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Processo n.º 916/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no art.º 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que, concedendo provimento ao recurso, revogou o despacho proferido pelo Juiz do 5º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, de 16 de Maio de 2003, que julgara verificada a nulidade de insuficiência de inquérito e de omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade e, decorrentemente, inválido o despacho de encerramento de inquérito, bem como todo o processado subsequente, excepto na parte respeitante ao NUIPC20359/00.9TDLSB, para efeitos de realização de diligências de inquérito, e que ordenou a sua substituição por outro que apreciasse o requerimento do assistente para a abertura da instrução.
2 – Na sequência de apresentação de várias queixas (35 - por escrito ou por telefone) pelo aqui recorrente, por factos susceptíveis de integrarem os crimes de ofensa à integridade física, ameaças, dano, devassa da vida privada, falsificação de documento e de notação técnica, difamação e abuso de poder, foram instaurados diversos processos de inquérito preliminar, todos contra incertos à excepção do Inquérito n.º 20359/00.TDLSB. Por despacho do Procurador-Geral da República foi determinada a reunião de todas as queixas apresentadas pelo denunciante, vindo os processos a ser todos apensados ao que sob aquele número corria termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal da Procuradoria-Geral da República.
Findas as diligências de investigação cuja produção considerou razoável, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento do inquérito nos termos do art.º 277º do Código de Processo Penal (CPP), por haver concluído, em resumo, que da investigação levada a cabo não haviam resultado apurados factos com relevância suficiente para exercer a acção penal contra quaisquer agentes pela prática de qualquer dos crimes denunciados, incluindo nestes os próprios suspeitos indicados pelo denunciante, designadamente os referidos no Inquérito n.º 20359/00.TDLSB (médicos que haviam assistido o denunciante nos serviços de urgência de hospital).
3 – Confrontado com este despacho de arquivamento, o denunciante requereu a abertura de instrução ao abrigo do disposto no art.º 287º, nº 1, alínea a), do CPP, pedindo, aí, a concessão de apoio judiciário e a sua constituição como assistente. Simultaneamente, o recorrente arguiu a nulidade por insuficiência de inquérito e apresentou prova documental e testemunhal. No que concerne à arguição de nulidade, o arguido alegou a falta de realização de escutas telefónicas das comunicações estabelecidas com os telefones das vítimas, bem como a falta de diligências tendentes à identificação do condutor de um veículo -------------- que alegadamente ameaçou o denunciante na AE---, condutor esse a que o agente da PSP B. faz alusão no seu depoimento prestado nos autos
(apenso A, fls. 585).
O Juiz do Tribunal de Instrução Criminal, pelo referido despacho, julgou “verificada a nulidade de insuficiência de inquérito e de omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade e, consequemente, [...] inválido o despacho de encerramento do inquérito”.
4 – Interposto recurso pelo Ministério Público, veio o Tribunal da Relação de Lisboa a dar-lhe provimento com base, em síntese, no entendimento de que a titularidade do inquérito, bem como a sua direcção, pertence ao Ministério Público, sendo este “livre em promover as diligências que entender necessárias, ou convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar”, com excepção dos actos de prática obrigatória no decurso do inquérito, como sejam
“os actos de interrogatório do arguido, salvo se não for possível notificá-lo, de notificação ao arguido, ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e às partes civis do despacho de encerramento do inquérito” e «no que respeita a certos crimes ... [como exemplo desses] actos investigatórios
“obrigatórios” ou imprescindíveis para se aferir dos elementos de certos tipos de crimes, podem indicar-se os exames periciais nos termos do art.º 151º do CPP
(médicos, no caso de crimes contra a integridade física, autópsia, no caso de morte violenta, etc.)». Mais aduziu o Tribunal da Relação, invocando o ensinamento de Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, pp. 91) e jurisprudência anterior do mesmo Tribunal, que citou, que “a insuficiência de inquérito é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreva como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa” e que “a omissão de diligências de investigação não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade de actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público” e que os actos cuja prática fora omitida não se incluíam na categoria dos actos obrigatórios, como relativamente às escutas resultava evidente do disposto no art.º 187º, n.º 1, alínea e), do CPP, e à outra diligência pretendida derivava da ausência de disposição legal a prevê-la como tal, não se vislumbrando que com esse entendimento saísse violado o art. 32º, n.ºs 1, 4 e 5, da Constituição, ao contrário do que o assistente defendia.
5 – Dizendo-se inconformado com esta decisão, o assistente recorreu para o Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade – segundo a delimitação fixada no despacho do relator de fls. 360 dos autos, transitado em julgado, prolatado em consequência de apresentação de requerimento complementar de interposição de recurso feita em consequência de convite do mesmo relator – dos artigos 120º, n.º 1, alínea d),
17º, 262º e 263º, todos do Código de Processo Penal, na acepção normativa deles conjugadamente inferida de que “o Ministério Público é livre de promover as diligências que entender necessárias, como convenientes, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar” e de que “a omissão de diligências de investigação não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, por a apreciação da necessidade de actos de inquérito ser da competência exclusiva do Ministério Público”.
6 – Alegando no Tribunal Constitucional sobre o objecto do recurso assim definido, assim sintetizou o recorrente as razões da sua discordância com o decidido em sede de constitucionalidade:
«1ª - Como é absolutamente óbvio, a autonomia do M.º P.º e a sua competência para a acção penal em nada são beliscadas pela competência jurisdicional, designadamente para conhecer e declarar nulidades da fase de inquérito, atribuída ao Juiz de instrução,
2ª - E que aliás é, mesmo, a única forma (mais do que discutível, ainda assim) de salvaguardar a constitucionalidade da mesma fase 'administrativizada' do processo penal, que é o inquérito.
3ª - Como é meridianamente evidente, o Juiz de instrução pode declarar a existência de nulidades do inquérito, de tal declaração decorrendo a invalidade do acto em si considerado e de todos os que dele dependam e aquele possa afectar, como é o caso do despacho de arquivamento.
4ª Não compete de todo à instrução e ao Juiz de instrução colmatar patentes e graves deficiências da investigação na fase do inquérito, realizando as diligências que o Mº Pº não fez e devia ter feito mas antes conhecer, e declarar se for o caso, das referida nulidades.
5ª O sistema que O Mº Pº sustenta e o Acórdão recorrido sufragou representaria afinal - na senda, aliás, das posições que vêm sendo publicamente anunciadas por algumas das mais mediáticas representantes do mesmo Mº Pº - a ausência de efectivo controle jurisdicional sobre a sua actuação gravemente omissiva, para não dizer mesmo descuidada e negligente, durante a fase do inquérito,
6ª - Permitindo-lhe mesmo actuar em autêntica 'roda livre' e liquidar impunemente investigações, relativamente às quais (até por razões de verdadeira
'oportunidade', como sucedeu com o celebérrimo despacho que nestes autos ordenou que se investigassem apenas os casos de corrupção envolvendo valores superior a
500.000$00 ...) adoptasse semelhante postura.
7ª - Como é absolutamente óbvio, e ao invés do que o M.º P.º vem sustentar, se ele não realiza actos do inquérito que se revelam essenciais à descoberta da verdade, comete assim a nulidade prevista na al. d) do n.º 2 do ano 120º do C.P.P., e essa nulidade pode e deve ser declarada pelo Juiz de instrução.
8ª - Interpretadas e aplicadas as disposições do citado art.º 120º, n.º 1, al. d), bem como dos art.ºs 17º, 262º e 263º, todos do C.P.P. como o pretende o M.º P.º e o consagrou o Acórdão recorrido, elas são materialmente inconstitucionais, por violação dos preceitos dos n.ºs 1, 4 e 5 do art.º 32º da C.R.P .,
9ª - Sendo certo que, no caso sub judice e ao invés do que falsamente o M.º P.º vem invocar, a diligência de intercepção das chamadas telefónicas foi sugerida, requerida e autorizada desde o início pelo assistente, sua mãe e também pelas suas testemunhas.
10ª - Formalmente requerida, face à já então demonstrada incapacidade investigatória, em Outubro de 2001, tal diligência ao Sr. Procurador-Geral da República e por este determinada, nem essa nem qualquer outra diligência foi realizada ou ordenada pelo M.º P.º durante mais de um ano, até se realizarem, em escassos dias, à pressa e 'ao molhe' inquirições com vista a encerrar de qualquer modo o inquérito.
11ª - E é também patente que quer a já referida (e lastimavelmente não realizada pelo M.º P.º) intercepção de chamadas, quer a não identificação do condutor de um veículo com atitudes ameaçadoras e intimidatórias assumem a natureza de omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, e ao menos quanto à primeira reconhecidas como tal pelo próprio Procurador-Geral da República,
12ª - Sendo certo que a circunstância de - felizmente! - a diligência de intercepção de chamadas só pode ser ordenada por Juiz de instrução, em nada afecta a circunstância de que o M.º P.º devia - tal como aliás formalmente despachado pelo próprio Sr. Procurador-Geral da República, órgão máximo do mesmo M.º P.º - ter promovido a sua realização.
13ª - A teoria do M.º P.º - e lamentavelmente consagrada pelo Acórdão recorrido
- é a de que a insuficiência do inquérito se consubstancia apenas na omissão da realização de actos obrigatórios e que quem tem competência para decidir se eles são obrigatórios é o próprio M.º P.º, pelo que desde que este entenda não realizar determinadas diligências nunca se poderia, afinal, verificar a nulidade prevista na já citada al. d) do n.º 2 do art.º 120º do C.P.P.,
14ª - Tese esta que, para além de absolutamente lastimável e própria de quem, pelos vistos, se habituou a ter e pretender dispor de ainda mais poderes incontrolados, é absolutamente contrária aos mais basilares princípios do Estado de direito democrático e sobretudo aos princípios de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa (art.º 32º, n.º 1, da C.R.P.) e de que toda a instrução é da competência de um Juiz, que é quem tem poder jurisdicional
(art.º 32º, n.º 4, da mesma C.R.P.).».
7 – O Ministério Público contra-alegou, defendendo o não provimento do recurso com base nas razões que condensou nas seguintes conclusões:
«1º - Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional -
'maxime' o do direito de acesso aos tribunais pelo ofendido/assistente - a impossibilidade legal de este fazer sindicar pelo juiz de instrução - enquadrando-o na figura da nulidade por 'insuficiência do inquérito' - o juízo concreto, casuístico e prudencial, realizado pelo Ministério Público durante tal fase processual que dirige, acerca da utilidade, conveniência e necessidade de realizar actos ou diligências probatórias, requeridas pelo ofendido.
2º - Na verdade, tal direito de acesso aos tribunais é garantido, em termos adequados, pela faculdade de requerer a abertura da instrução e, nessa fase, peticionar ao juiz a realização das diligências que, na fase anterior, não terão sido efectuadas.
3º - Termos em que deverá improceder o recurso.».
B – A fundamentação
8.1 – Como resulta das suas alegações, o que o recorrente controverte é, em boa verdade, a conformidade com a Lei Fundamental do entendimento segundo o qual não constitui nulidade do inquérito que o juiz de instrução possa apreciar a omissão de diligências de investigação e de recolha de prova, requeridas pelo assistente, ocorrida na fase do inquérito preliminar, cuja prática não esteja prevista na lei como sendo obrigatória, ou melhor dito, a acepção normativa segundo a qual cabe no grau de autonomia do Ministério Público na direcção do inquérito preliminar delineado na Constituição o juízo sobre a necessidade de realização das diligências de investigação e de recolha de prova cuja prática a lei não preveja como sendo obrigatória e que foram requeridas pelo assistente, pretextando que a dimensão normativa acolhida na decisão recorrida viola as disposições constitucionais dos n.ºs 1, 4 e 5 do art.º 32º da Constituição. O Tribunal Constitucional já teve ocasião de se pronunciar longamente sobre o estatuto do Ministério Público na fase preliminar do processo penal na vigência do Código de Processo Penal de 1987 e sobre a articulação desses poderes com a exigência constitucional constante do n.º 4 do art.º 32º da Constituição de que a instrução é da competência do juiz. Entre esses lugares cabe referir, pela sua precedência e completude, o Acórdão n.º 7/87, publicado no Diário da República, I Série, Suplemento, de 9 de Fevereiro de 1987, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional , 9º volume, pp. 7, o Acórdão n.º 23/90, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Julho de 1990, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º volume, pp. 119, e o acórdão n.º 581/00, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Março de 2001, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48º volume, pp. 587, e na Revista do Ministério Público, ano
22º, n.º 86, Abril/Junho de 2001, pp. 115 (Mas muitos outros se poderão citar, como, entre outros, os Acórdãos n.º 517/96 – disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudência -, n.º 610/96, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Julho de 1996, n.º 694/96 – disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudência – e n.º 691/98, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41º vol., pp. 597). A respeito da autonomia do Ministério Público e da sua competência para a direcção do inquérito preliminar de recolha de prova afirmou-se naquele Acórdão n.º 7/87, precisamente a respeito da conformidade constitucional de, entre outras normas, também o aqui questionado art.º 263º do CPP:
«[...]
«O inquérito», diz o n.º 1 do artigo 262.º, «compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação». Por sua vez, a instrução visa, segundo o disposto no n.º 1 do artigo 286.º, «a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento», e, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, «tem carácter facultativo e não pode ter lugar nas formas de processos especiais», ou seja no processo sumário e no processo sumaríssimo.
«A direcção do inquérito», dispõe o n.º 1 do artigo 263.º, «cabe ao MP, assistido pelos órgãos de polícia criminal», actuando estes - como se esclarece no n.º 2 - «sob a directa orientação do ministério público e na sua dependência funcional». Mas o MP pode mesmo, em princípio - nos termos do n.º 1 do artigo
270.º -, «conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito». Ora, considerando, por um lado, que as diligências processuais que a lei inclui sob a designação de «inquérito» são, materialmente, instrutórias - portanto, da competência de um juiz (n.º 4 do artigo 32.º da CRP) - e, por outro lado, que a direcção do inquérito não se harmoniza com as funções constitucionais atribuídas ao MP pelo n.º 1 do artigo 224.º da lei fundamental, argúi o PR de inconstitucionais as normas dos citados artigos 263.º e 286.º, n.º 2 (primeira parte - entenda-se), por violação daqueles preceitos. Pelo CPP aprovado pelo Decreto n.º 16489, de 15 de Fevereiro de 1929, quem dirigia a instrução do processo era o juiz (artigo 159.º). Segundo o disposto no artigo 158.º, a instrução tinha por fim «averiguar a existência das infracções, fazer a investigação dos seus agentes e determinar a sua responsabilidade», devendo nela, «tanto quanto possível, investigar-se as causas e circunstâncias da infracção, os antecedentes e o estado psíquico dos seus agentes, no que interessa à causa, e ainda o dano causado ao ofendido, a situação económica e a condição social deste e do infractor, para se poder determinar a indemnização por perdas e danos». O MP limitava-se a promover as diligências de instrução
(artigo 159.º). A par do «corpo de delito» - ou seja o conjunto de diligências destinadas à instrução do processo -, podia haver em todos os processos criminais, excepto no sumário e no de transgressões, a instrução contraditória, a requerimento dos arguidos (artigos 170.º e 326.º). O Decreto-Lei n.º 35007, de
13 de Outubro de 1945, que remodelou alguns princípios básicos do processo penal, introduziu precisamente no domínio da instrução alterações profundas. Assim, por força do § 2.º do seu artigo 12.º, passaram a ser «exercidos pelo MP todos os poderes e funções que no Código se atribuem ao juiz nessa fase do processo, com ressalva do disposto no artigo 21.º do presente decreto-lei» (este artigo continha disposições para o caso de haver arguidos presos); e a instrução contraditória passou a ser obrigatória nos processos de querela (artigo 34.º), devendo o MP requerê-la no mesmo acto em que deduzia a acusação (artigo 24.º). A instrução continuou, porém, a ter por fim «verificar a existência das infracções, determinar os seus agentes e averiguar a sua responsabilidade», devendo, «tanto quanto possível, investigar-se os motivos e circunstâncias da infracção, os antecedentes e estado psíquico dos seus agentes, no que interessa
à causa, e os elementos de facto que importa conhecer para fixar a indemnização por perdas e danos» (artigo 10.º). Por imperativo legal, de resto, deviam na
«instrução preparatória» - «corpo de delito», na terminologia do Código -
«efectuar-se não só as diligências conducentes a provar a culpabilidade dos arguidos, mas também aquelas que possam concorrer para demonstrar a sua inocência e responsabilidade» (§ 1.º do artigo 12.º). Com o movimento de 25 de Abril de 1974, o Programa do Movimento das Forças Armadas determinou, entre as medidas a curto prazo, a dignificação do processo penal em todas as suas fases. E, tendo o Plano de Acção do Ministério da Justiça, aprovado em Conselho de Ministros de 20 de Setembro de 1974, considerado prioritária, em ordem ao cumprimento daquela directriz, a simplificação e celeridade do processo penal, o Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro, instituiu o «inquérito policial» relativamente aos crimes puníveis com pena correccional, «a menos que o arguido tenha sido preso e nessa situação haja sido ouvido em auto, caso em que haverá lugar a instrução preparatória, nos termos do CPP e legislação complementar»
(artigo 1.º). Para proceder a esse inquérito tinham competência, além do MP, todas as autoridades policiais (artigo 3.º). O inquérito era, depois de concluído, enviado pela entidade policial ao MP, que podia completá-lo ou devolvê-lo à autoridade que a ele tivesse procedido para que esta o completasse
(artigo 4.º). A Constituição de 1976 veio, porém, determinar, no artigo 32.º, entre as «garantias do processo criminal», que «toda a instrução será da competência de um juiz» (n.º 4, primeira parte). E logo se suscitaram dúvidas acerca da legitimidade constitucional do inquérito, dúvidas que permaneceram não obstante as alterações introduzidas no Decreto-Lei n.º 605/75 pelo Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de Setembro, e que se traduziram nomeadamente na mudança da designação, de «inquérito policial» para «inquérito preliminar», e na atribuição da competência para o promover, por via da regra, ao MP. Sobre a questão podem ver-se: Rui Pinheiro e Artur Maurício, A Constituição e o Processo Penal, 1976, cap. III (no sentido da não inconstitucionalidade); acórdãos da Comissão Constitucional n.ºs 6, 39 e 49, de 5 de Maio, 6 de Outubro e 23 de Novembro, respectivamente, publicados no Apêndice ao Diário da República, de 6 de Junho de
1977, o primeiro, e de 30 de Dezembro de 1977, os dois últimos (no sentido da não inconstitucionalidade, com excepção da norma do n.º 3 do artigo 2.º, que permitia a realização, mediante prévia autorização do MP, de buscas domiciliárias, autópsias e exames que pudessem ofender o pudor das pessoas examinadas); Germano Marques da Silva, assistente da Faculdade de Direito da Universidade Católica (Lisboa), «Da inconstitucionalidade do inquérito preliminar», estudo publicado na Scientia Juridica, t. XXI, 1982, p. 325 (no sentido da inconstitucionalidade do inquérito, como o título do estudo deixa perceber, por ofensa do n.º 4 do artigo 32.º da CRP); João Castro e Sousa, assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, A Tramitação do Processo Penal, 1985, cap. III, n.º 2.2.2.3 (no sentido da compatibilidade do inquérito com a CRP). Que dizer agora do «inquérito» do novo CPP ou, mais precisamente, da norma que atribui a sua direcção ao MP (n.º 1 do artigo 263.º) e da que dá carácter facultativo à instrução (primeira parte do n.º 2 do artigo
286.º)? O n.º 4 do artigo 32.º, que se invoca como violado por essas normas, tinha na versão originária da CRP a seguinte redacção: “Toda a instrução será da competência de um juiz, indicando a lei os casos em que ela deve assumir forma contraditória”. Esse número diz hoje: “Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais”. A segunda parte do primitivo n.º 4 passou para a segunda parte do actual n.º 5: na verdade, onde se dizia (n.º 5) «o processo criminal terá estrutura acusatória, ficando a audiência do julgamento subordinada ao princípio do contraditório», diz-se agora «o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório». O que está em causa, porém, é só a primeira parte do n.º 4, que impõe que toda a instrução seja da competência de um juiz. Diga-se desde já que, na sua actual redacção, esse n.º 4 é menos exigente que na anterior: permite-se agora expressamente que o juiz delegue noutras entidades - em termos a fixar por lei - a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais. Mas fica sempre o princípio: a competência para a instrução pertence a um juiz. E que a finalidade do «inquérito» é a mesma que as leis anteriores atribuíam ao
«corpo de delito» e à «instrução preparatória» parece fora de dúvida: o inquérito compreende, nos precisos termos da nova lei, o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação. Simplesmente, a instrução de que se fala no citado n.º 4 pode ser entendida - era nesse sentido a jurisprudência da Comissão Constitucional - como não abrangendo «todas as formas de averiguação, investigação ou corpo de delito suficientes para apresentação do feito em juízo». A intervenção do juiz - lê-se no Acórdão n.º 6 - justifica-se «para salvaguardar a liberdade e a segurança dos cidadãos no decurso do processo crime e para garantir que a prova canalizada para o processo foi obtida com respeito pelos direitos fundamentais». Se esses valores forem respeitados, não há obstáculo à admissibilidade de uma
«fase pré-processual» ou «extraprocessual». Semelhante posição defendeu o Prof. Figueiredo Dias, quer nas intervenções que teve no encontro-debate organizado pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que decorreu nos dias 7 e
8 de Fevereiro de 1981, no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, e que podem ver-se em A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, Livros Horizonte,
1981, pp. 43 e segs. e 80 e segs., quer na conferência proferida em 23 de Julho de 1983, na Ordem dos Advogados do Porto, subordinada ao título «Para uma reforma global do processo penal português - Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais» e que, depois de reelaborada, foi publicada em Para Uma Nova Justiça Penal, 1983, pp. 189 e segs. «O processo penal», lê-se no capítulo V, n.º 1, alínea a), desta conferência, «deve iniciar-se com uma fase - cuja denominação é em larga medida indiferente, mas que, com razoável correcção, se chamará inquérito preliminar - que tenha por finalidade a investigação da notitia criminis e, consequentemente, a fundamentação cabal de uma decisão de acusação ou de não acusação. A direcção desta fase deve caber ao Ministério Público, que assim retomará em plenitude a sua função tradicional de domínio da investigação criminal pré-judicial, assistido pelos órgãos de polícia judiciária. Tornando-se necessária, nesta fase, a prática de actos que directamente se prendam com a esfera dos direitos fundamentais das pessoas, tais actos deverão ser autorizados - e alguns deles (os que deverem constituir 'actos judiciais' para efeitos dos artigos 205.º e 206.º da Constituição) mesmo praticados - pelo juiz de instrução.» Ora, apesar de, pelo novo Código, a direcção do inquérito caber ao MP, há actos que competem exclusivamente ao juiz de instrução nos termos dos artigos 268.º e 269.º: proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido; proceder à aplicação das medidas de coacção ou de garantia patrimonial previstas nos artigos 197.º (caução), 198.º
(obrigação de apresentação periódica), 199.º (proibição de permanência, de ausência e de contactos), 200.º (suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos), 201.º (obrigação de permanência na habitação) e 202.º (prisão preventiva); proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário; tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida; ordenar ou autorizar buscas domiciliárias, apreensões de correspondência, intercepções ou gravações de conversações ou comunicações telefónicas, bem como «a prática de quaisquer actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução». Por outro lado, tendo, é certo, a instrução carácter facultativo, pode sempre o arguido requerer a sua abertura «relativamente a factos pelos quais o MP, ou o assistente em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação» [artigo 287.º, n.º 1, alínea a)]. Sendo assim, e não podendo duvidar-se de que a direcção do inquérito cabe nas funções do MP, definidas no n.º 1 do artigo 224.º da CRP (na parte em que este preceito lhe dá competência para «exercer a acção penal»), parece não poderem levantar-se obstáculos, quer ao artigo 263.º, quer à primeira parte do n.º 2 do artigo 286.º E não sendo inconstitucional a direcção do inquérito pelo MP, fica afastada a inconstitucionalidade «consequencial» do n.º 1 do artigo 270.º do Código, que permite, em princípio, a delegação, pelo MP, de actos de inquérito a órgãos de polícia criminal.».
Por seu lado, a respeito da mesma norma do art.º 263º do CPP, escreveu-se no referido acórdão n.º 23/90:
«[...]
2.2. – No fundo, a dicotomia investigação criminal - instrução do processo criminal (neutramente nos exprimindo sem compromisso terminológico, por desnecessário) funde-se em interdependência e complementaridade: a fase prévia serve para criar a convicção da entidade titular da acção penal, a subsequente destina-se a moldar a convicção do julgador. A garantia da natureza judicial desta última expande-se aos actos praticados na primeira sempre que equacionados os direitos fundamentais do. arguido, implicando a intervenção do juiz-garante.
Nesta linha argumentativa assentam os primeiros acórdãos da CC – dos quais o n.º
6 se invoca paradigmaticamente.
Posteriormente, surpreende-se uma sensível inflexão da CC, porventura face à reformulação sofrida pelo Decreto-Lei n.º 605/75 e às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 377/77 no CPP de 1929: mantém-se a tese mas acentuam-se as modificações de índole criminológica e de política criminal, comparatisticamente afiançadas. Sirvam de exemplos acórdãos como os n.ºs 39, de 28 de Julho de 1977, onde os rituais próprios do inquérito e da instrução destacam a dessintonia entre as duas figuras, mas já não se esconde o interesse público na repressão da criminalidade e o exemplo de outros ordenamentos, e 49, não datado, por lapso evidente (mas de Novembro de 1977), enriquecido doutrinariamente para justificar a simplificação processual em ordem à eficiência, sem que daí saiam diminuídas as garantias individuais (cfr. os textos destes dois acórdãos no Apêndice ao Diário da República, de 30 de Dezembro de 1977).
Nuance, de resto, observada por um dos mais constantes críticos do sistema, Germano Marques da Silva - cfr. “Da inconstitucionalidade do Inquérito Preliminar” in Direito e Justiça, Vol. I, 1980, págs. 179 e segs., e “Princípios gerais de processo penal e Constituição da República Portuguesa”, na mesma revista, Vol. III, 1987-1988, págs. 163 e segs.
Não cremos, porém, que a aceleração processual se reduza a uma “questão de disposição de meios”, como alega este autor, nem tão-pouco que toda a problemática subjacente seja reconduzível à “pura substituição do juiz por qualquer outra entidade não independente [...] ou seja, preocupada com a perseguição dos criminosos” e que “com base nas provas policialmente recolhidas, sem qualquer controlo” se sujeite o arguido a julgamento, impendendo sobre ele, com base exclusiva nessas provas, um juízo judicial de suspeita.
Se assim fosse, o n.º 1 do artigo 263º do CPP seria materialmente inconstitucional por violação do n.º 4 do artigo 32º da CRP.
Mas não é.
3. – Historicamente situada, a norma constitucional compreende-se como reacção ao pendor inquisitório do processo penal de então.
3.1. - Assim, as considerações expostas atestam suficientemente que o Decreto-Lei n.º 605/75, e legislação subsequente, se radicam na preocupação crescente de interpenetrar, compatibilizando, os interesses da comunidade na prevenção e repressão e a “consideração indefectível dos direitos do indivíduo”, na expressão de António Carvalho Martins, a propósito do 'preliminary hearing'
(cfr. O Debate Instrutório no Código de Processo Penal Português de 1987, Coimbra Ed., Coimbra, 1989, págs. 15 e segs).
Daí, a natural prudência do legislador constituinte, aliás bem patente nos trabalhos preparatórios, reeditada nas revisões já ocorridas.
Não obstante, no plano lógico, a leitura maximalista do n.º 4 do artigo 32º da CRP proporcionaria, levada, às últimas consequências, o vício inerente a toda a argumentação circular. Na verdade, denunciou-se em recente voto de vencido lavrado no Acórdão deste Tribunal n.º 408/89, de 31 de Maio último, esse eventual risco: se se entender que entre os direitos fundamentais abrangidos pelo n.º 4 do artigo 32º figura a própria garantia do carácter judicial da instrução [e, poderia agora acrescentar-se, a garantia de que toda a indagação criminal haverá que revestir a forma instrutória] está-se “a delimitar a garantia do n.º 4 do artigo 32º CRP em função dessa mesma garantia, e está-se, ainda, e implicitamente, a sustentar que todos os actos instrutórios, sejam eles quais forem, sempre terão de ser dirigidos por um juiz de instrução, já que todos eles se entrelaçam com um direito fundamental, isto é, com a garantia do carácter judicial da instrução”.
O que seria ir além do próprio artigo 32º, n.º 4.
Por outro lado, e esta será uma tónica que adiante retomaremos, semelhante leitura colidiria com outros valores constitucionalmente tutelados.
Virá a propósito transcrever certa passagem de um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, emitido relativamente a buscas e apreensões
(parecer n.º 162/82, de 9/12/82, publicado no Diário da República, II Série, de
6/7/83, e no Boletim do Ministério da Justiça, nº 328, págs. 211 e segs.).
Ai se ponderou, no âmbito das provas objecto de diligências de busca, vistoria e apreensão:
“Entender o preceito constitucional [referia-se ao artigo 32º, n.º 4] no sentido de impor (uma integral jurisdicionalização) naquela área onde, pela natureza das coisas, embora existindo algum risco de incorrecta recolha de provas, tal risco
é menor - pode dizer-se que os elementos de prova real ou consistem em coisas ou em marcas materiais observáveis -, seria levar ao bloqueamento o sistema penal, com manifesto desequilíbrio entre as garantias de defesa do arguido e a necessidade de uma eficaz luta contra a criminalidade, ambas indispensáveis numa sociedade estruturalmente justa, sendo certo que a especial valia das provas reais depende, quantas vezes, de uma actuação imediata e sob sigilo que a jurisdicionalização irrestrita impediria ou, pelo menos, comprometeria”.
Cremos que o enfoque certo da questão passa hoje por coordenadas próximas da preocupação ínsita no trecho reproduzido, projectadas prospectivamente.
Observa José António Barreiros que os escopos reactivo e garantístico almejados com a integral judicialização instrutória engendram efeitos perversos (“A Nova Constituição Processual Penal”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 48
(1988), T. II, pág. 440). Efeitos que obstam, ao banalizar-se a judicialização e ao bloquear-se correlativamente a desejável aceleração processual, à
“concordância prática entre as exigências de verdade material e defesa social, por um lado, e de garantia dos direitos das pessoas, por outro lado” (Figueiredo Dias, “O Novo Código de Processo Penal”, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 369, pág. 15), quando, afinal, o fim último do preceito constitucional intenta alcançar a protecção judicial do arguido na fase anterior ao julgamento, sem postergação daquelas exigências.
3.2. - O CPP de 1987 veio valorar significativamente o estatuto do Ministério Público na fase em causa, reforçada pelo reconhecimento da sua autonomia, a nível constitucional, com a 2ª Revisão (cfr. o n.º 2 do artigo 221º).
Através da Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro, a Assembleia da República avalizou o novo figurino ao autorizar o Governo a legislar em matéria de processo penal com a inequivocidade que do seu artigo 2º, n.º 2, se colhe, maxime nos n.ºs 7,
8, 9, 25 a 30, 35 e 45, exigindo-se a presidência, a prática ou a autorização de qualquer acto por banda do juiz sempre que este acto se articule com os direitos fundamentais das pessoas.
O preâmbulo do Código, ao explicitar os contornos mais salientes da arquitectura do processo penal, expõe, por sua vez, a nova filosofia na sua parte III, nomeadamente na alínea b) do n.º 7.
A esta luz se devem compreender artigos como os 53º (posição e atribuições do Ministério Público no processo), 262° (finalidade e âmbito do processo), 263°
(direcção do inquérito), 267º e seguintes (actos a praticar pelo Ministério Público e pelo juiz de instrução) e 286° (finalidade e âmbito da instrução).
A conformidade constitucional da solução consagrada no novo CPP foi defendida por Figueiredo Dias em várias ocasiões, nomeadamente na seguinte passagem que transcrevemos por se considerar relevante:
“Em primeiro lugar - e a jurisprudência da Comissão Constitucional, desde o início, contribuiu para o revelar claramente -, o sentido jurídico-processual penal do termo ‘instrução’ não está inscrito em qualquer ‘lei natural’ ou
‘natureza das coisas’, que permita decidir logo a partir dela o que é e o que não é instrução. O mais que desta perspectiva poderá avançar-se é que
‘instrução’, neste contexto, haverá de ter o sentido de esclarecimento de um facto possível em vista de ser ou não submetido a julgamento. Com este sentido se compagina em absoluto a proposta que acima ficou sugerida.
Em segundo lugar, o carácter facultativo - hoc sensu, ‘disponível’ - que, naquela proposta, vem a caber à instrução adequa-se perfeitamente à natureza, que segundo a Constituição lhe cabe, de direito das pessoas e garantia do processo penal. Nunca, na verdade, uma tal natureza poderia conduzir a que a instrução fosse obrigatória ainda quando, nem o arguido, nem o assistente entendessem opor-se à atitude assumida pelo ministério público no fim do inquérito preliminar.
Em terceiro lugar, seria de todo infundado - e, além disso, carecido de sentido
- pretender que o sistema sugerido conduziria a uma perigosa
‘administrativização’ do processo penal na fase anterior ao julgamento, com a consequente acentuação de elementos ‘autoritários’ que em tal fase estão latentes. Não é por o ministério público ter a direcção da tarefa de investigação conducente à fundamentação da decisão de acusar ou de não acusar que ele perde a sua exacta configuração juridico-constitucional: a de magistratura autónoma, na qual vai implicada a obrigação de se mover por critérios estritos de objectividade e imparcialidade. Pelo contrário - como atrás ficou já sugerido – só uma solução deste tipo se adequa verdadeira e totalmente aos dados jurídico-constitucionais condicionantes; os quais se não esgotam na introdução da figura do juiz de instrução, mas compreendem também, e com não menor importância para o problema, a nova caracterização conferida à magistratura do ministério público.
Nem se diga, em quarto lugar, que deste modo se esvazia de sentido e de conteúdo a função do juiz de instrução. Pelo contrario - ainda aqui -, só assim uma tal função é reconduzida à sua dignidade jurídico-constitucional, consistente na prática de actos materialmente judiciais e não na de actos materialmente policiais. Como só assim, de resto, se mantém um princípio de unidade substancial da instrução criminal, que não deve mudar de critérios e de natureza processuais consoante tenha lugar antes da audiência de julgamento ou durante ela e, assim, consoante caiba ao juiz de instrução ou ao de julgamento.” (“Para uma reforma global do processo penal português - Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais”, in Para uma Nova Justiça Penal, Almedina, Coimbra,
1983, págs. 228 a 230).
Posição retomada já na vigência do novo Código no trabalho “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Almedina, Coimbra, 1988, págs. 5 e segs. e, sustentada, também, por Anabela Miranda Rodrigues, “O inquérito no novo Código de Processo Penal”, ob. cit., págs. 59 e segs., e José Souto Moura,
“Inquérito e Instrução”, Jornadas cits., págs. 83 e segs., maxime pág. 110.
4. - Pensa-se que à leitura do preceito em causa do CPP pela óptica constitucional continua a interessar, sem dúvida, o elemento histórico bem como o feixe de argumentos em sua defesa até agora sobremaneira utilizados, mas igualmente se crê impor-se hoje uma interpretação mais dinâmica da norma constitucional.
Sempre o n.º 4 do artigo 32º funcionará como referencial condicionante do ordenamento jurídico infraconstitucional.
Com efeito, o próprio legislador, dotado de poder constituinte, tem de se submeter, em sede interpretativa, à lógica dos princípios legitimadores de que se reclama, sob pena de perversão da própria ordem jurídica e consequente abalo do “sentimento jurídico” da comunidade.
Também é certo não ser legítimo, ao legislador ordinário, “fixar” o sentido de norma constitucional, tal como faz por via de interpretação autêntica relativamente às normas que edita (cfr., a propósito, Gomes Canotilho - Direito Constitucional, 4ª edição, 2ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 167).
Mas já aquele pode, e deve, mormente na área dos direitos fundamentais, subsumir a tarefa interpretativa à harmonização ou concordância prática entre os bens constitucionalmente tutelados e os valores que representam.
No desempenho dessa missão não deverá considerar isoladamente as normas constitucionais mas procurar integrá-las num todo unitário em obediência a um dos princípios de interpretação constitucional que este último autor enumera no seu “catálogo – tópico”, o da unidade constitucional (Canotilho - ob. cit. - pág. 162).
Como organismo vivo que é, à Constituição repudia uma perspectiva fixista, mesmo que se não tolere o sacrifício do primado da norma em proveito do primado do problema (cfr. Jorge Miranda - Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 2ª ed., reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, págs. 117 e 227).
Por outras palavras e no concreto caso, o n.º 4 do artigo 32º da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos (“reserva do juiz”).
Intervenção do juiz que vale - e só vale no âmbito do núcleo da garantia constitucional.
Assim ocorre em toda a fase de inquérito ao Ministério Público confiada pelo CPP actual, compreendendo o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262º, n.º 1), justificando-se a intervenção do juiz-garante sempre que afectado aquele núcleo - consoante o elenco de situações descritas nos artigos 268º e 269º.
Mantém-se incólume o preceito constituciona1 e o regime por ele rnoldado e, do mesmo passo, concilia-se a norma nele contida com outros valores tutelados ao mesmo nível – o direito à segurança (n.º 1 do artigo 270º), envolvendo componentes de segurança jurídica e de certeza quanto ao exercício dos direitos, o respeito pelos direitos e liberdades dos terceiros expresso na Declaração Universal dos Direitos do Homem (n.º 2 do artigo 29º), as exigências de ordem pública, são exemplos de referentes jurídico-constitucionais a exigir a observância da adequação e da proporcionalidade.
IV
O problema da constitucionalidade do artigo 263º, n.º 1. do CPP face ao n.º 5 do artigo 32º da CRP.
1. – Resta abordar este último problema levantado pelo recorrente, para o qual o sistema vigente viola a estrutura acusatória do processo criminal.
Recorde-se aquele n.º 5:
“O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência do julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.
Na tese do recorrente, a competência atribuída pelo CPP ao Ministério Público igualmente contraria aquela estrutura.
Ainda aqui lhe falece razão.
2.- Na verdade, a estrutura acusatória exige diferenciação entre o órgão que investiga e (ou) acusa e o órgão que julga, o que se verifica no regime processual vigente, inclusivamente se outra fosse a solução a conceder ao problema anteriormente debatido.
Observam, a este respeito, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra Editora, Coimbra, Vol. 1º, 1984, pág.
217):
“A ‘densificação’ semântica da estrutura acusatória (n.º 5, 1ª parte) faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e o órgão acusador”.
Retenha-se o que outros autores a este respeito adiantam:
Assim, para Figueiredo Dias o que o sentido e o alcance do principio acusatório postulam é que “a entidade julgadora não tenha também funções de investigação preliminar e acusação das infracções, mas antes possa apenas investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado” (cfr. Direito Processual Penal, I, págs. 136 e 137), ideia retomada pelo mesmo autor noutro trabalho seu (“La Protection des Droits l'homme dans la procédure pénale portugaise”, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 291, pág. 167).
Para Castanheira Neves, o princípio da acusação concilia o interesse público da repressão com as exigências, de não menor interesse público, da imparcialidade e objectividade no julgamento das infracções, “atribuindo a órgãos públicos fundamentalmente distintos, por um lado, as funções de investigação e acusação dos delitos - que compete em regra ao Ministério Público (...) e, por outro lado, a função de julgamento dessa acusação que compete ao tribunal criminal, como órgão de estatuto e estrutura jurisdicional” (Sumários de Processo Penal, págs. 33 e 34).
Também Cavaleiro de Ferreira escreve: “O princípio acusatório consiste, pois, na atribuição da função investigatória, indispensável para fundamentar a decisão, e na formulação da acusação, por entidade diferente do Tribunal” (Curso de Processo Penal, I, 1955 e 1981 – reimpressão - pág. 43).
Não se infira, porém, que a estrutura acusatória do processo penal posterga as garantias de defesa que constitucionalmente – n.º 1 do artigo 32º –- lhe compete assegurar, nomeadamente no campo dos direitos fundamentais.
Nesta área, sente-se de modo particular a necessidade de atribuir aos arguidos meios legais de intervenção compensatórios do desequilíbrio em que se encontram face à acusação, como se observa no Acórdão n.º 150/87 (Diário da República, II Série, de 18/9/87).
Reconhecendo que a “orientação para a defesa” do processo penal não o aceita neutro em relação aos direitos fundamentais, nem por isso, a essa luz, o artigo
263º do CPP parece afrontar o texto constitucional: é a conclusão que deve retirar-se considerando as cautelas que a vigente arquitectura processual penal adoptou quanto à preservação do núcleo dos direitos fundamentais, como se procurou sublinhar supra.».
E no Acórdão n.º 581/00 discreteou-se relativamente à questão da autonomia do Ministério Público e à sua competência para exercer a acção penal:
«[...] De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 219º da Constituição, ao Ministério Público compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade. Esse exercício é regulado pela lei e, como decorre da remissão contida neste preceito para o número seguinte, acarreta um estatuto próprio do Ministério Público e a sua autonomia (ambos também regulados pela lei). Do n.º 1 do artigo 219º da Constituição pode retirar-se que o exercício da acção penal pelo Ministério Público comporta a direcção e a realização do inquérito por esta magistratura, não se cingindo esse exercício à sustentação da acusação em juízo (neste sentido, veja-se, nomeadamente, o já referido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 517/96, de 28 de Março de 1996; refira-se também J. Figueiredo Dias, 'Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal', Jornadas de Direito Processual Penal (O Novo Código de Processo Penal),
1988, p. 8-9, quando afirma que o conceito de acção em processo penal só pode relevar se traduzir '[...] o acto de promoção da actividade tendente à realização do direito penal objectivo; vale dizer, num processo de estrutura acusatória, o poder-dever do ministério público de propor ao tribunal a apreciação de um tema atinente à realização de uma pretensão punitiva do Estado'; assinale-se, finalmente, do mesmo autor, Direito Processual Penal, 1º vol., 1974, p. 396, na medida em que dá a entender que, quando a lei diz que o exercício da acção penal, ou seja, a promoção do processo penal, pertence a certa entidade, daí decorre que a lei também lhe quer atribuir a direcção da instrução preparatória). No entanto, do n.º 1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa já mais dificilmente se retira: a) A exclusiva atribuição ao Ministério Público do exercício da acção penal
(neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 830); b) A necessidade de inquérito em todos os crimes; c) A necessidade de, relativamente a todos os crimes, ser o Ministério Público a entidade competente para o inquérito, naqueles casos em que o processo aplicável comporte inquérito. Quanto a estes três últimos aspectos, a norma constante do n.º 1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa: a) Não veda a existência de crimes particulares e semi-públicos, em que a legitimidade do Ministério Público está condicionada à dedução de queixa e de acusação particular, ou só à dedução de queixa (neste sentido também, face à Constituição italiana, veja-se o acórdão de 30 de Dezembro de 1993 da Corte Costituzionale, na Giurisprudenza della Corte Costituzionale sul Processo Penale, vol. III (de 1 Nov. 1992 a 31 Out. 1994), p. 394 ss, no qual o Tribunal Constitucional italiano considerou que a Constituição não atribuía o monopólio do exercício da acção penal ao Ministério Público, apenas estabelecendo a obrigatoriedade do exercício da acção penal; assim, a obrigação imposta ao Ministério Público de exercer a acção penal não excluía que a outros sujeitos pudesse ser conferido idêntico poder); b) Não impõe a existência de inquérito em todos os crimes; c) Não é clara quanto ao exercício monopolista do inquérito pelo Ministério Público, naqueles casos em que o processo aplicável comporte inquérito. De qualquer modo, não é de admitir que a Constituição vede ou condicione o exercício da acção penal ao Ministério Público, sem atribuir os poderes que lhe são subtraídos a qualquer outra entidade, pois tal levaria a excluir a tutela de certos bens jurídicos por falta de legitimidade para o exercício da correspondente acção penal. Assim como não é de admitir que a Constituição, nos crimes em que exista inquérito, não atribua as inerentes funções a qualquer entidade. Tal redundaria, no fundo, na existência de crimes sem a correspondente acção penal, pois o exercício cabal desta pressupõe a prática de actos instrutórios quanto aos factos que lhe subjazem.
[...]».
Sintetizando o sentido da jurisprudência constitucional acerca do tema tratado nestes arestos de que se transcreveu parte da sua fundamentação, e que se mostra igualmente reflectida, entre outros, nos demais acórdãos referidos, pode concluir-se constituir a competência do Ministério Público para a direcção do inquérito preliminar em processo penal, conquanto possa ser não exclusiva, uma solução do próprio legislador constitucional, quer por decorrer dos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 219º da Constituição, quer por ser postulada pelos princípios da autonomia do Ministério Público e da própria estrutura acusatória do processo penal, assinalados constitucionalmente (art.ºs 219º, n.ºs 1 e 2, e
32º, n.º 5, ambos da CRP), quer, finalmente, por ser pressuposta pela sua competência constitucional expressa para o exercício da acção penal. Segundo um tal entendimento, que não deixa de ter entre a doutrina algumas vozes discordantes, como se dá conta nos arestos referidos, hão-de os preceitos da lei ordinária que a prevêem e reconhecem (arts. 263º do CPP e alínea h) do n.º 1 do art.º 3º da Lei n.º 143/99, de 31 de Agosto, lei esta que rege actualmente o estatuto do Ministério Público) ser tidos como uma simples reafirmação da intentio fundamental. Ora, o reconhecimento da competência do Ministério Público para dirigir o inquérito não poderá ser visto desligadamente da autonomia que a Lei Fundamental lhe reconhece. Deste modo, caber-lhe-á a competência para decidir e proceder à prática dos actos de investigação ou de recolha das provas, com a única ressalva dos que importem ofensa ou restrição de direitos fundamentais que carecem, segundo os casos, de ser ordenados ou autorizados ou até realizados exclusivamente pelo juiz (cfr. art.ºs 268º e 269º do CPP). Mesmo no caso destes últimos actos, não deixa de ser reconhecido ao Ministério Público um poder de impulso processual ad actum, reconhecendo-se-lhe a faculdade de requerer a sua autorização e/ou a sua prática ao juiz competente. A atribuição de competência para decidir e proceder à prática dos actos de investigação e de recolha de provas durante o inquérito, com a ressalva resultante das limitações apontadas relacionadas com a salvaguarda de direitos fundamentais, não pode deixar de ser acompanhada do reconhecimento ao Ministério Público do poder de decidir com autonomia sobre a necessidade da prática dos actos de investigação ou de recolha das provas. Não se trata, aqui, porém, de qualquer poder discricionário. É que a sua actividade, segundo a própria injunção constitucional (art.º 219º, n.º 1, da CRP), deverá ser “orientada pelo princípio da legalidade”, entendida esta em termos objectivos. Desde modo, a opção pela prática ou não prática de certos actos de investigação e de recolha de provas deverá passar sempre pelo crivo do princípio da legalidade objectiva. Numa tal perspectiva, mesmo naqueles casos em que a oportunidade da prática do acto parece estar na discricionariedade do Ministério Público, não é legítimo dizer-se, segundo as palavras do recorrente, que ele possa “agir em roda livre”: na verdade, a prática dos actos em certos momentos e não em outros, ou simplesmente a sua não prática, deverá justificar-se sempre pelo princípio da legalidade objectiva, sendo certo que a lei pode prever como obrigatória a prática de certos actos e até o momento desta. Quando, por outro lado, esta o não faça, não poderá deixar de entender-se, à luz daquele princípio da legalidade, que a sua prática ou não prática deve estar subordinada a razões de necessidade, pertinência, adequação e racionalidade decorrentes das finalidades e do âmbito legalmente assinalados ao inquérito – a investigação da existência de crime, a determinação dos seus agentes e da sua responsabilidade e a recolha das provas, tudo em ordem à decisão sobre a acusação. Caberá, todavia, ao Ministério Público, em tal caso, a competência exclusiva para efectuar esse juízo concreto, casuístico e prudencial. Neste sentido se acompanham as asserções de Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, pp. 91), segundo as quais “a insuficiência de inquérito é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de acto que a lei prescreva como obrigatório e desde que para essa omissão não disponha de forma diversa” e que “a omissão de diligências de investigação não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público”.
Anote-se que as coisas não mudam sob o ponto de vista substancial só porque o ofendido tem, nos termos do art.º 32º, n.º 7, da CRP, o direito de intervir no processo. Em primeiro lugar, é de assinalar que segundo os termos do preceito constitucional que o reconhece, esse direito está colocado sob reserva de lei –
“nos termos da lei”. A propósito da posição processual do assistente são de lembrar aqui as palavras do Acórdão deste Tribunal n.º 358/04 , recentemente proferido:
«O assistente tem, em geral, no processo penal português, a posição de colaborador do Ministério Público (artigo 69º do Código de Processo Penal), a quem compete exercer a acção penal (artigo 219º, n.º 1, da Constituição). Trata-se de uma solução que por um lado potencia a eficácia da investigação, já que admite a participar no processo um sujeito envolvido no conflito social inerente à prática do crime (e, nesta medida, contribui para a boa aplicação do direito), e, por outro lado, é uma solução que cria condições de pacificação social, dado reconhecer o estatuto do sujeito processual à vítima do crime, que tem assim a possibilidade de intervir, através de actuação própria, na realização da justiça penal. O estatuto do assistente encontra-se, genericamente, definido no artigo 69º do Código de Processo Penal. Integra esse estatuto a faculdade de requerer a abertura da instrução (artigo 287º do Código Penal). O reconhecimento do assistente como sujeito processual, bem como o seu estatuto processual não despublicizam, no entanto, o processo penal. Com efeito, o processo penal tem essencialmente natureza pública, pois é ao Estado que cabe o exercício da acção penal (note-se que mesmo nos crimes particulares é o Ministério Público que dirige a investigação). Por outro lado, cabe sublinhar que o processo penal português tem como vertente fundamental a tutela das garantias de defesa. Desse modo, o estatuto do assistente não é equiparável ao do arguido.».
De qualquer modo, independentemente de o estatuto do assistente não ser equiparável, sob o ponto de vista constitucional, ao do arguido, há que reconhecer, no entanto, que a lei processual penal não deixou de acautelar a posição do ofendido contra as actuações porventura lesivas dos seus direitos ou interesses que o Ministério Público possa tomar na direcção do inquérito ou no seu encerramento.
E assim o assistente não só poderá deduzir reclamação para o superior hierárquico imediato do agente do Ministério Público que tiver determinado o arquivamento do processo (art.º 279º, n.º 2, do CPP), como, em alternativa, poderá, ele próprio, requerer a abertura da instrução perante o juiz [art.º 287º, n.º 1, alínea b), do CPP].
Deste modo não se vê que as normas constitucionais invocadas pelo recorrente postulem a solução que defende. Não estando em causa o interesse do arguido, mas um outro interesse materialmente diferente, não tem sentido, na perspectiva da salvaguarda dos direitos do assistente a fazer valer em processo penal, a sua alegação do princípio constitucional das garantias de defesa consagrado no n.º 1 do art.º 32º da CRP. O direito de defesa reconhecido no preceito constitui uma garantia instituída a favor do arguido, sendo informada pela sua posição específica no processo penal e ditada directamente pelas exigências decorrentes do princípio da dignidade humana. Não quer isso dizer, como abaixo se analisará, que o direito do assistente não deva compaginar-se com a garantia do acesso aos tribunais consagrada no art.º 20º da CRP, de modo a permitir-se-lhe que possa fazer valer, aí, os seus direitos.
Por outro lado, também não se lobriga que a norma constitucionalmente questionada ofenda os princípios constitucionais consagrados nos n.ºs 4 e 5 do art.º 32º da CRP. Segundo o figurino neles estabelecido – e conforme decorre do que vem sendo exposto -, a intervenção do juiz na fase do inquérito preliminar apenas é reclamada para acautelar a defesa dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais ou de terceiros relativamente àqueles actos processuais que a podem por em causa. Com o rigor de alguma síntese, pode afirmar-se que o juiz de instrução é, na fase do inquérito, um órgão que está vocacionado essencialmente para o acautelamento dos direitos fundamentais, entre os quais avultam a liberdade, a segurança, a reserva de intimidade da vida privada. É o que se poderia apelidar de “Juiz das Garantias”. Nesta senda, não se vê, na linha de fundamentação expendida, que o juiz de instrução haja de interferir na realização dos actos do inquérito cuja direcção está constitucionalmente cometida ao Ministério Público, fora do quadro de actos que são potencialmente lesivos de direitos fundamentais ou do controlo de actos cuja prática a lei processual preveja como obrigatória.
Importa, por último, confrontar a norma em causa com um outro parâmetro constitucional, este não invocado pelo recorrente – a referida garantia de acesso aos tribunais. Desde já se adianta, todavia, que a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que essa garantia não sai aqui violada. Em primeiro lugar, cumpre acentuar, repetindo o já afirmado, que nem por não serem requeridas, se for o caso disso, e/ou realizadas pelo Ministério Público, no decurso do inquérito, as diligências de investigação e de recolha de prova tendentes à decisão sobre a acusação, está o assistente impedido, de acordo com a lei processual penal (art.º 287º, n.º 1, alínea b), do CPP), de requerer a abertura da instrução, com inteira autonomia em relação à posição que o Ministério Público tenha tomado, e, consequentemente, de nesse requerimento pedir a realização dessas diligências de investigação e de recolha de prova, tendo em vista a pronúncia do arguido pelos crimes denunciados. Sendo assim, sempre o juízo de necessidade, pertinência, adequação e razoabilidade da realização dessas diligências de investigação e de recolha de prova omitidas na fase do inquérito poderá, no exercício dos direitos processuais reconhecidos ao assistente, vir a ser reavaliado, e, fora dos casos em que a sua omissão integre uma nulidade que deva ser suprida em fase de inquérito, poderão os actos ter lugar, a seu pedido, na fase processual que imediatamente se pode seguir à do inquérito e cuja direcção cabe ao juiz – a fase da instrução. Por outro lado, o assistente dispõe, ainda, de um outro meio processual no qual poderá provocar uma decisão do imediato superior hierárquico do agente do Ministério Público sobre, entre o mais que possa constituir objecto da sua discordância no despacho de arquivamento, a necessidade de realização dessas diligências – a referida reclamação a que se refere o n.º 2 do art.º 279º do CPP.
Sendo assim, não pode deixar de considerar-se que a configuração pela lei ordinária destes meios de intervenção do assistente em processo penal dá adequada satisfação ao seu direito de acesso aos tribunais para aí fazer valer os seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Conclui-se, pois, que não poderá considerar-se como desconforme com a Lei Fundamental a sindicada acepção normativa que foi inferida dos referidos artigos
120º, n.º 1, alínea d), 17º, 262º e 263º do Código de Processo Penal, segundo a qual o Ministério Público é livre, salvaguardados os actos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei, como aquelas que estão aqui em causa: escutas telefónicas relativas a factos do passado e efectivação de diligências tendentes à identificação do condutor de certo veículo definido que se encontra referenciado apenas nos mencionados termos amplos constantes dos autos.
C – A decisão
9 – Destarte, atento tudo o exposto o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 20 UC.
Lisboa, 2 de Junho de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos