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Proc. n.º 465/04
3ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Por decisão do Tribunal Administrativo de Círculo do Porto, de 15 de Setembro de 2000, foi decidido conceder provimento a um recurso contencioso de anulação, interposto pela ora recorrida, A., de uma decisão do Vereador da Câmara Municipal de Fafe pela qual foi licenciada a construção de um posto abastecedor de combustíveis.
2. Inconformados com esta decisão dela recorreram o município e os ora recorrentes, B. e C.. A concluir a sua alegação, disseram estes últimos, para o que aqui importa:
“k) não existindo lei a conferir competência às autarquias locais para regulamentar essa matéria, não têm estas competência para uma tal proibição, sob pena de inconstitucionalidade de um tal preceito, no caso o n.º 3 do art. 49° do RPDM, por violação, desde logo, do art. 241° da CR; l) assim, interpretando este n.º 3 do art. 49° no sentido de aí se estabelecer uma tal proibição temos que tal normativo do Regulamento do PDM é inconstitucional”.
3. O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 13 de Janeiro de 2004, negou provimento ao recurso, decisão que fundamentou, no que se refere à alegada inconstitucionalidade do artigo 49º, n.º 3, do PDM de Fafe, nos seguintes termos:
“[...] Entendem os recorrentes que nenhuma disposição legal proíbe a instalação legal de postos de abastecimento, decorrendo mesmo a sua permissão das normas contidas no Despacho SEOP 37-XII publicado no DR II Série (suplemento) de
22-12-92 e no Dec. Lei 246/92, DE 30/10. Daí que, por não haver lei a atribuir competência às autarquias locais para regulamentar estas matérias, o art. 49,3 do PDM a ser interpretado como proibindo tal localização é inconstitucional. A primeira parte do argumento refuta-se com facilidade. A competência atribuída
às autarquias locais reporta-se ao ordenamento do território, e é nessa medida e, com esse âmbito, que devem ser interpretadas as normas do PDM. É apenas a localização de uma actividade no tecido urbano e as repercussões que essa localização projecta a nível de ordenamento do território que o art. 49°, 3 do PDM regula. Nem o Dec. Lei 246/92, de 30 de Outubro que aprova o Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis, nem o Despacho SEOP 37-XII/92, têm regras que impedem, ou se sobrepõem, os poderes das autarquias locais sobre o licenciamento de obras particulares. Pelo contrário do ponto 6.1.2 deste último regulamento diz textualmente que o 'Projecto definitivo será constituído por peças ... devendo, no mínimo, ser instruído com os seguintes elementos: h) declaração de viabilidade da Câmara Municipal”. Torna-se por isso evidente que o licenciamento da actividade não se sobrepõe ao licenciamento da competência da Câmara Municipal. O argumento usado pelos recorrentes, neste aspecto, é extraído do ponto 5.3.1 do mesmo Despacho Regulamentar que dispõe: 'Se se tratar de estradas nacionais desclassificadas .
. . desde que a Câmara Municipal respectiva confirma que a localização se integra em aglomerado urbano e dê parecer favorável ao licenciamento pretendido'. Deste preceito resulta que o referido regulamento, no que respeita a instalação dos postos de venda de combustíveis em 'aglomerado urbano' carece de parecer favorável da Câmara Municipal. É assim da competência da Câmara viabilidade quanto à localização. Ora esta competência da Câmara vai ser exercida de acordo com o PDM se este existir. Mostra-se assim que as normas invocadas pelos recorrentes são claras em atribuir, ou melhor em não subtrair ,
às Câmaras Municipais a competência para permitir, ou não, a localização de um posto de venda de combustíveis em aglomerados urbanos. Será inconstitucional uma regra como a do art. 49°, 3 do PDM proibindo nas áreas urbanas e urbanizáveis a “instalação (...) de depósitos de explosivos e de produtos inflamáveis e outros similares”, por se tratar de matéria de que não pode ser regulada por qualquer regulamento de um autarquia local- art. 241 ° da Constituição. Os recorrentes, quanto a este ponto, limitam-se a invocar a inconstitucionalidade (fls. 229), sem quaisquer desenvolvimentos. O poder regulamentar das autarquias locais é consagrado no art. 242° da Constituição e
[o] Dec. Lei 69/90, de 2 de Março (alterad[o] pelo Dec. Lei [211/92, de 8 de Outubro]), veio regular a elaboração, aprovação e ratificação dos planos municipais de ordenamento do território, abreviadamente designados por planos municipais (art. lº do Dec. Lei 69/90). O PDM de Fafe foi elaborado seguindo a tramitação legal e foi ratificado através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 92/94, de 14 de Julho de 1994, publicada no DR, I Série B, de 27/9/94. Perante a legalidade formal e orgânica do referido PDM e porque o art. 49°, 3 do respectivo Regulamento, se insere em matéria de ordenamento do território, não se vislumbra a violação de regras de competência constitucionalmente impostas.
[...]”.
4. Foi desta decisão que foi interposto o presente recurso, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“[...], nos autos de recurso jurisdicional, à margem referenciados, em que são recorrentes e é recorrida [...], não se conformando com o douto acórdão proferido, dele pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 70º n.º 1 alª b) e n.º 2 e no n.º 2 do art. 72º ambos da Lei n.º 28/82, na redacção das Leis nºs. 85/89 e 13-A/98, e art. 280º da CRP . Na verdade, O acórdão recorrido, de que já não é admissível recurso ordinário, aplicou o normativo constante do art. 49º n.º 3 do PDM de Fafe considerando-o conforme à Constituição da República e aos princípios nela consagrados, o que os recorrentes não aceitam, Pelo que, Suscitaram a inconstitucionalidade de tal artigo 49º nº3, por violação do art.
41º da CRP e princípios na mesma consagrados, na alegação de recurso produzida perante o Supremo Tribunal Administrativo”.
5. Em aditamento a este requerimento apresentaram os recorrentes, em 2 de Fevereiro de 2004, um outro, que dispõe como segue:
“[...], nos autos de recurso jurisdicional, à margem referenciados, em que são recorrentes e é recorrida [...], tendo detectado a existência de um lapso no requerimento ontem remetido a este Tribunal, mui respeitosamente, vêm solicitar a respectiva rectificação, nos termos seguintes: No terceiro parágrafo de tal requerimento diz-se que os recorrentes 'suscitaram a inconstitucionalidade de tal artigo 49º n.º 3, por violação do art. 41º da CRP e princípios na mesma consagrados. Ora, Em primeiro lugar têm de referir que por lapso foi indicado, erradamente, o art.
41ºda CRP, quando verdadeiramente se quis referir o art. 241º da CRP. Além disso, Tendo-se aludido a esse art. 241º e princípios na Constituição consagrados, não se indicaram as normas e/ou princípios violados, pelo que se vem solicitar o devido aditamento, de acordo com o n.º 2 do art. 75º-A da mesma Lei n.º 28/82. Assim: Em primeiro lugar, o citado art. 49º do PDM de Fafe, constituindo uma norma regulamentar não respeita o preceituado no n.º 8 do art. 112º da CRP, assim como não respeita e antes viola o regime constante do Dec.-Lei n.º 246/92, de 30.10, e seu Regulamento, já que, interpretado como o foi no douto acórdão recorrido, contém uma proibição de construção de um posto de abastecimento de combustíveis, proibição que não é consentida em tal decreto-lei e, por isso, excede os limites conferidos por tal diploma; Além disso, E em segundo lugar, o referido PDM de Fafe é inaplicável ao licenciamento em causa uma vez que aquele só entrou em vigor quando já tinha sido reconhecida e certificada a viabilidade da instalação do posto de abastecimento, e a data desta é que determina a legislação aplicável. Por isso, Vem solicitar a V. Ex.ª a rectificação do erro material acima apontado e completar a exigência do n.º 2 do citado art. 75º-A, o que faz por antecipação ao que preceitua o n.º 5 do mesmo art. 75º-A da Lei n.º 28/82”.
6. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso. É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
“Os recorrentes interpõem recurso ao abrigo do disposto no art. 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, questionando a norma contida no artigo 49º, n.º 3, do Plano Director Municipal de Fafe, que, na parte ora relevante, proíbe a instalação, nas áreas urbanas e urbanizáveis, de “depósitos de explosivos e de produtos inflamáveis e outros similares”. Entendem os recorrentes que o preceito do PDM não seria aplicável no caso e que
“não respeita e antes viola o regime constante do Dec-Lei n.º 246/92, de 30.10, e seu Regulamento, já que, interpretado como o foi no douto acórdão recorrido, contém uma proibição de construção de um posto de abastecimento de combustíveis, proibição que não é consentida em tal decreto-lei e, por isso, excede os limites conferidos por tal diploma”. Tal preceito, sempre na perspectiva dos recorrentes, viola ainda o artigo 241º da Constituição, enquanto dispõe que: “as autarquias locais dispõem de poder regulamentar próprio nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar” e, “constituindo uma norma regulamentar[,] não respeita o preceituado no n.º 8 do art. 112º da CRP”. Vejamos se têm razão.
6.1. Quanto à questão de saber se determinado preceito infra-constitucional é ou não aplicável em determinado caso concreto, apenas se dirá que tal questão se não insere nas competências do Tribunal Constitucional. De facto, a este Tribunal apenas cabe apreciar se determinada norma viola a Constituição e não definir se uma dada situação cabe numa certa previsão normativa, pelo que, neste ponto, não é possível conhecer do recurso.
6.2. Quanto à alegada violação do “regime constante do Dec-Lei n.º 246/92, de
30.10, e seu Regulamento”, o vício apontado pelos recorrentes, por assentar na violação de uma lei pelo regulamento, não é de conhecimento deste Tribunal, já que configura um vício de ilegalidade e não uma inconstitucionalidade (cfr., por exemplo, Acórdão n.º 113/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pág. 877 e seguintes). Na verdade, num recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC – aquela que o recorrente invoca no seu requerimento de interposição do recurso - o Tribunal Constitucional apenas conhece de questões de inconstitucionalidade, o que, não é, manifestamente, o caso. Igualmente neste ponto se não pode conhecer do recurso.
6.3. Quanto à alegada violação do artigo 241º da Constituição, também se não pode conhecer do recurso. De facto, como se escreveu no Acórdão n.º 577/96
(publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1996) “esta norma constitucional [limita-se] a estabelecer uma regra de hierarquia, não sendo uma norma directamente repartidora de competências entre órgãos de soberania e
órgãos autárquicos: só se poderia, assim, aqui falar de uma inconstitucionalidade indirecta, resultante da ocorrência da ilegalidade, sendo que é este vício o que aqui preleva para o efeito de se excluir a competência do Tribunal Constitucional (v. cit. Acórdão n.º 113/88)”.
6.4. Finalmente, quanto à alegada violação do artigo 112º, n.º 8, da Constituição, que exige que os regulamentos indiquem “expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão”, manifestamente não têm os recorrentes razão. Na verdade, estando o Plano Director Municipal sujeito a ratificação e a publicação no Diário da República, sem as quais não tem plena eficácia, o PDM de Fafe foi elaborado seguindo a tramitação legal e foi ratificado através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 92/94, de 14 de Julho de 1994, publicada no DR, I Série B, de
27/9/94, na qual se encontram indicados os diplomas ao abrigo dos quais é emitido. Não há, assim, qualquer violação daquela norma, não existindo qualquer inconstitucionalidade formal”.
7. É desta decisão que vem interposta a presente reclamação, que os reclamantes concluem da seguinte forma:
“Assim, e resumindo: Reafirma-se, face a tudo quanto dito fica, que a .requerente-reclamante não pretende com o seu recurso saber se determinado preceito - o art.. 49º n.º 3 do PDM - é ou não aplicável ao caso em apreço, Tal como, Não pretende também que se aprecie e conheça da sua ilegalidade, Mas antes Pretende que se aprecie e se conheça da sua alegada INCONSTITUCIONALIDADE, E esta, Porque em manifesta violação dos arts. 112º e 241º da CRP e dos princípios neles consagrados, conforme a boa doutrina dos acima citados Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira. Além disso, Não pode de modo algum - atribuir-se à Resolução do Conselho de Ministros qualquer força jurídica externa até porque tal é expressamente proibido pelo n.º
6 do referido art. 112º da CRP. Finalmente, O art. 241º da dita CRP ao aludir a regulamentos e poder regulamentar está necessariamente a absorver os conceitos e os princípios que se acham consagrados naquele art.112º da CRP, conceitos e princípios mui doutamente ensinados pelos Ilustres Constitucionalistas Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Mas que, A douta decisão que antecede inteiramente olvidou. Com efeito, Se num diploma legal, como é o caso do revogado Dec.-Lei 246/92 e do vigente Dec.- Lei 302/2001, se estabelece, 'no domínio da construção e exploração das Instalações energéticas a política prosseguida pelo Governo' ...'marcada por fortes preocupações ao nível das garantias de segurança, tendo como escopo principal a salvaguarda dos bens e da qualidade do ambiente', a não proibição da construção de um Posto de Abastecimento de Combustíveis num local como o em causa nos presentes autos, não pode, de modo algum, um simples regulamento administrativo, como é o caso do PDM, estabelecer num seu preceito - o art. 49º n.º 3 – E SOB PENA DE EVIDENTE INCONSTITUCIONALIDADE, uma tal proibição, assim modificando o regime consagrado naquela lei geral - cfr. Profs. Gomes Canotilho. Pelo exposto, E pelo mais que mui doutamente será suprido, deve, em conferência, ser proferido douto acórdão revogando o douto despacho reclamado e pronunciando-se no sentido do conhecimento do objecto do recurso e, consequentemente, a sua respectiva admissão - art. 78º-A n.º5 da lei 28/82”.
8. Notificada, a recorrida nada disse.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
III – Fundamentação
9. Na decisão sumária ora reclamada decidiu o Relator não conhecer do objecto do recurso interposto pelos ora reclamantes ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, em relação às três primeiras questões identificadas naquela decisão, por não estarem reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso ali previsto e negar provimento em relação à quarta questão. Como então se demonstrou a questão da alegada violação do artigo 241º da Constituição colocada pelo recorrentes é de mera ilegalidade – ou, quando muito, de inconstitucionalidade indirecta -, de que não cabe conhecer no contexto de um recurso interposto ao abrigo daquela alínea b).
Com a presente reclamação, os ora reclamantes vêm defender que o Tribunal Constitucional deve conhecer desta questão, conformando-se, todavia, com o restante decidido. Não avançam, porém, apesar das citações que fazem (mas que, todavia, se não referem à questão do conhecimento pelo Tribunal Constitucional), com qualquer argumento realmente novo – isto é, que não tenha sido já ponderado e que não encontre resposta na decisão reclamada - que possa infirmar o sentido daquela decisão. De facto, não questionaram os recorrentes, nem no requerimento de interposição do recurso, nem nas peças processuais relevantes, qualquer violação directa de norma ou princípio constitucional pela norma regulamentar questionada, limitando-se, apenas, a alegar violação dos artigos 112º e 241º da Constituição. Ora, ao fazê-lo, fica demonstrado que, deste modo, apenas suscitaram uma questão de ilegalidade.
Assim sendo, independentemente de qualquer juízo sobre a correcção da interpretação que os recorrentes fazem do disposto no “revogado Dec.-Lei 246/92 e do vigente Dec.-Lei 302/2001”, apenas resta, reiterando as razões constantes da decisão reclamada, que em nada são abaladas pela reclamação apresentada, confirmar o julgamento que ali se formulou no sentido da impossibilidade de conhecer do objecto do recurso.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta. Lisboa, 3 de Junho de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida