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Proc. n.º 373/04
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Foi, a fls. 115 e seguintes, proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos seguintes fundamentos:
“[...]
2. O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional cabe das decisões dos tribunais «que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo».
Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso fundado nessa disposição, exige-se que o recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou da norma, numa certa interpretação) que pretende que este Tribunal aprecie e que tal norma (ou tal norma, nessa interpretação) seja aplicada no julgamento da causa, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhe foi dirigida.
Ora tais pressupostos processuais do recurso interposto não estão verificados no caso dos autos.
2.1. Quanto à norma do artigo 165º do Código de Processo Penal – impugnada no primeiro recurso submetido ao Tribunal da Relação de Lisboa –, verifica-se que não foi suscitada pelo recorrente, durante o processo, de forma clara e perceptível, qualquer questão de inconstitucionalidade.
Com efeito, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa dos despachos proferidos pelo Juiz da Comarca de Loures que o condenaram ao pagamento das multas correspondentes a 1 UC e a 3 UCs por apresentação tardia de documentos, o recorrente sustentou que «o arguido [...] tem que discordar da aplicação dessas multas, porquanto é sua convicção que a prova a que aquele normativo processual ali se pretende referir é fundamentalmente a da acusação», tendo assim concluído (fls. 15 e seguintes destes autos):
“[...] e) Pelo que não é devida qualquer das multas aplicadas, resultando violadas as normas dos arts. 165º e 343º do CPP; f) Pelo que os despachos sob recurso carecem de revogação; g) Entendimento diverso cerceia o direito do arguido à defesa, e suas garantias absolutas, imperativo dos arts. 32º e 20º da Constituição da República Portuguesa, que sairá violado e aqui se argui, ad cautelam, para os legais efeitos;
[...].”
Nas expressões utilizadas não pode ver-se a invocação em termos processualmente adequados de uma questão de inconstitucionalidade normativa; concretamente, o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade da norma do artigo 165º do Código de Processo Penal, com a interpretação que agora pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
O recorrente limitou-se a manifestar a sua discordância relativamente aos despachos então recorridos, imputando o eventual vício de inconstitucionalidade às decisões contidas em tais despachos que o condenaram ao pagamento de multas pela apresentação tardia de documentos.
2.2. Quanto à norma do artigo 408º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal – impugnada no segundo recurso submetido ao Tribunal da Relação de Lisboa
–, verifica-se que ela não constituiu o fundamento único e decisivo da decisão recorrida.
Na verdade, quer a decisão do Tribunal da Comarca de Loures, quer o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, consideraram que os recursos interpostos pelo recorrente apenas poderiam ter efeito suspensivo, nos termos das disposições pertinentes do Código de Processo Penal (artigos 399º, 401º, n.º
1, alíneas b) e d), 406º, n.º 2, 407º, n.º 2, alínea a), 411º, n.ºs 1 e 3), após depósito prévio das multas que lhe tinham sido aplicadas, atendendo ao disposto na legislação sobre apoio judiciário e nos artigos 32º e 89º do Código das Custas Judiciais.
Lê-se, a propósito desta questão, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 97 e seguintes):
“[...] Pretende nesta parte o recorrente que, tendo-lhe sido concedido o benefício do apoio judiciário, o presente recurso deveria ter efeito suspensivo da decisão recorrida, ou seja, da condenação nas multas antes referidas – que não do processo – independentemente do seu depósito, como o impõe o citado art. 408º, n.º 2, al. a), do CPP. Não tem, manifestamente, também aqui razão. Desde logo, pelo facto, de todo singelo, de que o âmbito objectivo do apoio judiciário concedido, definido pelo art. 15º da respectiva Lei 30-E/00, de
20/12, compreende tão só «as seguintes modalidades: a) Dispensa, total ou parcial, de taxa de justiça e demais encargos com o processo; b) o ‘diferimento do seu pagamento’; e c) a ‘nomeação e pagamento de honorários de patrono...’». Os «encargos» encontram-se elencados no art. 89º do CCJ, dos mesmos não fazendo parte as multas, que, como decorre do art. 102º e seguintes, se mostram especialmente reguladas. Donde, «o benefício do apoio judiciário... não isenta o beneficiário do pagamento de qualquer multa processual».
É este o princípio entre nós vigente.
[...]”.
A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa assentou assim num complexo normativo que engloba disposições do Código de Processo Penal, da legislação sobre apoio judiciário e do Código das Custas Judiciais. Não pode portanto a decisão que sujeita o efeito suspensivo do recurso ao depósito das multas aplicadas pela junção tardia de documentos reportar-se exclusivamente ao preceito que o recorrente elegeu como objecto do recurso.
3. Não tendo sido suscitada pelo recorrente, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa relativamente à norma do artigo 165º do Código de Processo Penal, e não tendo a decisão recorrida aplicado, como fundamento único e decisivo, o artigo 408º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, conclui-se que não podem dar-se como verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
[...].”
2. Notificado desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal (requerimento de fls. 124 e seguinte), invocando, em síntese, para o que agora releva:
a) Quanto à norma do artigo 165º do Código de Processo Penal
“[...] é perfeitamente perceptível que o recorrente argui a inconstitucionalidade da interpretação da norma contida no art. 165°, CPP, feita ali no sentido de que ele, arguido, teria que dar aos Autos toda a prova na oportunidade prevista no art. 165º, do mesmo CPP. Logo, a questão foi devida e oportunamente suscitada, em sede de recurso de primeiro grau, e transposta, sucinta mas perceptivelmente, para as conclusões do recurso ora em apreciação. O recorrente – ao contrário do expandido na decisão sumária em apreço – não se limita a manifestar discordância da aplicação de multas, é clarividente que discorda, frontalmente, da interpretação dada sobre a oportunidade de deduzir a sua defesa, por qualquer forma, mormente a documental. Mais e melhores argumentos caberão em sede de alegações, como está legalmente previsto..
[...].”
b) Quanto à norma do artigo 408º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal
“[...] Na segunda questão em recurso, o recorrente, humildemente, tem que ceder razão ao que este Insigne Tribunal aduz na decisão sumária.
É facto que poderia a questão ter sido suscitada de forma mais clara e, ainda que pudesse caber ao caso a aplicação da norma adjectiva do art. 75°-A, nº 5, da Lei nº 28/82, submete-se o recorrente à decisão tomada, por razões de respeitosa economia processual e jurisdicional.
[...].”
3. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu
(fls. 128):
“[...]
1º - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º - Na verdade, o reclamante não suscitou durante o processo e em termos procedimentalmente adequados qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que pudesse servir de base ao recurso interposto quanto à norma do artigo 165º do Código de Processo Penal.
[...].”
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Na reclamação deduzida, o ora reclamante apenas impugna a parte da decisão sumária que diz respeito ao não conhecimento do recurso relativamente à norma do artigo 165º do Código de Processo Penal (ponto n.º 2.1. da decisão reclamada), expressamente afirmando que se conforma com a parte da decisão sumária que diz respeito ao não conhecimento do recurso relativamente à norma do artigo 408º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (ponto n.º 2.2. da decisão reclamada).
A decisão de não conhecimento do recurso quanto à norma do artigo
165º do Código de Processo Penal fundamentou-se na falta de um dos pressupostos processuais do recurso interposto: o Tribunal entendeu que “não foi suscitada pelo recorrente, durante o processo, de forma clara e perceptível, qualquer questão de inconstitucionalidade” a propósito da “norma do artigo 165º do Código de Processo Penal, com a interpretação que [o recorrente] agora pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional”.
4.1. Nesta reclamação, o reclamante começa por afirmar que “é perfeitamente perceptível que a questão da inconstitucionalidade por si arguida na alínea g) das conclusões impugnativas, corolário das anteriores alíneas e) e f), todas elas transcritas na [...] decisão em causa, se refere a que «Entendimento diverso cerceia o direito do arguido à defesa, e suas garantias absolutas, imperativo dos arts. 32º e 20º da Constituição da República Portuguesa, que sairá violado e aqui se argui, ad cautelam, para os legais efeitos»”.
É porém manifesto que na expressão destacada pelo próprio reclamante não pode ver-se a invocação em termos processualmente adequados de uma questão de inconstitucionalidade normativa, concretamente de uma questão de inconstitucionalidade reportada à norma do artigo 165º do Código de Processo Penal, com a interpretação identificada no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional – isto é, com a interpretação de que “a prova documental apresentada pelo arguido para contradita de testemunha inquirida está sujeita a multa por extemporaneidade, uma vez que a letra do artigo em causa não a impõe expressamente ao contrário do que se passa em processo civil, cujo regime de prova é nitidamente distinto, e a contradita de testemunha é direito inalienável do arguido, em sua defesa plena”.
4.2. Diz depois o reclamante que “é perfeitamente perceptível que o recorrente argui a inconstitucionalidade da interpretação da norma contida no art. 165º CPP, feita ali no sentido de que ele, arguido, teria que dar aos autos toda a prova na oportunidade prevista no art. 165º do mesmo CPP”.
Ainda que se considere que o reclamante está, com esta formulação, a questionar a conformidade constitucional de uma interpretação normativa imputável ao artigo 165º do Código de Processo Penal e que essa interpretação normativa coincide com a que era indicada no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, certo é que a reclamação da decisão sumária não constitui momento processualmente adequado para considerar cumprido o ónus de invocação da inconstitucionalidade durante o processo, a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
5. Reafirma-se assim que, não tendo sido suscitada pelo recorrente, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa relativamente à norma do artigo 165º do Código de Processo Penal, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do recurso interposto.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido.
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada, de 16 de Abril de 2004, que não tomou conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Junho de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos