Imprimir acórdão
Proc. nº 606/2003
2ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. deduziu, nos autos de execução movidos por B. contra C., a correr termos no Tribunal Cível de Lisboa, reclamação do pagamento de um crédito pelo produto da venda de um prédio penhorado, invocando hipoteca a seu favor. O Tribunal Cível de Lisboa, por decisão de 7 de Outubro de 1992, graduou em primeiro lugar o crédito reclamado, graduando em segundo lugar a quantia exequenda.
2. A B. interpôs recurso da sentença de 7 de Outubro de 1992 para o Tribunal da Relação de Lisboa. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 7 de Dezembro de 1993, decidiu conceder provimento ao recurso, invertendo a ordem da graduação dos créditos. Entretanto, D. e E. deduziram, nos mencionados autos de execução, reclamação de crédito, invocando um contrato-promessa de compra e venda celebrado com a executada C., incumprido pela promitente vendedora (a executada), crédito esse garantido por direito de retenção. O Tribunal Cível de Lisboa, por sentença de 21 de Novembro de 2001, graduou os créditos do seguinte modo:
1º O crédito do B. até à soma dos montantes indicados em b.;
2º O crédito de A. até ao montante indicado em a.;
3º O crédito do B. na parte que exceda a soma dos montantes indicados em b.;
4º O crédito dos reclamantes.
D. e E. interpuseram recurso da sentença de 21 de Novembro de 2001 para o Tribunal da Relação de Lisboa. A B. interpôs, por seu turno, recurso subordinado da decisão de graduação do crédito. Nas respectivas alegações sustentou o seguinte:
9. Os Dec-Lei nºs. 236/80, de 18 de Julho e 379/86, de 11 de Novembro, que vieram conceder o direito de retenção ao promitente comprador de prédio urbano ou de uma fracção autónoma, no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato promessa são inconstitucionais, por quanto tal direito ofende os direitos e interesses patrimoniais legitimamente constituídos (no. caso presente
- o direito da hipoteca), em data anterior ao aparecimento de tal direito, violando aquelas normas os princípios da proporcionalidade, protecção da confiança e segurança do comércio jurídico imobiliário ínsitos no art° 2° da Constituição da República Portuguesa.
(...)
11. A norma constante da alínea f) do n° 1 do art° 755° do Código Civil, na redacção que lhe foi dada por aqueles diplomas legais é materialmente inconstitucional por violadora dos direitos patrimoniais do credor, titular de uma hipoteca existente anteriormente ao reconhecimento de tal direito de retenção.
12. Foram violados os preceitos constitucionais artigos 2°, 20° e 165° alínea b) da CRP.
Nas contra-alegações, os autores afirmaram, por sua vez, o seguinte:
II. A alínea f), do n° 1, do art° 755 CC, quando invocada contra credor hipotecário com registo de hipoteca anterior à promessa de transmissão e à tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, está ferida de inconstitucionalidade material, por violar os princípios da proporcionalidade, protecção da confiança e segurança do comércio jurídico - art° 2° da Constituição da República Portuguesa. III. As disposições do DL n° 379/86 de 11 NOV estão feridas de inconstitucionalidade orgânica, por não terem sido precedidas da competente autorização legislativa da Assembleia da República - alínea b), do n° 1 , do art° 165 CRP. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 12 de Novembro de 2002, considerou, entre o mais, o seguinte:
Assim sendo, ainda que se conclua pela inoponibilidade da sentença que reconheceu o direito de retenção aos reclamantes, ora recorrentes, o que é certo
é que a impugnação deduzida pela exequente B., ora recorrida, não se baseia em qualquer dos fundamentos mencionados no art.813°. Logo, soçobrando tal impugnação, não podia deixar de ser considerado o direito de retenção declarado por sentença. E como esse direito, previsto na al. f), do nº 1, do art. 755°, do C.Civil, prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente, atento o disposto no art. 759°, nº 2, do mesmo Código, a graduação tem de obedecer ao estabelecido neste último artigo, devendo a quantia reclamada ser graduada com prioridade em relação aos demais créditos, ou seja, em 1º lugar (cfr., entre outros, além dos já citados, os Acórdãos do STJ, de
25/11/99, CJ, Ano VII, tomo III, 118 e de 26/6/01, CJ, Ano IX, tomo II, 135).
Em consequência, os créditos foram graduados do seguinte modo:
1º - o crédito dos reclamantes D. e E.;
2° - o crédito do B. até à soma dos montantes indicados em b.;
3° - o crédito de A. até ao montante indicado em a.;
4° - o crédito do B. na parte que exceda a soma dos montantes indicados em b.
3. A B. interpôs recurso do acórdão de 12 de Novembro de 2002 para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas respectivas alegações, sustentou o seguinte:
Quanto à inconstitucionalidade da alínea f), do n° 1, do art° 755 CCV. A alínea f) do n° 1 do artº 755 CC (introduzida pelo DL n° 379/86 de 11 de Nov) está ferida de inconstitucionalidade material quando invocada perante credor hipotecário, por violar acintosamente os princípios da proporcionalidade, protecção de confiança e segurança do comércio jurídico, ínsitos no artº 2° da Constituição da República Portuguesa. Efectivamente com o direito de retenção nela previsto criou-se uma situação de injustificado privilégio, face ao credor com garantia hipotecária registada em data anterior à promessa de transmissão ou constituição de direito real acompanhada da tradição da coisa a que se refere o contrato prometido.
Nas conclusões afirmou o seguinte:
2. A alínea f) do n° 1 do artº 755° do Código Civil, na actual redacção, é materialmente inconstitucional, quando invocada por credor titular de garantia hipotecária registada em data anterior à promessa de transmissão acompanhada da tradição da coisa imóvel a que respeita o contrato prometido violar os preceitos constitucionais contidos nos artigos 2°, 20° 1 165 alínea b) da CRP.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 3 de Junho de 2003, considerou o seguinte:
Quanto, porém, e finalmente, à questão da inconstitucionalidade suscitada pela recorrente, entende-se que lhe assiste, parcialmente, razão. Para a recorrente, a al. f) do n.º 1 do art.º 755° do Cód. Civil enferma de inconstitucionalidade material por ser atentatória do disposto nos art.ºs 2°,20°, n.º 1, e 165°, al. b), da Constituição, quando interpretada no sentido de o direito de retenção naquela alínea consagrado prevalecer em relação a credor titular de garantia hipotecária registada anteriormente à promessa de transmissão acompanhada da tradição da coisa imóvel a que respeita o contrato prometido, na medida em que vai contra os princípios da proporcionalidade, protecção de confiança, e segurança do comércio jurídico. Ora, não pode deixar de se ter em conta que o regime do direito de retenção se encontra consagrado, no que ao contrato promessa de compra e venda respeita, como se deixou dito, já desde Julho de 1980, conforme o disposto no art.º 442°, n.º 3, do Cód. Civil, na redacção então entrada em vigor, nos mesmos moldes em que viria a permanecer consagrado por aquela alínea f). Sendo assim, a prevalecer sobre hipotecas registadas anteriormente à sua consagração legal, iria afectar gravemente os direitos de terceiros, credores hipotecários, que só se tornaram credores do proprietário do imóvel entretanto retido por estarem convictos da inexistência de perigo de uma tal prevalência a acrescer às demais garantias eventualmente existentes, e com a qual não tinham que contar. Donde que se considere inadmissível fazer prevalecer o direito de retenção do promitente comprador com tradição da coisa sobre hipotecas registadas anteriormente àquela consagração. Este entendimento é reforçado pela orientação que, para casos semelhantes, vem sendo seguida por recente jurisprudência do Tribunal Constitucional, que já julgou inconstitucionais, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, consignado no art.º 2° da Constituição, as normas constantes do art.º 2° do Dec. - Lei n.º 512/76, de 3/7, do art.º 110 do Dec.-Lei n.º 103/80, de 9/5, e do art.º 104° do Cód. do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, quando interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca nos termos do art.º 751º do Cód. Civil (Acórdãos n.º 160/2000, de 22/3/2000, n.º 354/2000, de 5/7/2000, e n.º 109/2001, de 5/3/2001, publicados respectivamente nos DR's de
10/10/2000, de 7/11/2000, e de 24/4/2002, II Série), inconstitucionalidade essa entretanto declarada com força obrigatória geral pelos Ac.'s do T.C. n.ºs
362/2002 e 363/2002, de 17/9/02, publicados no DR - I Série-A, de 16/10/02. Como se lê no referido Acórdão do Tribunal Constitucional de 22/3/2000, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia do Estado de Direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar. E interrogando-se ele ainda sobre que segurança jurídica constitucionalmente relevante, terá o cidadão perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, pondera-se no mesmo Acórdão de
22/3/00 que 'o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e a circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas - que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário'. Trata-se de uma argumentação que assenta como uma luva na hipótese dos presentes autos, em que o direito de retenção não está sujeito a registo, e em que a recorrente, apesar de ter registado as suas hipotecas (uma delas antes da consagração legal daquele direito na titularidade de promitentes compradores que obtivessem a tradição da coisa objecto do contrato promessa de compra e venda), se vê confrontada com uma realidade que frustra a fiabilidade que o registo e a ausência de consagração legal do direito de retenção em causa naturalmente lhe mereciam, e que também por isso se justifica que não lhe possa ser oposta quanto
àquela primeira hipoteca. No mesmo sentido aponta o ensinamento de Menezes Cordeiro ('Estudos de Direito Civil', 1°- 89, e Col. Jur., Ano XII - 1987, 2°, págs. 5 a 18), segundo o qual a al. f) do n.º 1 do art.º 755°, na parte em que se reporta às hipotecas
(portanto, na parte de que resulta a extensão do regime de prevalência da retenção sobre a hipoteca a todos os contratos de promessa), funciona perante as hipotecas constituídas após 18 de Julho de 1980, no tocante às ligadas a promessas previstas no art.º 410°, n.º 3, como é o caso dos autos. Não pode já ser aplicado, da mesma forma que o não podia o Dec. Lei n.º 236/80, às hipotecas constituídas antes dessa data, enfermando de inconstitucionalidade por violação do disposto no art.º 62°, n.º 1, da Constituição, uma interpretação no sentido contrário, visto a hipoteca ser um direito patrimonial privado genericamente garantido e tutelado por aquele preceito constitucional, não podendo em consequência ser atingido pelo legislador ordinário sem a atribuição de uma justa indemnização, coisa que aqueles Decs.-Lei não fazem. Entende-se, pois, enfermar o art.º 755°, n.º 1, al. f), do Cód. Civil, de inconstitucionalidade material se e quando interpretado no sentido de originar que o direito de retenção nele consagrado prevaleça sobre as hipotecas constituídas antes de 18/7/80, por violação, dos ditos art.ºs 2° e 62°, n.º 1, o que impede a sua aplicação com tal interpretação, nos termos do art.º 204°, todos da Constituição da República.
Mais adiante, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu o seguinte:
Já quanto à recorrente, beneficia ela de duas hipotecas: uma registada em
22/4/80, a outra registada em 29/12/80. No respeitante a esta última, como já então se encontrava em vigor a redacção do n.º 3 do citado art.º 442° que criou o direito de retenção do promitente comprador que obtivesse a tradição da coisa, já tinha a ora recorrente de contar com a eventualidade de constituição desse direito na titularidade de algum promitente comprador que viesse a obter tal tradição, com as consequências fixadas no art.º 759°, n.º 2, mencionado, ou seja, com a prevalência do direito de retenção sobre essa hipoteca apesar de anteriormente registada.
Em consequência, foi concedido provimento parcial ao recurso, tendo os créditos sido graduados do seguinte modo: Em primeiro lugar, o crédito da ora recorrente garantido pela hipoteca registada em 22/4/80; Em segundo lugar, mas apenas pelo valor, - a determinar com recurso à permilagem provável ou a qualquer outro meio legal de avaliação -, correspondente ao andar retido pelos reclamantes D. e marido E., o crédito destes; Em terceiro lugar, o crédito da ora recorrente garantido pela hipoteca registada em 29/12/80; Em quarto lugar, o crédito do reclamante A. até ao montante de 1.450.000$00; Em quinto lugar, o crédito da ora recorrente na parte em que exceda os montantes máximos garantidos pelas hipotecas que a beneficiam {respectivamente
11.909.250$00 e 7.110.000$00); Em sexto lugar, o crédito dos reclamantes D. e marido E. na parte em que porventura exceda o valor do andar por eles retido.
5. A B. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
A B., pessoa colectiva de utilidade pública, recorrente nos autos à margem identificados, vem, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº.1 do artigo 70°. da Lei 28/82, de 15/11 (LOFPTC) interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na inconstitucionalidade da norma contida no nº.3 do artigo 410° do Código Civil, pois, ao negar ao credor hipotecário, com hipoteca registada anteriormente à celebração do contrato promessa, legitimidade para arguir nulidades do contrato promessa, na esteira do Assento do S.T.J. de 28 de Junho de 1994, verifica-se, em concreto, a inconstitucionalidade material de tal preceito, por violação do n°. 1 do artigo 20° da C.R.P., ou seja, é negado ao credor hipotecário a tutela efectiva dos seus legítimos direitos, em desrespeito, em violação, do princípio constitucional da garantia do acesso ao direito e aos Tribunais, ou seja, do direito à tutela jurisdicional efectiva e do princípio da precisão das leis. E, igualmente, recorre, também, com fundamento em inconstitucionalidade material, dos diplomas legais - D.L. 236/80 de 18/07 e D.L. 379/86, de 11/11, pois, estes diplomas ao concederem o direito de retenção ao promitente comprador de prédio urbano ou de sua fracção autónoma são inconstitucionais por tal direito ofender os interesses patrimoniais legitimamente constituídos, no caso dos autos, a hipoteca constituída e registada em data anterior à invocação do direito de retenção. Deste modo, as normas constantes do n°. 2 do artigo 442° e alínea f) do artigo
755°, ambos do C. Civil são materialmente inconstitucionais por violação do artigo 2° da C.R.P., ofendendo o princípio aí consagrado, a confiança do comércio jurídico. E, finalmente, recorre, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, dos diplomas acima referidos que introduziram alterações ao artigo 442° do C. Civil, tendo sido a alínea f) do artigo 755° do mesmo Código introduzida pelo diploma de 1986, que criaram um direito na esfera jurídico patrimonial do promitente comprador . Trata-se de matéria respeitante a direitos e garantias patrimoniais que são da competência exclusiva da Assembleia da República e para que o Governo pudesse legislar sobre tal matéria carecia de autorização do ente legislativo competente. Verifica-se, assim, inconstitucionalidade orgânica, por força do disposto na alínea b) do n°. 1 do artigo 168° da C.R.P., actual 165°, n° 1, alínea b), com ofensa ao princípio constitucional da reserva de lei. As referidas inconstitucionalidades foram suscitadas nos autos, nas alegações do recurso de apelação da sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 1ª instância e nas alegações do recurso de revista. Nestes termos pede a admissão do presente recurso nos termos do artigo 76° da LOFPTC e que o mesmo seja feito subir, com o efeito próprio, seguindo-se os ulteriores termos legais.
Junto do Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
5.1. A garantia constitucional do direito à defesa do património implica e acarreta necessariamente o direito do credor à satisfação do seu crédito.
5.2. A alínea f), n° 1, do art° 755 do Código Civil, se interpretada no sentido de que o direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa, prevalece sobre a garantia hipotecária registada em data anterior à referida tradição, cria uma situação injustificada e de privilégio, com o consequente prejuízo do credor hipotecário, violadora dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança e segurança do comércio jurídico, ínsitos no art. 2° da Constituição da República Portuguesa e do disposto no seu artigo 62°, n° 1.
5.3. Tal interpretação é, por isso, inconstitucional.
5.4. A referida norma é ainda inconstitucional e pelas mesmas razões, se e quando interpretada no sentido de que o referido direito de retenção prevalece sobre garantia hipotecária constituída após 18JUL80.
5.5. Tal norma está ainda ferida de inconstitucionalidade orgânica, por emanar de acto legislativo do Governo, sem precedência da competente autorização legislativa da Assembleia da República - trata-se da criação de direito análogo ao direito de propriedade - por violação do disposto na al. b), do n° 1, do art.
165 CRP.
5.6. Deve conceder-se provimento ao presente recurso, (i) declarando-se que o disposto na al. f), do n° 1, do art° 755 CPC está ferido de inconstitucionalidade orgânica e, se assim se não entender, que é materialmente inconstitucional, quando interpretado no sentido de que o direito de retenção nele previsto prevalece sobre garantia hipotecária registada em data anterior à constituição do direito de retenção e (ii) ordenando-se em qualquer dos casos, que a decisão recorrida seja reformulada de acordo com o juízo de inconstitucionalidade que vier a ser proferido, assim se fazendo JUSTIÇA!
O Ministério Público, em representação da C., contra-alegou, concluindo o seguinte:
1º - O regime legal que atribui ao beneficiário da promessa de transmissão da propriedade de imóvel ou fracção, que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o direito de retenção pelo crédito resultante do incumprimento contratual imputável ao promitente vendedor - prevalecendo tal direito sobre a hipoteca, nos termos do artigo 759°, n° 2, do Código Civil - tem como finalidade a tutela dos direitos e expectativas do consumidor no caso de aquisição de habitação - incluindo o direito à reparação dos danos, assegurados pelo artigo 60° da Constituição da República Portuguesa, em termos equiparados à tutela dos 'direitos, liberdades e garantias'.
2° - A circunstância de este regime legal ter precisamente na sua base a tutela e asseguramento dos direitos dos consumidores legitima a restrição à confiança e segurança, associados ao registo predial, pelo que as normas que o instituem não padecem de inconstitucionalidade, orgânica ou material.
3°- Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Os demais recorridos não contra-alegaram.
6. Cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação
7. Na decisão recorrida é operada a recusa de aplicação de uma dada dimensão normativa do artigo 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil, com fundamento em inconstitucionalidade. Contudo, uma vez que não foi interposto o recurso de constitucionalidade previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o Tribunal Constitucional não apreciará tal questão.
8. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, é portanto submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a norma do artigo
755º, nº 1, alínea f), do Código Civil (necessariamente articulada com o disposto no artigo 759º, nº 2, do mesmo diploma), nos termos da qual o direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa prevalece sobre a garantia hipotecária registada em data anterior à referida tradição. Tal questão é suscitada somente no contexto da impugnação da parte da decisão que graduou os créditos reclamados por D. e marido E. antes do crédito da B. garantido pela hipoteca registada em 29 de Dezembro de 1980. A recorrente fez também constar do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade o artigo 410º do Código Civil. Contudo, nas alegações de recurso não se referiu a tal preceito, pelo que o objecto do presente recurso não abrange essa disposição legal. A recorrente invoca a inconstitucionalidade orgânica bem como a inconstitucionalidade material do regime legal impugnado. No que respeita à inconstitucionalidade orgânica dos diplomas que alteraram o Código Civil no que respeita à matéria em causa nestes autos, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, nos Acórdãos nºs 374/2003 (D.R., II Série, de 3 de Novembro de 2003), 594/2003 e 22/2004, no sentido de não inconstitucionalidade dos Decretos-Leis nºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de
11 de Novembro. Nessa medida, remete-se agora para a fundamentação do referido aresto. A recorrente suscita, porém, a inconstitucionalidade material da norma impugnada. O Tribunal Constitucional, nos Acórdãos nºs 594/2003 e 22/2004, apreciou a conformidade à Constituição da norma do artigo 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil, na medida em que consagra o direito de retenção do promitente adquirente. Nesses arestos, o Tribunal Constitucional concluiu pela não inconstitucionalidade da norma apreciada. Porém, o Tribunal entendeu expressamente não apreciar a questão relacionada com a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca. Nos presentes autos, uma vez que a questão suscitada pelo recorrente abrange a dimensão normativa segundo a qual o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca anteriormente constituída (ainda que o recorrente não tenha referido expressamente o artigo 759º, nº 2, do Código Civil), afrontar-se-á tal questão.
9. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 498/2003 (D.R., II Série, de 3 de Janeiro de 2004), apreciou a conformidade à Constituição da norma da alínea b) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, na interpretação que confere aos créditos imobiliários emergentes de contrato individual de trabalho preferência sobre a hipoteca anteriormente constituída, concluindo pela não inconstitucionalidade da norma apreciada. Tal questão tem semelhança com a questão apreciada neste processo. Nos presentes autos, está em causa um direito de retenção resultante do incumprimento de contrato-promessa de compra e venda de imóvel, por parte da promitente vendedora, no caso em que havia tradição da coisa (do imóvel). Ora, como resulta, desde logo, do preâmbulo dos Decretos-Leis nºs 236/80 e
379/86, o objectivo prosseguido pela solução agora impugnada é a tutela da defesa do consumidor e das expectativas de estabilização do negócio (muitas vezes incidente sobre a aquisição de habitação própria permanente) decorrentes da circunstância de ter havido tradição da coisa, através da viabilização de ressarcimento adequado e efectivo da frustração culposa de tais expectativas. Não se trata, pois, de questão idêntica à subjacente aos casos que já foram objecto de jurisprudência do Tribunal Constitucional (nomeadamente, os que dizem respeito à tutela de créditos de entidades públicas, mediante outorga de privilégios creditórios imobiliários gerais, sem qualquer conexão com os imóveis por eles abrangidos – referidos no mencionado Acórdão nº 498/2003). Com efeito, o direito de retenção, associado à tradição da coisa, implica uma conexão com o imóvel ou fracção objecto da garantia real que não existe, por via de regra, nos privilégios creditórios gerais. Na apreciação da questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos, é decisiva a circunstância, de resto sublinhada pelo tribunal a quo, de o regime impugnado já se encontrar em vigor no momento em que a hipoteca foi constituída. Em face de tal circunstância não se pode concluir, desde logo, pela violação do princípio da confiança relativamente a expectativas anteriormente firmadas. Para além disto, é ainda de referir que a norma em apreciação no presente recurso opera meramente uma ponderação adequada do interesse das instituições de crédito detentoras de créditos hipotecários na protecção da confiança inerente ao registo predial e do interesse dos consumidores na protecção da confiança relativa à consolidação de negócios jurídicos, notando-se que os mesmos respeitam, em muitos casos, à aquisição de habitação própria permanente. Nesta perspectiva, também a contenção dos princípios da confiança e da segurança jurídica associados ao registo predial, que resulta da atribuição de preferência ao direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente, tem a sua justificação na prevalência para o legislador do direito dos consumidores à protecção dos seus específicos interesses económicos (associados, em inúmeros casos, à aquisição de habitação própria, pelo que é ainda convocável o artigo
65º da Constituição) e à reparação dos danos (artigo 60º da Constituição – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª ed., p. 323). Em face do que ficou exposto, não se verifica, portanto, a inconstitucionalidade da norma apreciada.
III Decisão
10. O Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil (necessariamente articulada com o disposto no artigo 759º, nº 2, do mesmo diploma), negando consequentemente provimento ao recurso e confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 19 de Maio de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos