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Processo nº 52/2004
2ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. foi condenado pela 1ª Vara Criminal de Competência Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães na pena de 2 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira (artigo 137º, nºs 1 e
2, do Código Penal) e, na coima de 100.000$00, pela prática da contra-ordenação do artigo 124º, nºs 1 e 3, do Código da Estrada de 1994 e inibido de conduzir veículos automóveis pelo período de 1 ano, nos termos do artigo 141º do Código da Estrada. O arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, propugnando que o acórdão condenatório proferido pela 1ª instância fosse declarado nulo e remetido o processo para novo julgamento quanto ao crime de homicídio por negligência grosseira e absolvido o arguido pela prática da contra-ordenação do artigo 124º do Código da Estrada com o fundamento seguinte que consta das conclusões da sua motivação de recurso:
1° - Da enumeração dos factos considerados provados consta que a vítima seguia a pé, fora da faixa de rodagem, tendo o arguido, não conseguindo dominar o veículo por forma a mantê-lo na faixa de rodagem por onde circulava, invadido a berma, embatendo na vítima com a frente do lado esquerdo do veículo que conduzia.
2° - A sobredita factualidade foi considerada provada na instância recorrida, não obstante o arguido, que confessou os factos descritos na acusação, descrevendo o atropelamento em causa, negar ter invadido a berma, fundando-se a convicção do Tribunal Colectivo tão só no croquis de fls. 9 dos autos.
3° - Ademais, o participante do acidente; a testemunha B., não presenciou o atropelamento, elaborando o aludido croquis com base numa mera dedução, como o próprio expressamente reconhece em audiência de julgamento.
4° - Considerar provados tais factos revela um notório erro na apreciação da prova produzida, em clara violação do princípio “in dubio pro reo”, e com nefastas consequências no tocante à determinação da medida concreta da pena aplicada.
5° - Com efeito, se o acórdão recorrido peca por excesso na parte em que dá por provados os factos descritos em 1, por outro lado, peca por defeito ao não valorar (nem positiva nem negativamente) o facto de o arguido ter afirmado que a vítima carregava um tronco que arrastava na parte interior da faixa de rodagem.
6° - Com o descrito nas precedentes conclusões violou-se o art. 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal.
7° - Por outro lado, verificou-se em audiência de julgamento uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, susceptível de conduzir
à condenação do arguido por crime diverso do constante da acusação, ou seja, pela prática de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo
200.º do Código Penal, tendo tal alteração sido comunicada ao Ministério Público, para que este proceda pelos novos factos.
8° - Contudo, a matéria de facto em causa - constituindo uma alteração substancial para os efeitos da alínea f) do artigo 10 da lei adjectiva - foi atendida e determinante da decisão de excluir a aplicação ao caso sub judice o perdão e a amnistia previstos na Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, em contravenção ao disposto no art. 359.º n.º1 do Código de Processo Penal.
9° - O desvio do tema da prova que se deu notícia supra determinou, ainda, a prática da nulidade do acórdão, na parte respeitante à inaplicabilidade do perdão e amnistia previstos na referida Lei 29/99, nos termos do disposto no art. 379°, nos. 1 e 2 do Código de Processo Penal.
10° - Não tendo o arguido sido condenado pelo crime, de omissão de auxílio, nem se julgando verificados os elementos integrantes do referido crime, que serão apurados em sede própria, deve o arguido beneficiar do sobredito perdão,
11° - Devendo aguardar-se pela decisão final, onde se decidirá definitivamente pela verificação - ou não - do crime de omissão de auxílio e, consequentemente, da aplicação ou inaplicabilidade do disposto no artigo 2° n.º 1 alínea c) da Lei n.º 29/99 (cfr. Acórdão, do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de Junho de
1995, in www.dgsi.pt),
12° - Tendo sido tal prova valorada e tida em conta no acórdão recorrido estar-se-á na prática a julgar o arguido duas vezes pelo mesmo crime, uma vez que a mesma prova será tida em conta para uma eventual condenação pelo crime de omissão de auxílio, originando o mesmo facto, eventualmente, duas condenações violando-se assim, o art. 29.º, n.º 5 da Constituição.
13° - O Tribunal recorrido condenou o arguido pela contra-ordenação prevista no Código da Estrada de 1994 sem que se tenha feito qualquer prova em audiência sobre essa matéria e sem haver qualquer elemento constante dos autos que confirme esses mesmos factos.
14° - De facto, a decisão do Tribunal recorrido, em virtude da completa ausência de prova relativamente à contra-ordenação, é completamente omissa na sua motivação quanto a estes factos, achando-se violadas assim as disposições dos art.ºs 58.º, n.º1 al. b) do D.L. 433/82 de 27 de Outubro e 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o que determina a nulidade do acórdão em consonância com o art.º 379.º, n.º1, al. a) do Código de Processo Penal.
15° - De qualquer forma, apesar da ausência completa e total de prova que levasse à condenação do arguido pela prática da contra-ordenação em causa, certo
é que tal infracção prescreveu - tendo em conta a data da prática da mesma - nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 124.º do Código da Estrada, e 17.º, n.º 1 e 27.º al. b) do D.L. 433/82 de 27 de Outubro.
16° - Pelo exposto violou o acórdão recorrido os art.s 32.º, n.º2 e 29.º, n.º 5 da Constituição, os art.ºs 410.º, n.º 2 al. a), 359.º, n.º 1, 379.º, 374.º, n.º
2 do Código de Processo Penal, os art.ºs 17.º, n.º 1, 27.º, al. b) e 58.º, n.º1, al. b) do DL 433/82 de 27 de Outubro e os art.ºs 1.º n.º 1 e 2, n.º 1 al. c) da Lei 29/99 de 12 de Maio.
O Ministério Público junto da Comarca contra-alegou, propugnando que fosse declarado extinto, por prescrição, o procedimento por contra-ordenação e a manutenção no mais do acórdão recorrido. No mesmo sentido se pronunciou o Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto. O recorrente respondeu, nos termos do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, concluindo de modo idêntico ao do recurso. Por despacho de 14 de Novembro de 2001, o arguido foi notificado para, sob pena de não conhecimento do recurso relativo à matéria de facto, dar integral cumprimento ao artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal. O arguido, na sequência desse despacho, apresentou um requerimento de esclarecimento da motivação de recurso, em que concluiu o seguinte:
1° - O arguido dá aqui por integralmente reproduzidas as conclusões apresentadas nas alegações de recurso.
2° - O Tribunal “a quo” deu como provado que a vitima seguia fora da faixa de rodagem baseando-se no croquis de fls. 9 e no depoimento do agente da G.N.R. supra transcrito, no entanto o arguido afirma que a vitima seguia em cima da linha delimitadora da faixa de rodagem e a testemunha Isabel Cristina Fernandes que passou pelo local do acidente pouco depois, afirma que a vitima jazia a apenas um metro da faixa de rodagem, pelo que deveria ter-se considerado provado que a vitima caminhava em cima da linha delimitadora da faixa de rodagem e não fora dela, não tendo por consequência o veiculo que tripulava o arguido invadido a berma;
3° - Não existindo qualquer testemunha presencial do acidente não podia o Tribunal “a quo” dar como provado que o arguido guiava sem a atenção devida e deveria ter dado como provado que a vitima carregava um tronco de cerca de dois metros no seu braço direito como afirma o arguido;
4° - O Tribunal “a quo” deu como provado que o arguido embateu com a frente do lado esquerdo do veículo na vítima, no entanto resulta claro dos documentos juntos a fls. 36 a 41 dos autos que o lado que está embatido no carro é a frente do lado direito;
5° - O Tribunal “a quo” não poderia ter dado como provado que o arguido conduzia sem habilitação legal uma vez que não consta dos autos qualquer informação da D.G.V. nem sequer qualquer testemunha ou o arguido afirmou não ter habilitação legal para conduzir.
Após notificação do requerimento veio o Ministério Público responder, emitindo parecer (fls. 443 a 445) no sentido de que se deveria determinar a baixa do processo para que fosse feita a transcrição da prova, já parcialmente transcrita pelo recorrente e aquela em que o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão e, na hipótese de se defender ser a transcrição ónus do recorrente, não se deveria alterar a decisão sobre a matéria de facto. O arguido respondeu, mais uma vez, nos termos do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, mantendo as conclusões da sua motivação do recurso.
2. O Tribunal da Relação do Porto julgou parcialmente procedente o recurso, considerando extinto o procedimento por contra-ordenação, por ter considerado que a condução de veículo automóvel sem habilitação legal teria deixado de ser contra-ordenação, arquivando os autos nessa parte. Revogou, igualmente, o acórdão recorrido quanto à decisão de o arguido não beneficiar do perdão previsto na Lei nº 29/99 e manteve a condenação pela autoria material de um crime de homicídio negligente, condenando-o, agora, na pena de 15 meses de prisão. Considerou o Tribunal da Relação, na fundamentação da sua decisão quanto ao recurso da matéria de facto, para além do mais, que “das provas transcritas também não resulta – nem sequer das declarações do arguido – que este guiava com a atenção devida e possuía à data dos factos qualquer documento que o habilitasse a conduzir na via pública qualquer veículo com motor” e acrescentou ainda “das provas transcritas não resulta que se deve ter como não provado – em contrário do decidido pelo tribunal colectivo recorrido – que o arguido guiava atentamente e que possuía à data das factos documento que o habilitasse a conduzir na via pública com motor”. O Acórdão também referiu, quanto à prova da ausência de habilitação legal do arguido, o seguinte: “... sobre a omissão de fundamentação na decisão recorrida relativamente aos factos de o arguido não possuir à data em causa documento que o habilite a conduzir na via pública qualquer veículo com motor, limitamo-nos a referir que consta da fundamentação que no essencial o arguido confessou os factos”. O Tribunal da Relação não considerou, assim, necessário, no próprio acórdão, a baixa do processo para transcrição oficiosa de prova, o que aliás tinha já sido decidido pelo Relator por despacho de 9/1/2003. Perante o acórdão do Tribunal da Relação e tendo em conta o despacho atrás citado, veio o ora recorrente arguir a nulidade do mesmo acórdão com o seguinte fundamento:
“O trecho da decisão recorrida em que se diz que o arguido no essencial confessou os factos dados como provados nada nos diz relativamente ao facto de o arguido ter ou não carta de condução, é uma afirmação conclusiva. E este Tribunal de recurso só poderia aquilatar de tal inexistência de prova se tivesse apreciado a matéria de facto na sua totalidade e ordenado a baixa do processo para que a prova produzida em julgamento fosse transcrita. Deste modo este Tribunal em observância do princípio da descoberta da verdade material, primordial no processo penal, deveria ter ordenado a baixa do processo para que se efectuasse tal transcrição.
(...) O facto de o Tribunal ter dado como provado que o arguido conduzia o veículo automóvel sem licença para tal, influiu certamente no seu juízo quanto à medida da pena”.
(..) Além disso, o tribunal recorrido deu como provado que o arguido conduzia sem habilitação legal o que agravou a sua pena, ou pelo menos foi tido em conta na definição da medida da pena aplicada ao arguido, sendo que este Tribunal veio também a dar como provado tal facto apesar de nenhuma prova se ter produzido em audiência de julgamento. Aliás, quanto à totalidade do recurso sobre a matéria de facto, a transcrição integral da prova produzida seria sempre importante para a sua decisão, porquanto se trata de fazer prova negativa, ou seja, que nenhuma testemunha depôs sobre tais factos, sendo entendimento do recorrente que este Tribunal deveria pronunciar-se sobre a questão da transcrição da prova no acórdão de que se pede a aclaração e não por despacho. Não tendo este Tribunal decidido tal incidente no acórdão de que se pede a aclaração, o Tribunal não se pronunciou sobre matéria que devia apreciar, o que torna o acórdão proferido no dia 5 de Março de 2003, nulo nos termos do disposto no artº 379° nº 1 al. c) do Código de Processo Penal. Mesmo que assim não se entendesse, a manter-se o entendimento de que os autos não deveriam descer à primeira instância para transcrição integral da prova, tal entendimento seria violador das garantias de defesa do arguido afrontando o disposto no artº 32º nº 1 da Constituição e, em consequência seria, também por esta via, nulo por violação do citado normativo constitucional.”
O arguido reclamou, igualmente, do despacho do Relator de 9/1/2003 para a Conferência, dizendo o seguinte:
Por acórdão do plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça de
16 de Janeiro de 2003, publicado no DR 1ª Série-A, com o nº 2/03, este Tribunal veio a fixar jurisprudência no sentido de que “Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos nºs
3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal”. O despacho reclamado foi proferido antes da prolação do acórdão uniformizador da jurisprudência e deve considerar-se que foi proferido contra jurisprudência fixada, pelo que não pode manter-se. Assim, impõe-se que o despacho reclamado seja substituído por acórdão que admita a baixa do processo para a transcrição integral da prova produzida em audiência de julgamento. Com efeito, nas alegações de recurso, diz-se: “Se, como impõe o art. 412° nº 3 alínea b) e n° 4 do Código de Processo Penal, o Recorrente tem que transcrever as provas que impõem decisão diversa da recorrida, teria o mesmo Recorrente que transcrever, por completo, a prova produzida em audiência de julgamento para provar que nem o arguido, nem as testemunhas (que, aliás, não o conhecem nem o conheciam antes do julgamento) disseram que o arguido não estava habilitado com a respectiva licença de condução.” Ora, o tribunal recorrido deu como provado que o arguido conduzia sem habilitação legal o que agravou a sua pena, ou pelo menos foi tido em conta na definição da medida da pena aplicada ao arguido, sendo que este Tribunal veio também a dar como provado tal facto apesar de nenhuma prova se ter produzido em audiência de julgamento. Além disso, a transcrição integral da prova produzida seria sempre importante para a decisão da matéria de facto impugnada no recurso, porquanto se trata de fazer prova negativa, ou seja, que nenhuma testemunha depôs sobre tais factos. Aliás, é entendimento do recorrente que este Tribunal deveria pronunciar-se sobre a questão da transcrição da prova por acórdão e não por despacho. A manter-se o entendimento de que os autos não deveriam descer à primeira instância para transcrição integral da prova, esse entendimento é violador das garantias de defesa do arguido afrontando o disposto no artº 32º nº 1 da Constituição.”
A referida arguição de nulidade, bem como a aclaração e a reclamação para a Conferência requeridas pelo recorrente, foram decididas por acórdão de
28/5/2003, o qual, no que se refere à matéria constitucionalmente relevante, diz o seguinte:
- a transcrição só tem lugar quando o recorrente, na motivação de recurso e conclusões impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto e especificar, com referência aos suportes técnicos, quais as provas gravadas que impõem decisão diversa da recorrida; e
- a transcrição dessas provas indicadas com referência aos suportes técnicos incumbe ao Tribunal de 1ª Instância.
(..) Os preceitos legais acabados de referir concedem ao recorrente e aos sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso o direito de indicarem os pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida. Ao Tribunal de 1ª Instância, de cujo acórdão se recorreu, a Lei impõe no art.º
374° n° 2 do C.P.P., o dever de fundamentar a decisão, nomeadamente com a indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal. Nem neste preceito legal, nem em outro, estabelece o C.P.P. que o Tribunal de 1ª Instância, para além de mandar transcrever as provas gravadas, indicadas pelo recorrente, deve proceder ainda à transcrição dos depoimentos “daqueles em que fundamentou a sua convicção para decidir sobre os pontos impugnados e que interessam à decisão em sede de reexame de prova”. Neste entendimento a fundamentação que a lei impõe no art.º 374° nº 2 do C.P.P. deixava de ter relevo quando fosse impugnada em recurso a matéria de facto obrigando o Tribunal recorrido a fundamentar novamente a sentença, agora com a transcrição dos depoimentos “daqueles em que fundamentou a sua convicção para decidir sobre os pontos impugnados e que interessam à decisão em sede de reexame de prova”. Nem a letra, nem o espírito da Lei, apontam nesse sentido, pelo que, como questão prévia a audiência no Tribunal da Relação, não tinha o relator do despacho de Janeiro de 2003 de aceitar a sugestão constante do Douto parecer do MP e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal de 1ª Instância para proceder à transcrição dos depoimento em que este fundamentou a sua convicção quanto aos pontos impugnados no recurso. Como é fácil de constatar não é a transcrição da prova por si efectuada na motivação do recurso que o reclamante pede que o Tribunal “a quo” efectue. Tal seria reconhecer - e não o faz - que as transcrições que efectuou para sustentar a impugnação de pontos de facto eram incorrectas. Também o MP, na comarca e no Tribunal da Relação, não puseram em causa a sua veracidade, tendo mesmo o Ex.mo Procurador Geral Adjunto referido que, com as transcrições efectuadas a pretensão do recorrente não devia proceder. Seria uma inutilidade para este efeito a baixa do processo à 1ª Instância.”
3. O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do entendimento perfilhado no despacho de 9 de Janeiro de 2003, despacho reclamado pelo recorrente e decidido por acórdão de 28/5/2003 no sentido da improcedência, sustentando a inconstitucionalidade do artigo 412º, nº 4, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, na medida em que se entendeu que tal preceito não impunha a necessidade dos autos descerem à 1ª instância para transcrição integral da prova produzida na audiência de julgamento. Posteriormente, deduziu alegações no Tribunal Constitucional, que concluiu do seguinte modo:
1ª O recurso da matéria de facto em face das normas processuais penais vigentes, é aceite como uma revista alargada, podendo ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (cfr. art.º 410° n.º 1 do Código de Processo Penal), afastada que foi a doutrina e a jurisprudência que impunham a restrita sindicância dos vícios da matéria de facto dada como provada que ressaltassem do próprio texto da decisão recorrida
(cfr. neste sentido dos artº.s 363°, 364° n.º 1 e 428° do Código de Processo Penal e entre outros, se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de
16 de Janeiro de 2002, publicado in www.dgsi.pt supra referido).
2ª O Tribunal da Relação só pode modificar a decisão recorrida sobre matéria de facto se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base
à fixação dos factos ou se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do art.º 412° n.º 3 do Código de Processo Penal (cfr. o art.º 431º al. a) e b) do Código de Processo Penal).
3ª Tratando-se de fazer prova negativa, ou seja, prova de que nenhuma prova foi produzida em julgamento relativamente a um ponto de facto impugnado, só a transcrição integral dessa mesma prova produzida em audiência poderia permitir aquilatar da razão de ser da arguição e, por isso, do objecto do recurso.
4ª Depois de as Relações e o Supremo Tribunal de Justiça haverem produzido diversos acórdãos contraditórios, uns no sentido de incumbir ao recorrente a transcrição da matéria de facto produzida em audiência e outros no sentido de que tal transcrição incumbiria ao Tribunal, veio o Supremo Tribunal de Justiça no Assento n.º 2/2003 a fixar jurisprudência no sentido de que a transcrição incumbe ao Tribunal.
5ª Tendo em conta que o recorrente impugnou um dado facto tido como provado dizendo que nenhuma prova foi produzida quanto ao mesmo e tendo em conta que a transcrição da prova não lhe incumbia, ao ser-lhe negada a transcrição integral da prova produzida, nega-se-lhe ao mesmo tempo o direito a um julgamento justo, de acordo com as normas processuais penais em vigor e restringe-se-lhe o direito ao recurso em matéria de facto.
6ª A transcrição a que alude o n.º 4 do art.º 412° do Código de Processo Penal só pode ser uma transcrição integral, uma vez que o recorrente, ainda que se negasse a doutrina do Assento 2/2003, só teria de promover a transacção da parte da prova que infirmasse a matéria de facto provada, já não lhe incumbindo transcrever ou indicar por referência aos suportes técnicos, a prova que não infirme a matéria de facto dada como provada ou até, no caso vertente, prova inexistente.
7ª Deve, assim, ser julgada inconstitucional a interpretação do artº 412° nº 4 do Código de Processo Penal no sentido de que havendo recurso da matéria de facto por se invocar que nenhuma prova foi produzida, tal normativo não impõe a necessidade da transcrição integral da prova produzida na audiência de julgamento, por violação do artº 32° nº 1 da Constituição, uma vez que só é possível demonstrar que nenhuma prova se produziu em momento algum da audiência se for conhecido o relato integral dessa audiência. Sem tal relato integral sempre se poderá admitir que, afinal, a prova negada consta das passagens não transcritas.
Termos em que deve declarar-se a inconstitucionalidade da interpretação do artº
412° nº 4 do Código de Processo Penal no sentido de que havendo recurso da matéria de facto, tal normativo não impõe a necessidade da transcrição integral da prova produzida na audiência de julgamento, por violação do artº 32° nº 1 da Constituição, com a consequência de, verificada essa inconstitucionalidade, o processo baixar ao Tribunal recorrido para este apreciar, sem limitações e em plena jurisdição, o recurso aí interposto pelo recorrente da matéria de facto, ordenando-se a transcrição da prova testemunhal produzida em primeira instância, para que se faça Justiça.
4. O Ministério Público produziu contra-alegações que concluiu, nos termos seguintes:
1 - A garantia constitucional do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto não implica a reponderação global pela Relação de todas as provas produzidas na audiência final, mas tão-somente a reapreciação pelo Tribunal “ad quem” da valoração dos concretos pontos de facto questionados pelo recorrente, com base nas provas que ele indica como incorrectamente apreciadas.
2 - Tal garantia não pressupõe que toda a prova, produzida em audiência, tenha necessariamente de ser transcrita “ex officio” pelo tribunal de 1ª instância - bastando que estejam à disposição da Relação as “cassetes” que incorporam a gravação da prova.
3 - Deste modo, não é inconstitucional a interpretação normativa do artigo 412°, n° 4, do Código de Processo Penal que, num caso concreto, dispensa a necessidade da transcrição, com fundamento em que o próprio arguido/recorrente a ela procedeu espontaneamente, no que se refere aos concretos pontos de facto impugnados.
4 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Tudo visto, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. O problema de constitucionalidade suscitado refere-se à interpretação do artigo 412º, nº 4, do Código de Processo Penal, no sentido de ser dispensada a necessidade de transcrição pelo tribunal recorrido da prova produzida em audiência com fundamento em que o próprio arguido/recorrente a ela procedeu relativamente aos pontos da matéria de facto que impugnou. É esse sentido retirado do artigo 412º, nº 4, que o recorrente considera inconstitucional por violação do direito ao recurso, hoje expressamente consagrado como garantia de defesa no artigo 32º, nº 1, da Constituição. A questão surge, na perspectiva do recorrente, a partir das seguintes premissas: Em primeiro lugar, o artigo 410º, nº 1, do Código de Processo Penal só é compreensível, hoje, após a Revisão de 1998 como revista alargada (para o que invoca os artigos 363º, 364º, nº 1 e 428º, do Código de Processo Penal), não estando o recurso em matéria de facto restringido ao conhecimento de específicas questões, nomeadamente derivadas do texto da decisão recorrida; Em segundo lugar, o tribunal só poderá modificar a decisão recorrida sobre matéria de facto se puder confrontar-se com todos os elementos constantes do processo que tenham servido de base à prova produzida e, no caso de documentação de prova, se esta tiver sido impugnada e nos pontos em que o for (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal); Em terceiro lugar, tratando-se de prova negativa, torna-se exigível a transcrição integral de prova produzida em audiência, isto é, a prova de que não foi feita prova de um determinado facto. Destas premissas o recorrente retira a conclusão de que é restritivo do direito ao recurso não ser imposta ao tribunal, em casos de prova negativa, como a que refere, a transcrição integral da prova produzida. A substância da questão suscitada está, assim, determinada por implicação da natureza do recurso quanto
à matéria de facto na necessidade de transcrição integral da prova produzida quanto à chamada prova negativa. Ora, tal problema nunca foi colocado com tanta concretização perante o Tribunal Constitucional, embora, mais genericamente, ele tenha sido suscitado e abordado no Acórdão nº 677/99, o qual considerou não inconstitucional a interpretação normativa que colocava a cargo do recorrente o ónus de fazer a transcrição das provas que impusessem, no entender daquele, decisão diversa da que impugna.
6. Perante a concreta questão de constitucionalidade normativa suscitada, o Tribunal Constitucional considera que o direito ao recurso não está afectado pela conjugação das seguintes razões: Desde logo não está em causa a possibilidade de qualquer ponto da matéria de facto impugnado vir a ser considerado pelo tribunal de recurso, mesmo que a transcrição não seja integral, já que é sempre possível ao tribunal consultar directamente as gravações da prova juntas ao processo, possibilidade que é pura manifestação do próprio princípio de verdade material e que tem até consagração no artigo 690º-A, nº 5, do Código de Processo Civil; Por outro lado, como já se entendeu no referido Acórdão nº 677/99, o ónus para o recorrente de fazer a transcrição das provas não é inconstitucional. Na realidade, tal ónus corresponde apenas a uma decorrência do dever de motivação do recurso, isto é, à manifestação, no plano de impugnação dos factos, de uma exigência de documentação a partir do registo da prova (quem recorre da decisão quanto à prova relativamente a certos factos, só o poderá fazer, em princípio, apresentando documentação, relativamente à prova efectuada em audiência e embora a motivação do recurso em matéria de facto não consista apenas na indicação da prova efectuada, toda a argumentação que impugne a matéria de facto deve tê-la em conta). O que, como se disse, nunca se poderá concluir é que, em Processo Penal, o tribunal de recurso só possa decidir na base das transcrições efectuadas pelo recorrente e não tenha a possibilidade de recorrer à análise do conteúdo concreto das gravações que constituem o registo da prova ou de ordenar, oficiosamente, a respectiva transcrição para efeitos de reapreciação da prova produzida. O duplo grau de jurisdição, que se deve entender à luz da globalidade dos princípios constitucionais do processo penal, nomeadamente do princípio do acusatório, da vinculação temática e da proibição da reformatio in pejus, não exige, no entanto, uma automática reponderação global da prova, independentemente dos concretos pontos de facto impugnados pelo recorrente e para além da necessidade sentida pelo tribunal ad quem, a partir do objecto do recurso, de fundamentar a decisão sobre tal objecto.
7. No caso concreto, o que está em causa é a consideração de que quanto a uma prova negativa sempre teria de existir uma reponderação global. É que, para o recorrente, resultaria dessa desnecessidade de reconsideração de toda a prova uma violação da garantia do recurso em matéria de facto. Ora, tal conclusão genérica é manifestamente excessiva, nomeadamente porque os pontos concretos invocados poderão ser em muitos casos suficientemente esclarecedores do facto que o recorrente considera não se ter provado. Assim, a constituição de um critério normativo a partir de uma suposta regra lógica não tem sustentação. Tratar-se-á, antes, de um problema a ser aferido em concreto, isto é, na perspectiva do particular juízo decisório. Não compete ao Tribunal Constitucional verificar a correcção do direito aplicado nem do juízo decisório consubstanciador da sentença, mas não se pode considerar inconstitucional, por violação do direito ao recurso, a não reponderação global da matéria de facto sempre que esteja em causa como objecto do recurso a falta de prova de um certo facto. Não há, com efeito, um critério normativo, constitucionalmente imposto, derivado, eventualmente, de uma regra lógica segundo a qual só seria possível dar efectividade ao recurso em matéria de facto quando relativamente à prova negativa de um facto for reponderada toda a matéria de facto. Sendo esse o argumento a partir do qual a questão de constitucionalidade é suscitada, e considerando as próprias circunstâncias concretas do processo com interesse para a determinação do critério normativo aplicado, sem no entanto se assumir qualquer pronúncia, sobre a correcção da aplicação do direito e sobre a correcção do raciocínio decisório, o Tribunal Constitucional conclui que não foi violado pela dimensão normativa impugnada a garantia de recurso prevista no artigo 32º, nº 1, da Constituição.
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 15 de Julho de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos