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Processo n.º 665/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Em 31 de Outubro de 2002, o subdelegado do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho aplicou ao banco A., entre o mais, uma coima de € 9310,90 por, no dia 10 de Setembro de 2001, na sua dependência sita
---------------, --------, dois dos seus trabalhadores se encontrarem a trabalhar fora do seu horário laboral, sem que se encontrasse registada no respectivo livro a hora de início de tal prestação de trabalho suplementar. Recorreu aquela instituição bancária para o Tribunal do Trabalho de
------------, suscitando de pronto várias inconstitucionalidades e juntando um parecer de Direito e vários documentos. Por sentença de 10 de Janeiro de 2003 foi diminuída a coima aplicada para €
7000, por se ter julgado procedente o recurso na parte respeitante à reincidência, mas sendo confirmada no restante a decisão administrativa. De novo recorreu a entidade arguida, desta vez para a Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa, reiterando as mesmas questões de constitucionalidade, mas também sem êxito, já que por acórdão de 18 de Junho de 2003 foi negado provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida, com as seguintes considerações:
«(...)
— Se o facto de o subdelegado do IDICT ter confirmado o auto de notícia e ter proferido a decisão administrativa acarreta qualquer nulidade. Alega a recorrente nas conclusões 6 e 7 que:
“6. No presente processo, quem confirmou o Auto de notícia e quem aplicou a coima foi a mesma pessoa física (...).
7. Ao confirmar o Auto de notícia e ao outorgar, simultaneamente, a decisão recorrida, o Senhor Subdelegado (...) violou expressamente o disposto no art.º
39º n.º 1, c), e 40º do C.P.P. e ainda o preceituado no art.º 41º, n.º 2, do RGCOL (Decreto-Lei n.º 433/82).” Dispõe o n.º 2 do art.º 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10: “No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidos aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma.” Por sua vez, preceitua o art.º 39º, n.º 1, c), do C.P.P. que nenhum juiz pode exercer a sua função num processo penal “quando tiver intervindo no processo como representante do Ministério Público, órgão de polícia criminal, defensor, advogado do assistente ou da parte civil ou perito.” Afigura-se-nos que a recorrente suscita a questão de saber se as fases da investigação e aplicação subsequente da coima no âmbito do processo administrativo estão subordinadas ao princípio da acusação que vigora no processo penal. Como põe em relevo João Soares Ribeiro, artigos in Q. L. [Questões Laborais], ano VIII, 2001, pág. 122, ao abordar a natureza do processo de contra-ordenação
“(...) nem sempre se equaciona devidamente esta realidade ‘sui generis’ que é, ou deve ser, o processo de contra-ordenação na fase administrativa, fazendo-se por vezes, a nosso ver, um uso demasiado primário do princípio da aplicação subsidiária do processo penal consignado no art.º 41º da lei-quadro, para não dizer uma errada equiparação da estrutura do processo de contra-ordenação na fase administrativa à estrutura processual penal. Ora, não pode deixar de ser tida em consideração que a Administração não é um Tribunal, que o decisor da aplicação da coima não é um Juiz, e que, sobretudo, por mais voltas que se lhe dêem, este processo, enquanto decorre perante as autoridades administrativas, tem, necessariamente, uma estrutura inquisitória, sem distinção entre a acusação e o julgamento, que, como é sabido, cabe nos tribunais a duas magistraturas distintas”. Como bem salienta o Ex.mº Juiz a quo “(...) tendo a Administração uma estrutura hierarquizada (...), não se vislumbra como se respeitaria o princípio da acusação apenas pelo facto de o confirmador do auto e o decisor serem ‘pessoas físicas’ diferentes, já que entre elas sempre teria que existir uma relação de subordinação, que inevitavelmente anularia a estrutura do acusatório face aos objectivos que tal princípio visa assegurar”. Esta é uma das razões para que não se aplique o princípio do acusatório puro, tal como processo penal o concebe, na fase administrativa do processo de contra-ordenação. Mas há ainda outra razão, igualmente apontada na decisão da 1ª instância:
‘porque os direitos do cidadão estão absolutamente garantidos, dado que pode sempre o destinatário da decisão promover uma fase judicial, onde são respeitados todos os princípios do processo penal (nomeadamente o do acusatório), não havendo assim qualquer restrição de direitos de defesa ou garantia.’ Não ocorre assim qualquer nulidade, improcedendo as conclusões 7 e 8.
— Se o facto de se afastar a aplicação do princípio do acusatório puro na fase administrativa do processo de contra-ordenação implica a violação das garantias constitucionais expressas no art.º 32º, n.º 10 da CRP. Dispõe o art.º 32º, n.º 10, que “nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”. Afigura-se-nos que ao afastar a aplicação do princípio do acusatório puro, na fase administrativa do processo contra-ordenacional pelas razões acima alinhadas, não se está a violar este preceito constitucional. Com efeito, e como também referimos, o destinatário da decisão administrativa tem sempre ao seu dispor o recurso à fase jurisdicional, em que tal princípio é totalmente respeitado, já que a apresentação dos autos ao juiz (acto que equivale à acusação) é feita pelo Mº Pº, cabendo àquele o julgamento (cfr. arts. 62º e segs. do D.L. 433/82). Improcede também a conclusão 9.
(...).»
2.Insatisfeita, a referida instituição de crédito trouxe recurso a este Tribunal para apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 39º, n.º 1, alínea c), e
40º do Código de Processo Penal, 2º da Lei n.º 166/99, de 4 de Agosto, e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando interpretados no sentido da não aplicação dos dois primeiros artigos em processo de contra-ordenação, abandonando as restantes questões de constitucionalidade antes suscitadas. Escreveu então:
“A situação de ser a mesma a pessoa física a confirmar o Auto de Notícia e a proferir decisão administrativa condenatória é subsumível à previsão do artigo
40º do CPP, aplicável ex vi do artigo 2º da Lei n.º 116/99 e 41º do DL n.º
433/82, e como tal constitui motivo de impedimento que devia ter sido declarado nos autos, sob pena de nulidade de tudo o que tiver sido praticado pelo agente impedido (art. 41º, n.º 3, do CPP). A não se entender deste modo, tais normas serão materialmente inconstitucionais, por violação do princípio do Estado de direito e dos princípios da imparcialidade e da legalidade, no âmbito do exercício do Direito de audiência e defesa do Arguido, consagrado no art. 32º, n.º 10, da CRP.” Determinada a produção de alegações, a recorrente encerrou-as deste modo:
«1. No processo, quem confirmou os Autos de Notícia e quem aplicou a coima foi a mesma pessoa física: o Senhor Subdelegado do IDICT de -------- – B. –, como facilmente se verifica das assinaturas apostas no Confirmo e na Decisão.
2. Ao confirmar o Auto de Notícia e ao outorgar, simultaneamente, a decisão recorrida, o Senhor Subdelegado supra referido violou expressamente o disposto nos artigos 39º, n.º 1, al. c), e 40º do Código de Processo Penal e, ainda, o preceituado no artigo 41º, n.º 2, do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais
(Dec.- Lei n.º 433/82), tornando a sua decisão, também por este motivo, uma decisão nula.
3. O legislador ordinário, ao dispor, no n.º 1 do artigo 41º do RGIMOS, que deverão aplicar-se os preceitos reguladores do processo criminal devidamente adaptados, limitou-se a verter, no direito das contra-ordenações a ideia e os princípios estruturantes no plano constitucional. O que, aliás, o n.º 2 do mesmo preceito vem ainda reforçar ao prescrever que, no processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal.
4. Daí que as normas contidas nos artigos 39º, n.º 1, alínea c), e 40º do CPP devam ser interpretadas em conformidade com a Constituição no sentido da sua aplicação em processo de contra-ordenação. Elas serão, por isso mesmo, inconstitucionais, por violação do artigo 32º, n.º 10, da CRP, quando interpretadas restritivamente no sentido da sua inaplicabilidade em processo de contra-ordenação.
5. O próprio legislador, no preâmbulo do actual Estatuto da IGT – Decreto-Lei
102/00 –, teve o cuidado de justificar a existência desta figura. Fazendo-o em termos que não deixam dúvidas quanto ao sentido que pretendeu atribuir ao acto de confirmação. De facto refere-se no referido preâmbulo: “Mantém-se o princípio de que o auto de notícia carece de confirmação pelo dirigente com competência inspectiva, em conformidade com o recente regime geral das contra-ordenações laborais. A confirmação é justificada por princípios ligados à protecção do arguido na recolha e ponderação da prova e à igualdade de tratamento na interpretação jurídica consubstanciada na decisão.” – sublinhado nosso.
6. Ora, se o acto de confirmação do auto de notícia implica um juízo acerca da igualdade de tratamento na interpretação jurídica consubstanciada na decisão, o mesmo implica, desde logo, a emissão de um juízo de valor.
7. Desta forma, as garantias de defesa da Arguida, consagradas no artigo 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, ficam substancialmente diminuídas, tendo em atenção que a decisão final proferida pelo Sr. Subdelegado, no termo de todo o processo, encontra-se ab initio inquinada pelo primeiro juízo sobre a confirmação.
8. É igualmente violado o princípio da imparcialidade da Administração Pública, vertido no artigo 266º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
9. Os artigos 39º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, 40º do Código de Processo Penal, 2º da Lei n.º 116/99 e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, quando interpretados restritivamente no sentido da inaplicabilidade dos referidos preceitos do Código de Processo Penal ao processo contra-ordenacional são materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 31º, n.º 10 e 266º, n.º
2 da Constituição da República Portuguesa.” Por sua vez, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de não haver razões para alterar a jurisprudência entretanto firmada (invocando o Acórdão n.º
469/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, e as Decisões Sumárias n.ºs
106/03 e 312/03), “uma vez que não ficam lesadas as garantias de defesa, nem nenhum preceito constitucional é violado, pelo facto de ser a mesma entidade que confirma o auto de notícia e que profere o despacho sancionador na fase administrativa do processo contra-ordenacional.” Cumpre agora decidir, começando por circunscrever o objecto do recurso. II. Fundamentos
3.Embora venham impugnadas normas do Código de Processo Penal, da Lei n.º
116/99, de 4 de Agosto, e do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, em boa verdade o que se visa são apenas as normas do Código de Processo Penal enquanto aplicadas em processos contra-ordenacionais laborais, convocadas que são pelos artigos 2º do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais (aprovado pela Lei n.º
116/99, que também tem um artigo 2º, mas não relevante para o caso) e 41º, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 433/82 (regime geral das contra-ordenações). Tal precisão permite colocar no mesmo plano o presente processo e os que foram objecto das decisões sumárias n.ºs 106/03, 243/03, 312/03, 18/04 e 25/04, todas tiradas em processos em que era também recorrente o mesmo banco que ora recorre para este Tribunal, e, ainda, o Acórdão n.º 469/03, já citado, que abordaram exactamente a mesma questão de constitucionalidade por referência aos referidos artigos do Código de Processo Penal. Naquela primeira decisão sumária escreveu-se:
«No que respeita às restantes normas – assente no facto de ter sido a mesma a entidade a confirmar o auto de notícia e a aplicar a coima (conclusões 16ª a
20ª) – o recorrente limitou-se a defender a nulidade da decisão com base na violação dos artigos 39º, n.º 1, alínea c), do CPP, 41º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82 e 44º, alínea d), do CPA.
É certo que a este propósito o recorrente transcreveu, no texto das alegações, parte de um parecer em que sustenta a inconstitucionalidade das normas relativas a impedimentos constantes dos artigos 39º e 40º do CPP quando interpretadas em termos de elas não serem aplicáveis ao processo contra-ordenacional. A verdade, porém, é que, permanecendo alguma dúvida sobre se o recorrente, com tal modo de alegação, suscita verdadeiramente a inconstitucionalidade daquela interpretação normativa, a circunstância de a não ter levado às conclusões aponta no sentido negativo – e assim sucedeu que o acórdão recorrido, ao seriar as questões a resolver, nelas a não incluiu. De todo o modo, concedendo-se que foi suscitada a questão de inconstitucionalidade, manifesto é que, interpretada como o foi, no acórdão impugnado, a intervenção da entidade que confirma o auto de notícia (ela “visa tão-somente atribuir eficácia ao auto de notícia, na apreciação das condições formais da sua legalidade”) – interpretação a que integralmente se adere – não ficam lesadas as garantias de defesa do arguido com o facto de ser a mesma entidade aquela que profere o despacho sancionador: tal intervenção não coloca o autor deste despacho numa situação que condicione ou afecte a sua isenção no acto de “julgamento”. A questão é, assim, manifestamente infundada.» Nas restantes indicadas decisões sumárias, remeteu-se apenas para o acórdão n.º
469/03, no qual, após transcrição das normas impugnadas, se escrevera:
«Importa, porém, concretizar melhor a questão de constitucionalidade que, nesta parte, vem colocada. Em causa não está a inconstitucionalidade desses preceitos quando interpretados em termos de, em abstracto, não serem aplicáveis à fase administrativa do processo de contra-ordenações, uma vez que nada na decisão recorrida permite supor que terá sido esse o entendimento desses preceitos utilizado por aquela decisão. A questão colocar-se-á, quando muito, quando tais preceitos forem interpretados no sentido de não incluir na sua previsão a concreta hipótese que é objecto dos autos; i.e., quando se considera que não existe impedimento na hipótese em que o Delegado do IDICT que confirma o auto de notícia é o mesmo que mais tarde profere a decisão. Ora, colocada a questão nestes termos, é manifesto que as normas em causa não são inconstitucionais. Como este Tribunal Constitucional decidiu já no processo n.º 302/03, em que o recorrente era o mesmo, “interpretada como o foi no acórdão impugnado, a intervenção da entidade que confirma o auto de notícia (ela “visa tão somente atribuir eficácia ao auto de notícia, na apreciação das condições formais da sua legalidade”) (...) não ficam lesadas as garantias de defesa do arguido com o facto de ser a mesma entidade aquela que profere o despacho sancionador: tal intervenção não coloca o autor deste despacho numa situação que condicione ou afecte a sua isenção no acto de ‘julgamento’ ”.» O aí referido processo n.º 302/03 foi encerrado pela decisão sumária n.º 106/03. Na decisão sumária n.º 18/04, a apreciação da mesma questão de constitucionalidade [dos artigos 40º do Código de Processo Penal, 2º da Lei n.º
116/99 (de 4 de Agosto), e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82 (de 27 de Outubro), quando interpretados restritivamente – no sentido da inaplicabilidade do artigo
40º do Código de Processo Penal ao processo contra-ordenacional, por violação do
“artigo 32º, n.º 10, e 266º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”] seguiu uma via diversa: entendeu-se então que tal questão de constitucionalidade não fora suscitada durante o processo e, em todo o caso, que
“Resulta da análise do acórdão recorrido que não foi nas normas impugnadas perante o Tribunal Constitucional que o Tribunal da Relação de Évora se baseou para decidir e que, ainda que assim não fosse, lhes não teria dado a interpretação pretensamente restritiva que os recorrentes acusam de violar a Constituição. Com efeito, os artigos 2º da Lei n.º 116/99 e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82 são preceitos que apenas definem qual é o direito subsidiariamente aplicável em caso de lacuna dos próprios diplomas que os contêm, não encerrando normas que, por si mesmas, tornem aplicável um determinado regime. Ora o que o Tribunal de Évora entendeu, com base numa análise do artigo 25º, n.º
2, da Lei n.º 116/99, corroborada por argumentos de interpretação teleológica, foi que não existe qualquer lacuna de regulamentação, quer no regime geral das contra-ordenações laborais, quer no regime geral das contra-ordenações e coimas, relativamente a situações de incompatibilidade ou impedimento na fase de instrução dos processos de contra-ordenações laborais. A ratio decidendi do acórdão recorrido não decorre assim de uma pretensa interpretação restritiva das normas dos referidos artigos 2º da Lei n.º 116/99 e 41º do Decreto-Lei n.º
433/82, pela simples razão de que tais normas não foram sequer aplicadas pelo mencionado acórdão.” Dado o teor da decisão ora recorrida, esta última solução não é aplicável ao caso dos autos, qualquer que seja o juízo sobre a legitimidade da transposição para ele das previsões dos artigos do Código de Processo Penal. Por outro lado, a mera remissão para a fundamentação do Acórdão n.º 469/03 acima transcrita também se não afigura suficiente tendo em conta a nova argumentação produzida pelo banco recorrente:
«A questão central que aqui se coloca prende-se com a determinação da natureza do acto de confirmação.
É inegável que a confirmação é condição de eficácia do auto de notícia – vide artigo 7º, n.º 3, do Decreto-Lei 102/00, de 2 de Junho. Porém, a sua relevância não se cinge a tal aspecto. Na verdade, O acto de confirmação do auto de notícia não é um mero acto administrativo que vise apurar a correcção legal do Auto de Notícia.
É que, o próprio legislador, no preâmbulo do actual Estatuto do IGT – Decreto-Lei 102/00 – teve o cuidado de justificar a existência desta figura. Fazendo-o em termos que não deixam dúvidas quanto ao sentido que pretendeu atribuir ao acto de confirmação. De facto, refere-se no referido preâmbulo que:
“Mantém-se o princípio de que o auto de notícia carece de confirmação pelo dirigente com competência inspectiva, em conformidade com o recente regime geral das contra-ordenações laborais. A confirmação é justificada por princípios ligados à protecção do arguido na recolha e ponderação da prova e à igualdade de tratamento na interpretação jurídica consubstanciada na decisão.” – sublinhado nosso. Ora, se o acto de confirmação do auto de notícia implica um juízo acerca da igualdade de tratamento na interpretação jurídica consubstanciada na decisão, o mesmo implica, desde logo, a emissão de um juízo de valor. Desta forma, e como se referiu supra, as garantias de defesa da Arguida, consagradas no artigo 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, ficam substancialmente diminuídas, tendo em atenção que a decisão final proferida pela Sr. Subdelegado, no termo de todo o processo, encontra-se ab initio inquinada pelo primeiro juízo sobre a confirmação. Neste sentido veja-se João Soares Ribeiro, Natureza da Decisão Administrativa em Processo de Contra-Ordenação in Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 63 – Janeiro-Abril de 2003 – Coordenação de Paulo Morgado de Carvalho, Centro de Estudos Judiciários, Coimbra Editora, págs. 104 e ss. Ora, face ao exposto, e tendo em conta o facto de que a confirmação do auto de notícia traduz-se, ao contrário do que se afirma na douta sentença, na emissão de um juízo valorativo, pelo menos no que respeita “à igualdade de tratamento na interpretação jurídica consubstanciada na decisão”, foram violadas as normas supra citadas. Ou mesmo que assim não se entenda, “(…) com o sentido que o legislador lhe dá no preâmbulo do Estatuto do IGT parece que outra não pode ser a conclusão se não a de que há infracção da norma do artigo 32º, n.º 10, da CRP e do princípio aí contido. Assim como igualmente se terá violado o princípio da imparcialidade da Administração a que se reporta o n.º 2 do art. 266º da mesma Constituição
(versão de 2001).” – vide João Soares Ribeiro, obra citada, pág. 107.” Vejamos então:
4.Afigura-se que o princípio da imparcialidade da Administração, constitucionalmente consagrado, não é afectado, qualquer que seja o sentido do acto de confirmação em causa. De facto, se a confirmação do auto de notícia implicasse perda de imparcialidade da Administração enquanto corpo, pela mesma razão a implicaria a decisão final de aplicação de uma coima – o que não parece fazer muito sentido, pois implicaria que a Administração se tornaria parcial sempre que exercesse poderes sancionatórios. Ora, é bom de ver que a imparcialidade constitucionalmente garantida – como equidistância dos interesses contrapostos – não pode interferir com a aplicação da lei, e que esta, seja no momento da confirmação do auto de notícia, seja no momento da decisão final, não contende com a imparcialidade da Administração. Pode contender, isso sim, com a imparcialidade do decisor, mas a questão reconduz-se então à “isenção no acto de ‘julgamento’”, questão já decidida no referido Acórdão n.º 469/03 com base na distinção, implícita, entre a confirmação da subsunção jurídica dos factos ao direito na acusação, e a decisão final – que, a mais da acusação tem de avaliar a defesa.
5.Também não parece, por outro lado, que o entendimento referido no Preâmbulo do Estatuto da Inspecção Geral do Trabalho – e normas que o consagram – implique infracção da norma do artigo 32º, n.º 10, da Constituição, que assegura os direitos de audiência e defesa em processo contra-ordenacional. Desde logo, e como se referiu nas decisões sumárias citadas, o acto de confirmação em causa “visa tão somente atribuir eficácia ao auto de notícia, na apreciação das condições formais da sua legalidade”, pelo que pela sua prática
“não ficam lesadas as garantias de defesa do arguido com o facto de ser a mesma entidade aquela que profere o despacho sancionador: tal intervenção não coloca o autor deste despacho numa situação que condicione ou afecte a sua isenção no acto de ‘julgamento”. Acresce que a posição do arguido está garantida, não apenas, em primeiro lugar, nos limites das especificidades do processo administrativo, e, depois, na possibilidade de os destinatários da decisão promoverem a sua apreciação judicial, com todas as garantias inerentes ao processo jurisdicional, mas também porque, como notou a decisão judicial da 1ª instância, “tendo a Administração uma estrutura hierarquizada, particularmente o que concerne ao Instituto em apreço (IDICT), não se vislumbra como se respeitaria o princípio da acusação apenas pelo facto de o confirmador do auto e o decisor serem “pessoas físicas” diferentes, já que entre elas sempre teria que existir uma relação de subordinação, que inevitavelmente anularia a estrutura do acusatório face aos objectivos que tal princípio visa assegurar.” Em suma: não só o acto em causa não é de molde a pôr logo em questão a imparcialidade do decisor, como a garantia constitucional dos direitos de audiência e de defesa em processo contra-ordenacional (n.º 10 do artigo 32º da Constituição) não pode comportar a consagração de um princípio da estrutura acusatória do processo idêntico ao que a Constituição reserva, no n.º 5 do artigo 32º, para o “processo criminal”, como, ainda – e, numa certa perspectiva, decisivamente –, a posição do arguido está garantida pela possibilidade de recurso jurisdicional. O n.º 10 do artigo 32º da Constituição não é, pois, desrespeitado só pelo mero facto de não serem diferentes os funcionários que confirmam o auto de notícia e proferem a decisão final. Improcede, portanto, o presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso, decidindo-se não julgar inconstitucionais os artigos 39º, n.º 1, alínea c), e 40º do Código de Processo Penal, artigo 2º do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais e artigo 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando interpretados no sentido da inaplicabilidade dos dois primeiros a casos em que o autor da decisão de um processo de contra-ordenação laboral confirmou, anteriormente, o auto de notícia levantado ao destinatário dessa decisão. Custas pelo recorrente, fixando-se em 20 (vinte) unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 28 de Setembro de 2004
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos