Relação, não deixaram margem de manobra ao Sr. Juiz da 1ª Instância. Cumprindo o decidido pelo Tribunal Superior, a que deve obediência, o Sr. Juiz convidou as partes a apresentarem testemunhas, inquiriu-as sobre as questões suscitadas pelo S.T.J. fixou a matéria de facto provada e produziu a subsequente decisão. Nada há, pois, a censurar do decidido a este respeito, quer no despacho do Dr. Juiz ‘a quo’, quer no acórdão recorrido.”
Nesta sequência e perante a ratio decidendi assim expressa, não se vê em que ponto o acórdão recorrido possa constituir “decisão surpresa” na aplicação ou interpretação do artigo 666º do CPC. A questão da delimitação do
âmbito de cognição da matéria de facto pelo juiz de primeira instância em função da interpretação das decisões a que pretendeu dar cumprimento esteve sempre presente na discussão desde a interposição do recurso do despacho de 18 de Março de 2002 para a Relação, nada tendo, nesse aspecto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de inovador.
2.2. Na resposta ao convite que lhes foi formulado, ao abrigo do artigo 75º-A da LTC, os recorrentes disseram [além da alínea b)] que o recurso era interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da mesma Lei. A decisão sumária reclamada considerou que o recurso não era admissível ao abrigo dessa alínea porque os recorrentes invocaram como acórdão fundamento um assento do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do n.º 2 do artigo 437º do Código de Processo Penal (Assento n.º 2/2003, in Diário da República, I Série-A, de 30/1/2003), e não um acórdão anterior do Tribunal Constitucional que tenha julgado inconstitucional (ou ilegal) a norma aplicada pela decisão recorrida. Na reclamação, sem qualquer explicação, invocam a alínea c) do n.º 1 do artigo 70º da LTC para abrir o recurso de constitucionalidade quanto às “normas dos artigos
690º-A, n.º 1, alíneas a) e b), 690º-A, n.º 2 e 712º do CPC”.
Ora, independentemente de outras razões, designadamente a de saber se a convolação do fundamento de recurso seria admissível nesta fase, é manifesto que os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência, seja qual for a natureza (material) que se lhes pretenda atribuir, nunca podem constituir “lei com valor reforçado”. O conceito de lei com valor reforçado da alínea a) do n.º 2 do artigo 280º da Constituição e da alínea c) do n.º 1 do artigo 70º da LTC – que anteriormente poderia prestar-se a dúvidas ou exigir um esforço de identificação (cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª edição, pág.
1022), mas nunca ao ponto de incluir actos normativos diversos das leis da Assembleia da República – passou a ser dado, após a 4ª revisão constitucional
(Lei Constitucional n.º 1/97), pelo n.º 3 do artigo 113º da Constituição, que dispõe que têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas. É óbvio que o referido acórdão nem é lei (formal: acto legislativo emanado da Assembleia da República), nem tem valor paramétrico
(Aliás, nem sequer no seu domínio específico constitui jurisprudência obrigatória – cfr. artigo 445º do CPP).
3. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação confirmando-se a decisão de não conhecimento do objecto do recurso, e condenar os recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 4 de Maio de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida