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Processo n.º 747/00
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. No âmbito de um processo disciplinar autuado em 1992, o Conselho Permanente do Conselho Superior da Magistratura aplicou ao ora recorrente, A., em 12 de Maio de 1994, a pena de demissão. Esta pena foi confirmada, por acórdão de 17 de Janeiro de 1995, pelo Plenário daquele Conselho.
2. Inconformado, veio o ora recorrente, através do seu mandatário, interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em que concluía que a deliberação que aplicou a pena de demissão deveria ser revogada ou, subsidiariamente, que a pena de demissão deveria ser substituída pela de exoneração. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 5 de Dezembro de 1995, decidiu negar provimento ao recurso, “no que toca ao pedido principal que aplicou ao recorrente a pena de demissão, mas concede[r] provimento ao mesmo, quanto ao pedido subsidiário, e, em consequência, substitui[r] a pena de demissão pela pena de exoneração”. Na parte ora relevante, escudou-se aquele Tribunal na seguinte fundamentação:
“[...] F) Inconstitucionalidade do artigo 95º n.º 1 da Lei 21/85 O recorrente invocou a inconstitucionalidade deste preceito legal “ao não densificar minimamente os conceitos de incapacidade de adaptação às exigências da função ou inaptidão profissional”, na medida em que atribui ao C.S.M., órgão da Administração um poder discricionário ou de interpretação desses conceitos indeterminados, o qual não é compatível com o sentido dos artigos 18º n.º 1
(força jurídica dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos fundamentais), 53º (segurança do emprego) e 114º (separação e interdependência de poderes) da Constituição da República Portuguesa. Quanto a isto, em primeiro lugar, importa dizer que o direito à segurança do emprego não é um direito absoluto, porquanto só são proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos e acontece que existe justa causa de despedimento quando se verificam os pressupostos a que este artigo 95º faz corresponder a pena de demissão. Por outro lado, a Administração Pública, ao precisar o sentido e o alcance dos conceitos vagos indeterminados, através da interpretação dos textos legais em que eles se inserem, não actua no exercício de um poder discricionário mas sim no exercício de um poder vinculado e isto porque a Administração não pode escolher, de entre várias, a interpretação que entender, mas apenas a interpretação legalmente correcta (Dr. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. II, 129, 132, 133, 134 e 165). Tanto basta para, sem ponta de dúvida, afastar a apontada inconstitucionalidade. G) Impossibilidade de subsunção ao artigo 95º n.º 1 als. a) e c) da Lei 21/85. Segundo o recorrente, seria impossível subsumir ao preceito referido a conduta dele, porque esse preceito não contém elementos densificadores dos conceitos de
“incapacidade de adaptação às exigências da função” ou de “inaptidão profissional e, assim, a subsunção seria uma operação arbitrária e não controlada por parâmetros jurídicos objectivos e violaria o princípio da proporcionalidade”. Já dissemos que a Administração Pública, ao interpretar o alcance dos conceitos vagos e indeterminados inseridos nas leis, actua no exercício de um poder vinculado, não pratica, portanto, uma operação arbitrária e não controlada objectivamente, e tanto assim é que essa actividade da Administração está sujeita ao controlo dos tribunais através do recurso contencioso. A inserção nas leis de conceitos indeterminados é a consequência inelutável da impossibilidade de prever todas as hipóteses geradas na vida social e sem dúvida que pode redundar em quebra da objectividade e da uniformidade das decisões. Mas cabe à jurisprudência fazer a adaptação desses conceitos indeterminados às circunstâncias concretas da vida, numa actuação valorativa, embora sempre
“dentro dos limites da necessária objectividade decorrente da obediência do juiz
à lei “. (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ed. de 1973, 67 e ss.). E o que vale para o juiz vale para a Administração Pública, porque esta, como já se disse, ao interpretar os conceitos indeterminados, não age no exercício de um poder discricionário mas no exercício de um poder vinculado e por isso a sua interpretação tem de ser conforme à lei. E não foi violado o princípio da proporcionalidade”.[...]
3. Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“[...], notificado [...] da aclaração ao Acórdão de fls. 256 a 289 do processo à margem identificado vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 70º, n.º 1, alínea b) e 75º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com fundamento em inconstitucionalidade:
- do Acórdão, na parte em que viola o princípio do non bis in idem consagrado no n.º 1 do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro e no n.º 5 do artigo 29º da Constituição (vício invocado na petição do recurso contencioso);
- da norma do n.º 1 do artigo 95º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º
21/85, de 30 de Julho), por incompatibilidade com o sentido dos artigos 18º, n.º
1, 53º e 114º, n.º 1, da Constituição (vício invocado na petição de recurso contencioso);
- da norma do n.º 1 do artigo 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, por violação do n.º 3 do artigo 214º da Constituição;
- da reforma do acto administrativo, feita a fls. ... do acórdão recorrido, aplicando implicitamente os artigos 120º, 137º e 142º do Código de Procedimento Administrativo, em violação ao artigo 114º da Constituição”.
4. Após várias vicissitudes processuais, que se descrevem detalhadamente no Acórdão n.º 471/2004 (fls. 992 a 1009), proferiu o Relator do processo no Tribunal Constitucional, em 15 de Setembro de 2003, o seguinte despacho:
“[...] Como se refere no requerimento de fls. 350, apresentado pelo Recorrente, o recurso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Dezembro de 1995, interposto para este Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, tem como fundamento a inconstitucionalidade:
“- do Acórdão, na parte em que viola o princípio do non bis in idem consagrado no n.º 1 do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro e no n.º 5 do artigo 29º da Constituição (vício invocado na petição do recurso contencioso);
- da norma do n.º 1 do artigo 95º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º
21/85, de 30 de Julho), por incompatibilidade com o sentido dos artigos 18º, n.º
1, 53º e 114º, n.º 1, da Constituição (vício invocado na petição de recurso contencioso);
- da norma do n.º 1 do artigo 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, por violação do n.º 3 do artigo 214º da Constituição;
- da reforma do acto administrativo, feita a fls. ... do acórdão recorrido, aplicando implicitamente os artigos 120º, 137º e 142º do Código de Procedimento Administrativo, em violação ao artigo 114º da Constituição”. Assim, por um lado, invoca-se e pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, “na parte em que viola o princípio do non bis in idem”, bem como da reforma do acto administrativo, alegadamente
“feita a fls. ... do acórdão recorrido”. Acontece, porém, que é jurisprudência pacífica, uniforme e constante deste Tribunal Constitucional - repetidamente explicitada em múltiplas decisões (cfr. por exemplo, para referir apenas alguns mais recentes, os Acórdãos, 55/2003, 143/03 e 223/03, todos disponíveis na página Internet deste Tribunal Constitucional, no endereço
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm) - que o recurso de constitucionalidade não pode ter por objecto uma eventual inconstitucionalidade da decisão judicial – entendida enquanto acto de aplicação do direito –, mas apenas de normas que nela hajam sido aplicadas como ratio decidendi. Ora, como resulta manifestamente dos autos e, concretamente, do próprio requerimento de interposição do recurso, é do acto de aplicação do direito, que, em relação a estas duas questões, o recorrente pretende recorrer para este Tribunal, pelo que delas se não poderá conhecer. Por outro lado, pretende também o Recorrente que seja apreciada a inconstitucionalidade “da norma do n.º 1 do artigo 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, por violação do n.º 3 do artigo 214º da Constituição”. Sucede, todavia, que, não só tal questão não foi suscitada no âmbito do recurso que deu origem à decisão ora recorrida, mas também que, já neste mesmo processo, foi tal questão objecto de decisão deste Tribunal Constitucional, o qual, no Acórdão 373/99, de 22 de Junho, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais. Daí que, em relação a esta questão, exista, nos termos do n.º 1 do artigo 80º da LTC, caso julgado no processo, não podendo o Tribunal voltar a pronunciar-se. Assim sendo, não se conhecerá do presente recurso no que se refere às questões atrás identificadas, ficando assim delimitado o seu objecto, o qual fica circunscrito à apreciação da constitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 95º da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais). Com esta delimitação, notifique-se para alegações.”
5. A este despacho segue-se nova série de sucessivos pedidos de escusa dos patronos nomeados para exercer o patrocínio do recorrente, que culminam com a prolação, em 29 de Junho de 2004, do já referido Acórdão n.º 471/2004, que nomeia, para esse efeito, o Senhor Advogado Dr. B..
6. Por parte do recorrente são, então, apresentadas alegações, em que se pede a declaração de inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 95º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, concluindo da seguinte forma:
“O Direito à Segurança no Emprego (53° CRP) é um direito fundamental dos trabalhadores aplicável, em função da noção constitucional de trabalhador, aos funcionários da Administração Pública e, por identidade de razão, aos magistrados. O conteúdo essencial desse direito protege o trabalhador da cessação do vínculo laboral por força de decisão discricionária da entidade empregadora, configurando-se a pena de demissão como uma restrição a esse conteúdo essencial, sempre que seja efectuada sem justa causa. Esta proibição constitucional vincula directamente as entidades públicas e privadas por força do 18°/1 CRP, estando por isso as restrições neste campo sujeitas a apertados requisitos que, quando não respeitados, viciam a norma de inconstitucionalidade. O artigo 95°/1 do EMJ contém nas suas alíneas a) e c) conceitos indeterminados que põem em causa o preenchimento destes requisitos, já que são dotados de uma grande imprecisão e vacuidade, numa matéria em que é constitucionalmente exigível uma interpretação o mais vinculada à lei possível. O requisito referente ao controlo das prognoses não é respeitado na medida em que o caso concreto demonstrou que a norma permite que a restrição não tenha em linha de conta a subsistência, no futuro, das razões invocadas como ultima ratio do despedimento. Os requisitos garantia de um procedimento justo e respeito pelo princípio da proporcionalidade não foram respeitados na medida em que a norma em causa permitiu e continua a permitir que não se verifiquem as necessárias exigências materiais e procedimentais que reduzam a um mínimo aceitável a margem de discricionariedade da decisão de aplicação da pena de demissão.
É assim também violado o requisito interno deste direito fundamental, dado que a restrição em causa não respeita o conteúdo essencial do preceito constitucional analisado, operando na prática uma restrição que só pode ser objecto de regulamentação legislativa. Ao fazê-lo, a Administração viola também o princípio da separação de poderes
(114° CRP) dado que exerce poderes criativos numa área onde toda a criação cabe
à lei”.
7. O Conselho Superior de Magistratura, ora recorrido, por seu turno, contra-alegou do seguinte modo:
“O objecto do recurso de constitucionalidade encontra-se circunscrito à questão da inconstitucionalidade do art. 95º, n.º 1, do EMJ, por incompatibilidade com os arts. 18º, n.º 1, 53º e 114° da Constituição.
1. Nos termos do art. 95°, n° 1, do EMJ, as penas disciplinares de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis quando o magistrado judicial: a) Revele definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função; b) Revele falta de honestidade ou tenha conduta imoral ou desonrosa; c) Revele inaptidão profissional; d) Tenha sido condenado por crime praticado com flagrante e abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres a ela inerentes.
2. No caso concreto, a pena disciplinar de demissão foi aplicada ao recorrente com fundamento na ausência de condições mínimas para o exercício de funções na magistratura judicial, decisão que pelo Supremo Tribunal de Justiça foi alterada para a de exoneração, por se ter considerado não comprovada a impossibilidade de permanência na função pública.
3. As decisões referidas deixam claro que o recorrente não possui as condições mínimas exigíveis (necessariamente avaliadas com rigor} para o exercício de um cargo tão responsabilizante como o de magistrado judicial.
4. A análise das suas prestações profissionais, verificadas mediante processos de inspecção que conduziram à classificação de Medíocre, não permitem hesitar que alguém com as suas características e com os resultados demonstrados ao longo da sua carreira não pode continuar no exercício de tais funções na área da administração da justiça.
5. A formulação normativa constante do art. 95° do EMJ, conquanto não dispense, da parte do órgão de disciplina que é o Conselho Superior da Magistratura, uma determinada actividade interpretativa e integradora, contém os parâmetros que, como suficiente objectividade, permitem a justa e ponderada integração das situações abstractamente visadas.
6. A sua leitura isolada ou em articulação com os preceitos constitucionais não deve ser descontextualizada.
7. A sua colocação sistemática revela que as sanções previstas se aplicam (e apenas devem aplicar-se) às infracções de maior gravidade relativa, reservando-se para outras que vêm suficientemente densificadas nas normas antecedentes a aplicação de sanções menos severas.
8. Confrontado com determinadas situações que se traduzam em infracções de natureza disciplinar, cumpre ao Conselho Superior da Magistratura a qualificação jurídica dos factos e a determinação da pena que mais se ajustar à situação, tarefa em que devem ser ponderados tanto o princípio da tipicidade como o da proporcionalidade que aflora nos arts. 96° e 97° do EMJ.
9. A atendibilidade de tais princípios, com ponderação do escalonamento das penas e da respectiva moldura geral abstracta, fornece suficientes parâmetros objectivos.
10. Daí que as penas mais graves de exoneração ou de aposentação compulsiva sejam reservadas para situações, como a do recorrente, em que análise das infracções cometidas, integradas no percurso profissional; permita concluir pela ausência das condições básicas para o desempenho de funções na magistratura judicial.
11. Acresce ainda que, por via do Estatuto em que se integra a norma impugnada, os magistrados judiciais, no desempenho das suas funções, estão sujeitos à actividade inspectiva a que se sucede a atribuição de uma classificação dentro dos cinco escalões que constam do art. 33° do EMJ, sendo que a classificação mais baixa corresponde ao Medíocre.
12. É tal a carga negativa associada a essa classificação atribuída no culminar do processo de inspecção e de avaliação do serviço prestado que a mesma implica legalmente a suspensão de exercício de funções e a instauração de processo disciplinar por inaptidão para esse exercício, nos termos do art. 34°, n° 2, do EMJ.
13. Contra o alegado pelo recorrente, deve afirmar-se que tal como está construído o sistema jurídico-disciplinar, quer nos seus aspectos de ordem substantiva, quer de ordem adjectiva, está erradicada da actuação do Conselho Superior da Magistratura uma actuação pautada pela discricionariedade, que conduza a perdas arbitrárias de postos de trabalho, contrariando o disposto no art. 53° da CRP .
14. Ao invés, tal como ocorre com os trabalhadores do regime geral, pode afirmar-se que a medida disciplinar que, ao nível do EMJ, equivale ao despedimento com justa causa, é o corolário de actuações que traduzem uma indiscutível violação grave de deveres funcionais, sendo que o elenco e densificação normativa se mostram suficientes.
15. Densificação essa que a respeito de um dos segmentos normativos do art. 95°, n° 1, al. b), do EMJ, já foi afirmada pelo Tribunal. Constitucional, no Acórdão n° 384/2003 (Proc. n° 40/2003), de 15-7-03, publicado no D.R., II Série, de
30-1-04).
16. Nesse mesmo acórdão se sustentou a doutrina de que 'a regra da tipicidade das infracções, corolário do princípio da legalidade ... só vale, qua tale, no domínio do direito penal, pois que nos demais ramos do direito público sancionatório (maxime no domínio do direito disciplinar), as exigências da tipicidade fazem-se sentir em menor grau: as infracções não têm aí de ser inteiramente tipificadas'.
17. Acrescenta-se na referida fundamentação que basta que as normas jurídico-disciplinares contenham “um mínimo de determinabilidade', revestindo
'um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos capazes de induzir a inflicção dessa espécie de penas'.
18. Para negar, em concreto a reclamada inconstitucionalidade se afirmou no mesmo aresto a conformidade constitucional de formulações normativas de direito ordinário que recorram a 'conceitos indeterminados', negando para tais situações a 'ausência de critérios de decisão ou a insindicabilidade judicial desses critérios', pois que a 'lei confere ao aplicador do direito uma certa margem de manobra no preenchimento desses critérios, precisamente porque reconhece que é impossível elencar exaustivamente...”.
19. Com directa aplicação ao caso concreto, poderia concluir-se, como no Acórdão n° 481/2001, também citado naquele, quando conclui que 'não falta, pois, às normas em causa aquele mínimo de determinabilidade que as faria incorrer em violação do princípio invocado no Acórdão recorrido, sendo certo que a caracterização do ilícito disciplinar, de modo a desejavelmente poder abranger uma multiplicidade de condutas censuráveis, exige, por vezes, o uso de conceitos indeterminados na definição do tipo'.
20. A experiência, por um lado, e a análise do caso concreto, pelo outro, revelam, isso sim, que as penas de demissão e de aposentação compulsiva têm sido reservadas para casos-limite, como o do recorrente, em que notoriamente é posta em causa a relação jurídico-administrativa de natureza especial decorrente da integração na magistratura judicial.
21. O recorrente, infelizmente, foi um dos poucos magistrados judiciais a quem se mostrou, até agora, necessária a aplicação de uma medida tão gravosa como a que nestes autos se discute.
22. O seu curriculum profissional revela o acerto de uma tal decisão cuja execução, quando a mesma se tornar definitiva, só pecará por ser tardia, numa altura em que o arguido até já se encontra na situação de aposentado.
23. A actuação do recorrente ao longo deste arrastado processo, na sua vertente jurisdicional, revela bem o seu perfil humano e profissional, acabando por confirmar, em nosso entender, o juízo que anteriormente foi feito a seu respeito e que justificou a aplicação da sanção disciplinar sob impugnação. Face ao exposto, é entendimento deste Conselho Superior da Magistratura que deve julgar-se improcedente a questão de inconstitucionalidade suscitada”.
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
8. Delimitação do objecto do recurso
O presente recurso está circunscrito à apreciação da constitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 95º da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho
(Estatuto dos Magistrados Judiciais). Em rigor, à apreciação das alíneas a) e c) desse mesmo preceito, cuja constitucionalidade vem questionada pelo recorrente e que têm o seguinte teor:
“Artigo 95º Penas de aposentação compulsiva e demissão
1. As penas de aposentação compulsiva e demissão são aplicadas quando o magistrado: a) Revele definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função; b) [...] c) Revele inaptidão profissional; d) [...].
2. [...]”
Entende o recorrente, no essencial, que este preceito legal, ao não densificar suficientemente os conceitos de “definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função” e de “inaptidão profissional”, é inconstitucional, designadamente por violação dos artigos 18º, n.º 1, 53º e 114º, da Constituição, por dessa forma atribuir ao Conselho Superior de Magistratura, órgão da Administração, um poder discricionário na interpretação desses conceitos, incompatível com aqueles preceitos constitucionais. Vejamos.
9. Da alegada inconstitucionalidade das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 95º do Estatuto dos Magistrados Judiciais
9.1. A questão de constitucionalidade que agora vem colocada ao Tribunal Constitucional não é inteiramente nova na jurisprudência deste Tribunal que, sobre questão em tudo idêntica, embora reportada à alínea b) do n.º 1 do artigo
95º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, já se pronunciou, no Acórdão n.º
384/03 (disponível na página Internet do Tribunal, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), no sentido da sua não inconstitucionalidade. Estava, então, em causa a questão de saber se a utilização por essa alínea b) dos conceitos de “falta de honestidade” ou de
“conduta imoral ou desonrosa” - a que o então recorrente apontava a mesma falta de densificação que o ora recorrente aponta aos conceitos de “definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função” e “inaptidão profissional”, utilizados, respectivamente, pelas alíneas a) e c) -, era ou não compatível com a Constituição da República, designadamente com o preceituado nos seus artigos
2º, 18º, n.º 2, 29º, n.º 1, 47º, n.ºs 1 e 2, 53º e 266º n.ºs 1 e 2.
Para concluir pela não inconstitucionalidade da norma que, nesse caso, estava em equação, ponderou o Tribunal Constitucional, nomeadamente o seguinte:
«(...) 9. A tese da inconstitucionalidade sustentada pelo recorrente – relacionada com o “grau de precisão” quanto ao tipo de comportamentos a que se aplicam as normas impugnadas no presente recurso – alicerça-se na doutrina do Tribunal Constitucional constante dos Acórdãos n.º s 666/94, de 14 de Dezembro
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 47, de 24 de Fevereiro do 1995, p. 2235) e 91/01, de 13 de Março (publicado no Diário da República, II Série, n.º 21, de 25 de Janeiro de 2002, p. 1607).
9.1. No primeiro desses acórdãos, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do artigo 23º do Regulamento Disciplinar, aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, podendo ler-se no respectivo texto, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...]
(...) Assim sendo, a norma em causa não fornece à entidade com competência disciplinar um critério de decisão que lhe permita agir com segurança no momento de avaliar este ou aquele comportamento desviante. Do mesmo passo, não possibilita, em termos razoáveis, o controlo judicial das decisões assim tomadas
– o que tudo significa que ela não defende os seus destinatários contra o arbítrio. Ou seja: não contendo um mínimo de delimitação, não cumpre, como devia, a função de garantia. A norma do artigo 23º do Regulamento Disciplinar, aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, viola, pois, o princípio – que se extrai das disposições conjugadas dos artigos 2º, 18º, n.º 2, 29º, n.º 1, 47º, nºs 1 e 2, 53º, e 266º, nºs 1 e 2, da Constituição – segundo o qual as normas de direito disciplinar que prevejam medidas expulsivas (maxime, a pena de demissão) têm que conter um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos a que elas podem aplicar-se.
(...)”. Da leitura do trecho transcrito resulta, com toda a evidência (apesar de o recorrente afirmar o contrário: cfr. fls. 189), que nenhuma analogia existe entre a norma apreciada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 666/94, de 14 de Dezembro, e as normas que constituem o objecto do presente recurso. Enquanto o artigo 23º do mencionado Regulamento Disciplinar de 1913 não continha uma caracterização minimamente precisa dos comportamentos a que se aplicava, as normas que constituem o objecto do presente recurso fornecem critérios de apreciação das condutas susceptíveis de constituírem infracção disciplinar. Assim, o artigo 82º do Estatuto dos Magistrados Judiciais só considera relevantes os actos e omissões da vida pública ou que se repercutam na vida pública do magistrado (de fora ficando, portanto, tudo o que não extravase a vida privada do magistrado) e que, ao mesmo tempo, afectem a imagem digna que a magistratura deve ter. Certamente que o preceito em causa apela a conceitos indeterminados. Mas isso não significa ausência de critérios de decisão ou insindicabilidade judicial desses critérios. Significa apenas que a lei confere ao aplicador do direito uma certa margem de manobra no preenchimento desses critérios, precisamente porque reconhece que é impossível elencar exaustivamente os comportamentos públicos susceptíveis de afrontar a dignidade da magistratura. Uma situação completamente diferente, portanto, daquela sobre a qual versou o citado Acórdão n.º 666/94. Como tal, a doutrina deste acórdão pode ser aplicada ao presente caso, sem que daí decorra qualquer juízo de inconstitucionalidade.
9.2. Relativamente ao segundo acórdão do Tribunal Constitucional apontado pelo recorrente (o Acórdão n.º 91/01, de 13 de Março) – que “julgou inconstitucionais, por violação do princípio que se extrai dos artigos 2º, 18º, n.º 2, 29º, n.º 1, 47º, 53º e 266º da Constituição, a norma constante do artigo
94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho [...], e a que consta do artigo 75º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, [...]”, nele se disse, para o que aqui releva, o seguinte:
«[...] As normas sub iudicio, mandando aplicar a medida de dispensa de serviço a comportamentos que indiciem «notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função» (artigo 94º, n.º 2) – é dizer: a factos que levem «à invocação de falta» de «bom comportamento militar e cívico», de «espírito militar» ou de «aptidão técnico-profissional» – não fornecem, pois, à entidade com competência para aplicar tal medida «um critério de decisão que lhe permita agir com segurança no momento de avaliar este ou aquele comportamento desviante», do mesmo modo que
«não possibilitam, em termos razoáveis, o controlo judicial das decisões assim tomadas – o que tudo significa que não defendem os seus destinatários contra o arbítrio» [...]. Não cumprindo tais normas, em termos razoáveis, a função de garantia, elas são inconstitucionais, por violação do princípio que atrás se indicou.
[...].” As normas sobre as quais recaiu o acórdão acabado de transcrever apresentam certamente mais afinidades com as que constituem o objecto do presente recurso do que aquelas a que se referia o acima mencionado Acórdão n.º 666/94, de 14 de Dezembro. No entanto, continua a não existir analogia entre elas. Enquanto em relação às normas dos artigos 94º da Lei Orgânica da GNR e 75º do Estatuto dos Militares da GNR ainda podia questionar-se se conteriam ou não critérios de decisão precisos
(em suma, o seu carácter determinado ou indeterminado), relativamente às normas cuja apreciação o ora recorrente pretende é evidente que elas restringem o tipo de factos susceptíveis de constituírem infracção disciplinar. Trata-se apenas de factos relacionados com a vida pública do magistrado e que colidem com a imagem de dignidade associada à magistratura: é o que resulta da letra do artigo 82º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e do espírito do artigo 95º, n.º 1, alínea b)
(uma vez que este preceito deve, por razões sistemáticas, articular-se com aqueloutro). Nesta medida, existem claros parâmetros a respeitar aquando da aplicação de uma pena disciplinar e é notória a sua objectividade. Ainda que, como se disse, seja necessário preencher conceitos indeterminados como “vida pública” ou “dignidade indispensável ao exercício da função de magistrado”, a verdade é que são esses e não outros quaisquer conceitos indeterminados a preencher. Não tem, pois, razão o recorrente quando afirma que, face às normas sub judice,
“qualquer acto ou omissão poderá ser considerado incompatível com a dignidade indispensável ao exercício de funções de magistrado, e qualquer facto é susceptível de ser entendido como imoral ou desonroso”. E como a doutrina constante dos acórdãos citados não exige, quanto ao ilícito disciplinar, a discriminação, na lei, dos relevantes comportamentos da vida pública ou dos aspectos nos quais se concretiza a imagem de dignidade da magistratura, antes considerando suficiente a existência de critérios de decisão para a aplicação da sanção, a conclusão quanto às questões ora em apreço só pode ser a da respectiva improcedência, não tendo qualquer razão o recorrente quando invoca tal doutrina em abono da sua tese. De todo o modo, a decisão de inconstitucionalidade constante do citado acórdão n.º 91/01 nunca poderia servir como argumento a favor da tese do recorrente. E isto porque o plenário do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 481/01, de 20 de Novembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 21, de 25 de Janeiro de 2002, p. 1613), “não julgou inconstitucionais as normas dos artigos
94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho [...] e 75º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho
[...], assim afastando a orientação acolhida em secção no acórdão n.º 91/01 e, portanto, a orientação que alegadamente favoreceria o ora recorrente. No Acórdão n.º 481/01, tirado em plenário, em recurso por oposição de julgados, disse o Tribunal Constitucional:
«[...] Não falta, pois, às normas em causa aquele mínimo de determinabilidade que as faria incorrer em violação do princípio invocado no acórdão recorrido
[trata-se do Acórdão n.º 91/01], sendo certo que a caracterização do ilícito disciplinar, de modo a desejavelmente poder abranger uma multiplicidade de condutas censuráveis, exige, por vezes, o uso de conceitos indeterminados na definição do tipo.[...].» Consequentemente, o Tribunal Constitucional não sufragou a tese do Acórdão n.º
91/01 quanto ao juízo de inconstitucionalidade, tendo acolhido o que se decidiu, sobre a mesma matéria, no Acórdão n.º 504/00, que se pronunciara no sentido da não inconstitucionalidade das mesmas normas”.
9.2. Ora, esta jurisprudência, que mantém inteira validade, é inteiramente transponível para os presentes autos. Na verdade, também no presente caso, se pode afirmar, como se fez no referido Acórdão n.º 384/2003, que “certamente que o preceito em causa [agora as alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 95º do Estatuto dos Magistrados Judiciais] apela a conceitos indeterminados. Mas isso não significa ausência de critérios de decisão ou insindicabilidade judicial desses critérios. Significa apenas que a lei confere ao aplicador do direito uma certa margem de manobra no preenchimento desses critérios”, precisamente porque reconhece que é impossível elencar exaustivamente os comportamentos susceptíveis de revelar uma “definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função” ou uma “inaptidão profissional”. Do mesmo modo que se pode afirmar, como se fez, em Plenário, no Acórdão n.º 481/2001, que “não falta, pois, às normas em causa aquele mínimo de determinabilidade que as faria incorrer em violação do princípio invocado [...], sendo certo que a caracterização do ilícito disciplinar, de modo a desejavelmente poder abranger uma multiplicidade de condutas censuráveis, exige, por vezes, o uso de conceitos indeterminados na definição do tipo”. Pelo que também no presente caso se pode concluir não existir qualquer violação de normas ou princípios constitucionais, incluindo os invocados pelo recorrente.
De facto, como resulta da fundamentação transcrita, não há qualquer violação do disposto no artigo 18º da Constituição, nem tão pouco do disposto no seu artigo
53º. Aliás, em relação a este último preceito, sempre se dirá que, verificado que seja um fundamento legítimo - justa causa - para pôr termo a uma relação de emprego, não é sustentável que o disposto nesse artigo possa obstar à cessação dessa relação.
Por último, apenas se acrescenta, porque a questão vem expressamente colocada pelo recorrente, que as razões que então se aduziram, e que agora se reiteram, igualmente afastam a alegada violação do princípio da separação de poderes, consagrado no artigo 111º da Constituição.
Pelo exposto e reiterando igualmente a fundamentação que conduziu ao juízo de não inconstitucionalidade constante do Acórdão n.º 384/2003, há que concluir pela não inconstitucionalidade da norma que constitui o objecto do presente recurso.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se: a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 95º, n.º 1, alíneas a) e c) do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de
30 de Julho; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 20 de Outubro de 2004
Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Rui Manuel Moura Ramos