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Processo n.º 569/2004
2.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que figura como recorrente A. e como recorrido o Ministério Público, foi proferida Decisão Sumária no sentido de não conhecimento do objecto do recurso. O recorrente vem agora reclamar para a Conferência, suscitando o seguinte:
A., recorrente nos autos à margem referenciados, notificado do despacho da Srª Conselheira Relatora que se absteve de conhecer do objecto do presente recurso, vem ao abrigo do art. 78-A/3 e segs. da LTC reclamar para a conferência, o que faz nos termos e pelos fundamentos seguintes: O TC absteve-se de conhecer do mérito do recurso com fundamento em “...que as normas que fundamentaram a decisão recorrida (da Relação de Coimbra) não integram o objecto do recurso de constitucionalidade interposto e as normas impugnadas não constituem a ratio decidendi da referida decisão ...”. A nosso ver não tem razão. E fundamentalmente por dois motivos. Primeiro porque no presente recurso estão referenciadas/impugnadas as normas que suportam a decisão recorrida. Segundo porque ainda que não tivessem sido impugnadas, a verdade é que por força do estabelecido no art. 32/8 da CRP , que estabelece que são nulas as provas obtidas mediante abusiva intromissão nas comunicações, o TC não se podia abster de conhecer do mérito do recurso. Expliquemos. AS NORMAS IMPUGNADAS O recorrente introduziu a questão em apreciação no Tribunal Constitucional a partir de dois requerimentos. O primeiro, apresentado em 19 de Fev de 04 junto da Relação de Coimbra, o segundo, apresentado directamente no Tribunal Constitucional, em 15 de Junho 04. De qualquer dos requerimentos consta a indicação não só das inconstitucionalidades arguidas perante o Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, mas também das inconstitucionalidades suscitadas face ao despacho da Relação de Coimbra. Em qualquer dos casos, a questão nuclear que suscitam as decisões do TIC e da Relação de Coimbra tem a ver, não só com a necessidade de fundamentação qualificada dos actos judiciais que determinem a intercepção e gravação das conversações telefónicas entre o defensor e o arguido, mas também com o tempo/oportunidade de arguição dos vícios de que padeçam esses actos. Quanto à oportunidade de arguição dos vícios, o TIC de Coimbra violando de forma manifesta o disposto no art 32/8 da CRP, que expressa e explicitamente declarou a nulidade dessas provas, entendeu que a falta de fundamentação era uma mera irregularidade, pelo que deveria ter sido invocada no prazo de três dias, por força do disposto no art 123 do CPP. A Relação de Coimbra também se pronunciou quanto à oportunidade de arguição desses vícios. E ao fazê-lo aplicou o regime de nulidades previsto nos arts 119,
120, 121, 122 e 189 do CPP. Primeiro quando “qualificou” esses vícios como nulidades (2º parágrafo p. 10, da decisão da Relação), por contraposição à qualificação inicial do TIC de Coimbra, que as tinha considerado como meras irregularidades. Depois quando de entre as várias categorias de nulidades previstas no CPP as subsumiu à categoria de nulidades insanáveis (4° parágrafo da decisão da Retação). Ou seja, ao contrário do que se intui do despacho da Srª Conselheira Relatora, o Tribunal da Relação de Coimbra não se limitou a aplicar os arts 676/1, 666 do CPC e 120/3, 379, 399 do CPP. Previamente à aplicação desses normativos, o Tribunal da Relação de Coimbra teve obrigatoriamente de qualificar e integrar o vício da falta de fundamentação qualificada e ao fazê-lo teve de levar em conta no seu raciocínio lógico-dedutivo, o regime das nulidades previsto nos arts 119, 120, 121, 122,
123 e 189 do CPP. Para definir a qualidade do vício o TRC teve necessariamente de aplicar os arts
123 (em epígrafe irregularidades) e 189 (em epígrafe nulidade) do CPP que estabelece que “todos os requisitos e condições referidos nos arts 187 e 188 são estabelecidos sob pena de nulidade”. E ao fazê-lo teve necessariamente de analisar os requisitos e condições constantes do art 187, nomeadamente o estabelecido nos números 1 e 3 quanto à necessidade de fundamentação qualificada. Posteriormente, para concluir qual a categoria de nulidade em que se traduzia o vício da falta de fundamentação qualificada, o TRC teve obrigatoriamente de ter em conta o art 119 (em epígrafe nulidades insanáveis) do CPP. Só a partir da aplicação do art 119 do CPP poderia concluir como concluiu, que no caso estamos perante uma nulidade insanável. Se não tivesse feito este percurso lógico dedutivo o TRC nunca poderia ter aplicado os arts 379/2 e 120/3 do CPP, e os arts 676/1 e 666 do CPC. Todos estes artigos do CPP, na leitura que foi feita pelo TRC, estão referenciados no requerimento inicial de interposição, apresentado em 19 de Fevereiro 04 e no subsequente, apresentado em 15 de Junho 04. Assim no requerimento inicial e encimada sob o Título “O Acórdão da Relação de Coimbra”, e em Sub-Título “A interpretação conforme a Constituição - arts 32/8 e
34/4 - do Regime de Nulidades previsto nos arts 119, 120, 121, 122 e 189 do CPP” diz-se expressamente “que o regime de nulidades previsto nos arts 119, 120, 121,
122 e 189 do CPP só é conforme com o disposto no art 32/8 da CRP se for interpretado no sentido, de que a nulidade das provas obtidas por intromissão abusiva nas telecomunicações é do conhecimento oficioso, pelo que deve ser declarada em qualquer fase do procedimento”. Mais adiante diz-se “... ao decidir como decidiu em matéria de prova proibida que segue o regime das nulidades insanáveis, o TRC fez uma interpretação do regime das nulidades que é inconstitucional por violação do disposto nos arts
32/8 e 34/4...”, uma vez que, como se disse, o regime das nulidades previsto nos arts 119, 120, 121, 122 e 189 só é conforme com o disposto no art 32/8 da CRP se for interpretado no sentido de que a nulidade das provas obtidas mediante intromissão abusiva nas telecomunicações é do conhecimento oficioso pelo que deve ser declarada em qualquer fase do procedimento. Argumentos que vieram de novo a ser invocados/explicitados no requerimento de 15 de Junho 04. Como se vê o que sempre esteve em causa foi o regime de nulidades no seu todo e não o de uma norma de “per si”, na leitura que lhe foi conferida inicialmente pelo TIC e posteriormente pelo TRC. Em qualquer dos casos sempre se entendeu e ficou explicitado, nos dois requerimentos, que a leitura que o TRC fez do regime das nulidades - (119, 120,
121, 122, 189 do CPP) não era compatível com o art 32/8 da CRP, na medida em que não os interpretou no sentido de que a nulidade das provas obtidas mediante intromissão abusiva nas telecomunicações é do conhecimento oficioso - pelo que deve ser declarada pela entidade que delas toma conhecimento - em qualquer fase do procedimento judicial. Mas mesmo que vingue a interpretação “literal” que parece subjacente à interpretação da Srª Conselheira Relatora. A verdade é que no requerimento de interposição inicial é expressamente invocado o art 120 do CPP e dele são retiradas consequências acerca da sua não conformidade com a Constituição - arts
32/8 e 34/4 da CRP - na interpretação que foi conferida pelo TRC ao regime das nulidades das provas obtidas mediante intromissão abusiva nas telecomunicações. Acresce, como ficou dito no requerimento inicial de interposição que o acordão do TRC viola não só o assento 6/00, portanto jurisprudência obrigatória, mas também os acórdão do TC 25/03, 411/02, 459/02 e 10513. Pelo menos desde 2000 entende-se que a decisão instrutória é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso da instrução. Como é o caso. O REGIME DO ART 32/8 DA CRP O art 32/8 da CRP estatui que “são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão nas telecomunicações”. Por sua vez o art 34/4 estabelece que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”. Estas duas disposições integram-se na Parte I da Constituição, sob a epígrafe, direitos e deveres fundamentais e são directamente aplicáveis por força do disposto no art 18/1 da CRP. Nessa medida estas normas são verdadeiramente direito penal constitucional. Daqui resulta que “a nulidade das provas obtidas por intromissão abusiva nas telecomunicações é do conhecimento oficioso, pelo que devem ser declaradas em qualquer fase do procedimento”. E a declaração oficiosa em qualquer fase do procedimento só tem efeito útil se for extensiva a todos aqueles que em cada momento têm a direcção do procedimento/processo. De onde que em última análise a decisão do TC que se pronunciasse sobre o mérito teria sempre efeito útil.
O Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:
1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 - Na verdade, e como dá nota a decisão reclamada, a “ratio decidendi” do acórdão recorrido é exclusivamente constituída pelas normas que dispõem sobre a idoneidade do meio procedimental adequado à arguição de nulidade de intercepções telefónicas realizadas - dirimindo exclusivamente a questão de saber se se recorre ou reclama contra pretensas nulidades, cobertas por despacho judicial.
3 - Sendo, deste modo, evidente que tal acórdão não aplicou as normas que integram o recurso de constitucionalidade interposto, faltando, deste modo, um pressuposto de admissibilidade que naturalmente preclude e inviabiliza a respectiva apreciação de fundo.
Cumpre apreciar.
2. O reclamante sustenta que o tribunal a quo, uma vez que fez referência ao conhecimento de nulidades (tendo ponderado, como se referiu na Decisão Sumária reclamada, qual o meio para arguir tais nulidades), teve de fazer aplicação do regime das nulidades constantes dos artigos 119º, 120º, 121º, 122º, 123 e 189º do Código de Processo Penal, e teve de concluir “que no caso estava perante uma nulidade insanável”. Ora, independentemente de tal afirmação corresponder à realidade jurídica dos autos, a verdade é que essa qualificação é a pretendida e sustentada pelo próprio reclamante (cf. fls. 996, segundo §), pelo que não se vislumbra o sentido da argumentação desenvolvida na presente reclamação. O reclamante afirma, por outro lado, que referiu todos os preceitos nas peças processuais apresentadas. No entanto, o que tinha de ser indicado era a dimensão normativa impugnada e não uma referência global a um conjunto extenso de preceitos legais. Nessa medida, não estaria verificado o pressuposto consistente na suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa. O reclamante afirma ainda que sustentou que o regime de nulidades, na sua totalidade, deve ser interpretado no sentido de “a nulidade das provas obtidas mediante intromissão abusiva nas telecomunicações é de conhecimento oficioso – pelo que deve ser declarada pela entidade que delas toma conhecimento em qualquer fase do procedimento judicial”. Ora, cabe sublinhar que com tal afirmação não é suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa, já que não se identifica o preceito a impugnar, fazendo-se somente uma genérica referência a um regime geral (o das nulidades). Por outro lado, em nenhum momento dos presentes autos foi assumido ter havido abusiva intromissão nas telecomunicações. Por último, a questão da alegada nulidade da obtenção da prova através da intercepção de telecomunicações teria sempre de convocar o artigo 126º, nº 3, do Código de Processo Penal, preceito que não foi indicado pelo reclamante. Sublinhe-se ainda que tal questão não foi sequer indicada na resposta ao Despacho proferido ao abrigo do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. O reclamante faz ainda uma referência ao artigo 120º do Código de Processo Penal. Porém, quando foi convidado a explicitar a dimensão normativa que pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, não fez qualquer referência a tal preceito, pelo que o mesmo não integra o objecto do presente recurso. O reclamante refere também uma alegada desconformidade do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra a um assento e a jurisprudência constitucional. Tal afirmação
é, contudo, irrelevante no contexto da presente reclamação, uma vez que a apreciação de decisões judiciais não integra o objecto do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Cabe sublinhar mais uma vez que o reclamante na presente reclamação desenvolveu considerações sobre a nulidade das intercepções realizadas nos autos, quanto o Tribunal da Relação se pronunciou sobre o meio processual adequado para impugnar as decisões proferidas durante o processo, como se referiu na Decisão Sumária reclamada, pelo que a questão suscitada não se refere ao fundamento da decisão impugnada. Por último, o reclamante requer que o Tribunal Constitucional declare a nulidade das intercepções. Ora, a competência do Tribunal Constitucional, no âmbito do recurso interposto, circunscreve-se à apreciação da conformidade à Constituição de normas jurídicas e não de actos praticados durante a investigação. Improcede, portanto, tal pretensão.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 22 de Setembro de 2004
Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos