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Proc.º n.º 704/2004
3ª Secção Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. O arguido A., condenado que foi em processo que correu seus termos na Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Braga e do qual foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, endereçou ao Juiz daquele Vara requerimento no qual solicitava informação sobre o estado dos autos, invocando que era sua intenção recorrer da eventual decisão tomada por aquele Tribunal de 2ª instância e que não tinha ainda sido contactado, não obstantes os seus constantes esforços nesse sentido, pela sua advogada nomeada oficiosamente.
Tendo o indicado Juiz, por despacho de 20 de Janeiro de
2004, indeferido o requerido, com base na circunstância de o defensor do arguido já ter sido notificado do decidido na Relação de Guimarães, de tal despacho intentou recorrer o dito arguido para a mesma Relação, recurso que não veio a ser admitido por se ter entendido que, tratando-se de um despacho meramente disciplinador da marcha do processo, o mesmo não era passível de impugnação.
Do assim decidido reclamou o arguido para o Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães.
Na peça processual consubstanciadora da reclamação, pode ler-se, no que ora releva:
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3º
Entendeu o Senhor Dr. Juiz da Vara Mista de Braga poder e dever rejeitar recurso, que se pretende e justifica interpor para o Tribunal da Relação, do despacho de 20 de Janeiro de 2004, pelo qual foi indeferido requerimento datado de 12 de Janeiro de 2004, subscrito e dirigido pelo arguido ao processo, como lhe permitido e de direito ao abrigo do disposto no artigo
98º. nº 1, do Código de Processo Penal, para salvaguarda dos seus direitos e garantias fundamentais.
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5º
Para além de a informação sobre o estado do processo a arguido preso se tratar de um direito que lhe está constitucionalmente assegurado, o evidente e comprovado desconhecimento atempado de decisões judiciais que influam na sua situação e sejam passíveis de recurso constitui grave violação dos direitos e garantias elementares de defesa do arguido, por tal resultar em preclusão do direito de recurso que lhe assiste por força da Lei, Constituição da República Portuguesa, Declaração Universal e Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
6º
Pese embora estejamos perante direitos fundamentais, o Meritíssimo Juiz a quo negou informação sobre o estado do processo a arguido preso, por despacho de que se interpôs inevitável e justo recurso para apreciação pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
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12º
Pelo despacho recorrido, a Vara Mista de Braga não só indefere aquilo que é um direito fundamental do arguido preso - conhecimento pessoal sobre o estado do processo, como lhe nega notificação pessoal de sentença, entenda-se decisão judicial que o afecta e é passível de recurso, em violação dos artigos 113º, nº 9, 61º, nº 1, alínea b), 425º, nº 6, do Código de Processo Penal, artigos 20º, nºs 1 e 2, 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, assim como, entre outros, do artigo 5º, nºs 2 e 4 e, visivelmente, da equitatividade prevista e assegurada pelo artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e artigos 8º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
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15º
O Meritíssimo Juiz a quo começa por classificar o despacho recorrido como sendo de mero expediente e, por isso, irrecorrível.
16º
Ora, pelo já exposto resulta claro que se trata de verdadeira decisão sobre direitos fundamentais do arguido no processo e, portanto, nunca um despacho de mero expediente.
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24º
Ou seja, mesmo que se pudesse, que não pode, entender que o despacho em causa é de mero expediente, ainda assim seria recorrível por violar claramente preceitos legais, entre os quais a própria Constituição.
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26º
Do próprio requerimento do arguido (fls 865 dos autos), de cujo indeferimento se recorre, consta expressamente o propósito de salvaguardar os seus direitos e garantias de defesa fundamentais mediante informação sobre o estado do processo, o que coincide no caso concreto com a notificação pessoal, e por si compreensível, de decisões que o arguido ainda desconhecia e aguardava.
27º
Para além de que, em respeito pela própria Constituição, sempre houvesse que informar arguido preso sobre o estado do processo, o que está ainda em causa, justificando plenamente o recurso interposto, é a interpretação que o Meritíssimo Juiz a quo faz da lei, em particular do artigo 113º, nº 9, em harmonia com o artigo 425º, nº 6, ambos do Código de Processo Penal, ao insistir na desnecessidade da notificação pessoal a arguido preso de decisões judiciais relevantes e recorríveis.
28º
Por se nos afigurar profundamente incorrecta, inclusive inconstitucional, tal interpretação da lei processual penal, justifica-se o recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães.
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30º
O que está provado nos autos, como referido no recurso, é que, em violação do artigo 61º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal, artigos
20º e 32º, nº 1 e 3, da Constituição, artigo 6º, nº 3, alíneas b) e c), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assim como, claramente, do Estatuto da Ordem dos Advogados (com participação disciplinar já apresentada pelo arguido), o arguido não estava a ser devidamente assistido, nem sequer contactado foi, pela defensora oficiosa a quem foi notificada a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães.
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37º
A verdade, como se constata nos autos, é que, ao não ser notificado pessoalmente, o arguido não foi de forma alguma notificado da última decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo o requerimento de fls 865, de cujo indeferimento se recorre, prova de que a defensora oficiosa não lhe deu sequer conhecimento, quanto mais de forma esclarecida e atempada, daquela decisão, com a consequente preclusão do direito de recurso.
38º
E mesmo que o tivesse feito, que não fez, sempre deverão os artigos
113º, nº 9 e 425º, nº 6, do Código de Processo Penal ser interpretados e aplicados no sentido da notificação pessoal dessa decisão.
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43º
Está mais uma vez em causa, no processo em apreço, a violação de preceitos legais e inconstitucionais, devidamente identificados no recurso interposto, contrariamente ao que o Meritíssimo Juiz a quo refere na rejeição do mesmo.
.......................................................................................................................................................................................................................................................................................... Em conclusão,
1. O despacho recorrido não é um despacho de mero expediente, pois consiste numa decisão sobre requerimento do arguido tendente a salvaguardar direitos e garantias fundamentais de defesa.
2. Ainda que pudesse considerar-se ser despacho de mero expediente, sempre seria recorrível por estar em causa a violação de preceitos legais e constitucionais, devidamente indicados no recurso interposto - artigos 113º, nº 9, 425º, nº 6,
61º, nº 1, alíneas e) e h) do Código de Processo Penal; artigos 20º nºs 1 e 2,
32º, nºs 1 e 2, 27º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, artigos 5º, nº 2 e 4, e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda 8º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
3. O recurso incide sobre questões legais fundamentais, em concreto, informação sobre o estado do processo a arguido preso que a solicitou e notificação pessoal, entenda-se também compreensível por estrangeiro que não fala português, de decisões que o afectam e de que pode recorrer.
4. Sendo evidente, provada nos autos, a inexistência de assistência jurídica ao longo de todo o processo, ferindo de nulidade insanável actos e fases processuais várias, que, por Lei, deveria e deve ser conhecida oficiosamente, razão nenhuma pode haver para, em indiferença para com o óbvio, se continuar a invocar a defensora oficiosa, ausente e negligente, para dar como cumpridos os direitos processuais do arguido”.
Tendo o Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho de 3 de Maio de 2004, indeferido a reclamação, pois que entendeu tratar-se de um despacho que “se completa numa decisão de mero expediente” fez o arguido apresentar nos autos requerimento, dirigido ao Juiz da já aludida Vara, no qual manifestou a sua intenção de, do despacho de 20 de Janeiro de 2004, recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com vista à apreciação das normas dos “artigos 113º, nº 9, artigo 425º, nº 6, 98º, nº 1, assim como artigos 61º, nº 1, alínea e), e 64º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal”.
O citado Juiz, porém, por despacho de 26 de Março de
2004, «rejeitou» (recte, não admitiu) o recurso, inter alia, por entender que não se verificavam “os requisitos previstos no artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, nomeadamente a aplicação, naquele despacho, de uma norma cuja inconstitucionalidade tivesse sido suscitada”.
É do despacho de não admissão de recurso que, pelo arguido, vem deduzida reclamação para o Tribunal Constitucional.
Ouvido sobre a reclamação o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido de ser
“manifesta a não verificação dos pressupostos em que se baseia a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional”.
Cumpre decidir.
2. O que o reclamante pretende impugnar perante o Tribunal Constitucional é o despacho lavrado pelo Juiz da Vara de Competência Mista do Tribunal de comarca de Braga que indeferiu o pedido de informação solicitado pelo arguido acerca do que teria sido decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães num recurso interposto de decisão penal que o condenou, decisão essa proferida em tal Vara, a fim de exercer o direito de recurso tocantemente à decisão da Relação.
Se bem que, precedentemente à prolação desse despacho, não fosse equacionada qualquer questão de inconstitucionalidade reportadamente a norma ou normas, ainda que alcançadas por interpretação, constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional, poder-se-ia sustentar que seria imprevisível o juízo que veio a ser tomado em tal despacho ou, mais propriamente, que o acolhimento da interpretação normativa que nele foi levado a efeito, foi, de todo, insólito e inusitado, pelo que, com o mesmo, não teria, razoavelmente, podido contar o ora reclamante.
E, nessa senda, poder-se-ia defender que, no caso, e meramente para efeitos da verificação do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade previamente ao proferimento do despacho em apreço, tal
ónus se deveria considerar como dispensado.
Todavia, o que ora releva é que, independentemente de se saber se - firmado que está na ordem dos tribunais judiciais que o despacho ora desejado colocar sob a censura do Tribunal Constitucional mais não é que um despacho de mero expediente e, por isso, irrecorrível - haveria este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa de aceitar uma tal característica conferida ao citado despacho ou, se, pelo contrário, assente que está a irrecorribilidade do despacho na ordem judiciária para os efeitos do nº
2 do artº 70º da Lei nº 28/82, a este Tribunal competiria aferir da respectiva caracterização, a fim emitir um juízo sobre a sua impugnabilidade perante ele, e
independentemente, também, da questão de saber se foi atempada a apresentação do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o que
é certo é que é por demais óbvio que o despacho desejado recorrer não fez, ainda que implicitamente, aplicação de qualquer das normas criminais adjectivas referidas no requerimento de interposição de recurso.
Recorde-se que se tratava de um requerimento formulado pelo arguido no qual pedia ao Juiz da Vara de Competência Mista do Tribunal de comarca de Braga uma informação sobre o decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães num recurso que tinha sido interposto de decisão proferida em tal Vara, com a finalidade de do decidido pelo Tribunal de 2ª Instância, se exercer direito de recurso.
Ora, porque as normas constantes dos artigos 113º, nº 9, e 425º, nº 6, do Código de Processo Penal se reportam a notificações dirigidas ao arguido, é por demais evidente que a respectiva estatuição só se pode dirigir ao Tribunal cujo dever de notificação é por elas imposto, ou seja, in casu, ao Tribunal da Relação de Guimarães, que foi quem tomou a decisão de que o arguido desejava ter conhecimento.
Por outro lado, é também nítido que não foram, nem podiam ter sido, convocadas, no despacho reclamado, os normativos vertidos nos artigos 61º, nº 1, alínea e) (que versa sobre o direito do arguido gozar, em especial, de ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar) e 64º, nº 1, alínea d) (que se reporta à obrigatoriedade de assistência do defensor nos recursos ordinários ou extraordinários), ambos do indicado diploma adjectivo.
Por último, estatui-se no nº 1 do artº 98º, ainda do mesmo compêndio normativo, que o arguido desfruta do direito de apresentar exposições, memorandos e requerimentos em qualquer fase do processo, embora não assinados pelo defensor, desde que se contenham dentro do objecto do processo ou tenham por finalidade a salvaguarda dos seus direitos fundamentais, devendo eles ficar sempre integrados nos autos.
Igualmente este preceito não suportou juridicamente
(ainda que de modo implícito) o despacho em apreço, por via do qual não foi negada a apresentação do requerimento formulado pelo arguido ou a sua integração nos autos, já que não foi negado ao ora reclamante a feitura da exposição ou a sua incorporação nos autos.
E que daquele preceito não resulta a obrigatoriedade de deferir o que conste das exposições, memorandos ou requerimentos, é algo de que se não pode duvidar.
Concluiu-se, pois, que o despacho querido impugnar não utilizou, como ratio do que aí se decidiu, as normas cuja apreciação se pretende ser levada a efeito pelo Tribunal Constitucional, pelo que, por este fundamento, não seria admissível o recurso para ele interposto.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 22 de Junho de 2004
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida