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Proc. N.º 96/2004
2ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e como recorridos o Ministério Público e B. e outra, a Relatora proferiu Decisão Sumária do seguinte teor:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e como recorridos o Ministério Público e B. e outra, o recorrente interpôs recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26 de Março de 2003, que negou provimento ao recurso interposto pelo arguido da decisão da 1ª instância e concedeu provimento parcial ao recurso interposto pelos assistentes, condenando o arguido, como autor material de um crime de ofensa à integridade física agravado previsto e punido pelo artigo 145º, nº 1, alínea b), com referência ao artigo 144º, alínea d), do Código Penal, na pena de cinco anos de prisão. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 16 de Outubro de 2003, considerou o seguinte:
Nos termos do nº 1 do artigo 411º do CPP, aplicável a todos os recursos ordinários, o prazo para a interposição do recurso é de 15 dias, e conta-se, no caso de se tratar de sentença – ou acórdão (v. o artigo 97º, nº 1 do CPP) – do respectivo depósito na secretaria, não sendo inconstitucional este entendimento, como já foi decidido pelo Tribunal Constitucional – v. Acórdão nº
75/99, de 3 de Fevereiro, citado por Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal”, 13ª ed., 816. Ora, “in casu”, o acórdão da Relação foi, sem dúvida, depositado em 26-3-2003, pois esta é a data daquele aresto, bem como do seu registo – v. fl. 556 e 557. Face a esta data, o prazo de interposição do recurso terminava em 10-4-2003 e em
23-4-2003 com o pagamento de multa nos termos do artigo 145º, nº 5, do Cód. Proc. Civil, aplicável “ex vi” do artigo 107º, nº 5, do CPP. Porém, o presente recurso só foi interposto em 5 de Maio de 2003, como se vê de fls. 561 e segs., ou seja, o recurso foi interposto para além do termo final
(com multa) do respectivo prazo. Por conseguinte, por ser intempestivo, o recurso não é admissível pelo que tem de ser rejeitado nos termos dos artigos 414º, nº 2 e 420º, nº 1 do CPP. Acresce que, ainda que o recurso fosse tempestivo, outra razão existe para a sua rejeição. Assim, estamos perante um acórdão da Relação de Coimbra que condenou o arguido, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave p e p pelo artigo
145º, n º 1, alínea b), com referência ao artigo 144º, alínea d), ambos do Cód. Penal, na pena de cinco anos de prisão, agravando, pois, a condenação da 1ª instância. Trata-se, pois, de uma decisão proferida pela Relação, em recurso, da qual só se pode recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça se a mesma não for irrecorrível. É o que dispõe a al. b) do artigo 432º do CPP, remetendo para o disposto no artigo 400º do mesmo diploma. No presente caso, apenas o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal. Assim, há que ter em conta o disposto no artigo 409º do CPP no que concerne à proibição da “reformatio in pejus” segundo a qual, interposto recurso da decisão final somente pelo arguido – que é o caso que ora releva – o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes – v. o nº 1 do referido artigo 409º. Isto significa que a pena aplicável pelo tribunal de recurso – mormente a de prisão (v. o nº 2 daquele artigo 409º) – a cada um dos crimes, por cuja prática o arguido foi condenado, não pode ser superior à pena aplicada pelo tribunal recorrido a cada um dos mesmos crimes – v., entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 11-4-2002 (proc. nº 150/02 – 3ª Secção), dois de 27-3-2003
(procs. nºs 859/03 e 870/03, ambos da 5ª Secção), de 5-6-2003 (proc. nº 2150/03
– 5ª Secção) e de 3-7-2003 (proc. nº 2445/03 – 5ª Secção). Ora, “in casu”, como se disse, a Relação de Coimbra aplicou ao arguido a pena de cinco anos de prisão, pelo que a pena aplicável, pela via de novo recurso – agora para este Supremo Tribunal – não pode exceder a pena aplicada pela Relação, pelo que, face ao disposto no artigo 400º, nº 1, al. e), do CPP, não é admissível o presente recurso, que, assim, ainda teria de ser rejeitado nos termos dos artigos 414º, nº 2 e 420º, nº 1 do CPP. Em qualquer dos casos de rejeição do recurso, este Supremo Tribunal não está vinculado pela decisão que o admitiu – nº 3 do citado artigo 414º.
2. Arguida a nulidade do acórdão de 16 de Outubro de 2003, arguição que foi indeferida por acórdão de 15 de Janeiro de 2004, o arguido interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
A., recorrente nos autos à margem identificados, não se conformando com a decisão constante do douto acórdão desse Venerando Tribunal, produzido em matéria da inconstitucionalidade suscitada das normas dos arts. 411°, 1 e 400°,
1, al. e) e 409° CPP, aplicadas por esse Venerando Tribunal no acórdão de
16/10/2003,
A) REQUERIMENTO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO Interpôr o competente recurso para o Venerando Tribunal Constitucional: O presente recurso baseia-se no disposto no art. 70°,1, al. b) da L.T.C., suscitando-se a apreciação da constitucionalidade das seguintes normas: arts. 411°,1 e 400°,1, al. e) e 409° CPP; A inconstitucionalidade de tal norma foi suscitada pelo recorrente na reclamação pela qual suscitou a nulidade do douto acórdão de 16/10/2003. Na decisão em apreço foram as referidas norma aplicadas de acordo com os seguintes entendimentos: art. 411°,1 CPP: O prazo para interposição do recurso é de quinze dias e conta-se a partir da notificação da decisão ou, tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria. A contagem do prazo para recorrer de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação inicia-se não na data da respectiva notificação ao recorrente, mas do seu depósito na secretaria As normas dos arts. 400°, n.º 1, al. e) e 409°, 1 CPP interpretadas conjugadamente, consagrando o seguinte sentido: Não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão proferida pelo Tribunal da Relação na apreciação de crime com moldura penal com máximo superior a cinco anos mas em que concretamente tenha sido aplicada pela Relação pena igual a cinco anos, por força da proibição de reformatio in pejus Em qualquer um dos arestos em apreço foram violados os seguintes preceitos constitucionais : Arts. 32°, 1 CRP e 6°, 1 CEDH e art. 2° CRP na interpretação supra transcrita e que foi dada ao art. 411°, 1 CPP com violação do:
- Princípio da plenitude das garantias de defesa de arguido em processo penal;
- Princípio da garantia da recorribilidade das decisões em processo penal;
- Princípio do processo justo;
- Princípio da protecção da confiança; Arts. 32°, 1 CRP e 6°, 1 CEDH, art. 2° CRP e art. 32°, 7 CRP na interpretação supra transcrita e que foi dada aos arts. 400°, n.º 1, al. e) e 409°, 1 CPP com violação do:
- Princípio da plenitude das garantias de defesa de arguido em processo penal;
- Princípio da garantia da recorribilidade das decisões em processo penal;
- Princípio do processo justo;
- Princípio da protecção da confiança;
- Princípio do Juiz natural. O presente sobe imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo sobre a decisão recorrida (cfr. art. 78º, 3 L.T.C.).
B) TEMPESTIVIDADE DA INVOCAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS No cumprimento do dever legal de colaboração processual e porque a questão da admissibilidade do presente recurso surge como previsível aduz-se ainda e sumariamente: a) O carácter surpreendente e juridicamente imprevisível das normas em causa interpretadas/aplicadas como o foram i. A data do depósito do acórdão TRC na secretaria Decorre, até da experiência comum, que quem quer que seja notificado de decisão judicial, cujo conhecimento só lhe é dado via postal, não pode, no momento da abertura do envelope, encontrar-se ao 12° dia de um prazo de 15 para recorrer. Tal entendimento é, no mínimo, surpreendente. ii. O critério da “sucumbência” como válido em processo penal Decorre da basilar garantia da plenitude das garantias de defesa do arguido em processo penal, que após a dedução da acusação, o mesmo arguido tenha uma expectativa consolidada em matéria de vias de recurso de que dispõe, não estando sujeito (como em processo civil) a uma qualquer sucumbência. É, por isso, identicamente surpreendente que, no fim do processo, tal direito ao recurso deixe de existir na sua esfera. Ou seja, é surpreendente, porque não é razoavelmente cogitável. b) O momento da aplicação das normas no sentido cuja apreciação da constitucionalidade se suscita Sob o ponto de vista do momento processual de aplicação das normas no sentido que se invoca como inconstitucional, tal aplicação, com tal sentido só ocorreu com a prolação do acórdão que deu causa à reclamação (Ac. STJ de 16/10/2003), sem que tal sentido tivesse sido, sequer, esboçado em qualquer outro aresto anterior. c) A existência de jurisprudência anterior do STJ apreciando a questio da
“sucumbência” Considerando a demais jurisprudência anterior (no que à “sucumbência” tange) citada no acórdão o recorrente refere:
i. Por um lado que não foi destinatário de nenhum desses arestos;
ii. Por outro, refere, com tristeza que, como é do conhecimento comum, hoje em dia, os tribunais superiores, vêm produzindo algumas decisões menos consensuais e, muitas delas, marcadas por menor felicidade e mesmo heterodoxia. Perdoe-se-lhe, pois, se algumas decisões casuisticamente tomadas nos tribunais superiores não são encaradas como encerrando em si o fermento da universalidade, mas apenas como horas menos boas de quem as produziu;
iii. Finalmente, refere, com agrado, que a decisão e aquelas que na mesma se citam não constituem, ainda, uma corrente jurisprudencial com as características de estabilidade e definição doutrinárias que a tais correntes, em geral, se reconhece. São apenas a ilustração do que anteriormente se disse e salvo o devido respeito: a soma de algumas horas menos boas de quem as produziu (Cfr. o que a tal respeito e no mesmo sentido se escreveu no voto de vencido do Sr. Conselheiro C. junto ao acórdão de 16110/2003).
Cumpre apreciar.
3. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo. Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
4. O recorrente, nos presentes autos, não suscitou antes da prolação da decisão recorrida as questões de constitucionalidade que pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional (tais questões apenas foram suscitadas na arguição de nulidade do acórdão de 16 de Outubro de 2003). Pretende, porém, que as interpretações impugnadas se afiguram objectivamente imprevisíveis e inesperadas. Averiguar-se-á se lhe assiste razão.
5. O recorrente pretende ver apreciada a conformidade à Constituição da norma do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo para a interposição do recurso de um acórdão do tribunal da relação que conheceu a final do objecto do processo se deve contar da notificação da decisão e não do respectivo depósito na secretaria judicial (interpretação esta que foi a acolhida pela decisão recorrida). Ora, em face do teor literal do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, o prazo de recurso da sentença conta-se da data do depósito na secretaria. Por outro lado, de acordo com o artigo 97º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, sentença é o acto decisório dos juizes que conhece a final do objecto do processo [que, nos termos da alínea c) do mesmo artigo, é designada por acórdão, quando proferida por um tribunal colegial]. O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra do qual o arguido interpôs recurso conheceu a final do objecto do processo. Nessa medida, afigurava-se objectivamente previsível que o prazo do recurso pudesse ser contado da data do depósito na secretaria (independentemente da conformidade constitucional de tal interpretação, questão que neste momento não
é apreciada). Assim, impendia sobre o recorrente o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade relativa ao artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, antes da prolação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Outubro de
2003. Não tendo tal questão sido suscitada, não se verifica o pressuposto processual do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não se tomará conhecimento do objecto do recurso quanto a essa questão.
6. O recorrente pretende, por outro lado, submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a interpretação dos artigos 400º, nº 1, alínea e), e 409º, do Código de Processo Penal, segundo a qual não é admissível recurso do acórdão que condena em pena concreta de cinco anos de prisão (pena que não pode ser agravada por força de proibição da reformatio in pejus) pela prática de crime cujo limite máximo legal abstractamente previsto ultrapassa os cinco anos. Também quanto a esta questão o arguido dispunha de elementos que lhe permitiam configurar a possibilidade de vir a ser acolhida a dimensão normativa ora questionada. Com efeito, o arguido tinha conhecimento de que a pena aplicada era a de cinco anos de prisão, pena que não podia ser agravada, por força do disposto no artigo 409º do Código de Processo Penal. Enquadrando-se tal interpretação no sentido literal do artigo 400º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal (independentemente, mais uma vez, de tal interpretação ser ou não inconstitucional), era exigível ao recorrente que suscitasse tal questão antes da prolação do acórdão de 16 de Outubro de 2003. Não tendo cumprido tal ónus, não se verifica, também quanto a esta questão, o recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não se tomará conhecimento da mesma.
7. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
O recorrente reclamou para a Conferência, afirmando o seguinte:
Sob o título “A JUSTIÇA PRESCREVEU” escreveu Miguel Sousa Tavares, no jornal
“Público” na sua edição de 16-10-98:
HOUVE UM TEMPO PARA AS REFORMAS, mas esse tempo já passou entre a apatia geral, que convinha a uns e a outros: ao poder político e ao poder judicial. Paralisados pelos interesses corporativos das magistraturas e pela falta de coragem dos governos em enfrentá-las, as reformas que poderiam ter evitado O ESCÂNDALO DE UMA DEMOCRACIA SEM JUSTIÇA nunca foram avante. Ou melhor, apenas foram avante naquilo que atingia os direitos, não dos culpados da situação, mas das suas vítimas: os utentes da justiça. Aumentar os custos judiciais, diminuir os prazos e as garantias de defesa dos arguidos, conceder cada vez mais poderes de investigação criminal, tudo isso os governos fizeram, de cada vez que mexeram nas leis a pedido dos juízes, do Ministério Público ou da Polícia. Mas jamais ousaram ir ao fundo do problema: explicar aos senhores magistrados, uns e outros, que a justiça não existe para os servir a eles, mas para servir os cidadãos que a pagam. A JUSTIÇA É A ÚNICA INSTÂNCIA DE PODER QUE FUNCIONA SEM EFECTIVO CONTROLO EXTERNO, nem sequer quanto ao simples desempenho profissional dos seus pares. É COMO SE ESTIVÉSSEMOS A TRATAR COM SUMOS SACERDOTES DE UM CULTO QUE ESTÁ PARA ALÉM DAS LEIS GERAIS E DO ENTENDIMENTO COMUM. A justiça, em Portugal, está para além da justiça e fora do seu alcance. Não é por acaso que os únicos casos que são rapidamente julgados são os raríssimos processos em que os magistrados se absolvem uns aos outros ou condenam quem os ofende.
(in http://www.terravista.pt/Guincho/7457/AJusti%C3%A7aPrescreveu.htm)
Serve a anterior transcrição para ilustrar a perplexidade que atravessa o espírito do cidadão comum: O mesmo que cada vez mais se persuade que “não vale a pena recorrer à justiça”. Quando, hoje em dia, falamos de cidadãos, falamos de toda as pessoas, não excluindo estrangeiros, ou mulheres e reprimindo como crime a redução de uma pessoa à condição de escravo. Porém, ao lermos o “Tratado da Política” de Aristóteles verificamos que o mesmo diferencia os cidadãos, das mulheres e dos estrangeiros. Do mesmo modo como encara com naturalidade imanente a existência de escravos. Significa isto que a palavra cidadão (que permanece) viu, com a História, o seu significado revisto e ampliado, não sendo hoje cogitável, quando falamos de cidadãos, excluirmos implicitamente as mulheres e os estrangeiros e excluirmos também, admitindo a sua existência, os escravos. Hoje em dia no quadro civilizacional ocidental em que nos inscrevemos quando alguém recebe uma notificação, espera, no mínimo ter um prazo para responder ao seu conteúdo e que tal prazo seja integral e não com 4/5 expirados. É uma regra tão enraizada que não é necessária qualquer formação para a entender. Decorre do conceito de cidadania. Daí que a letra sem história nos possa conduzir aos- escravos, à mulher que devia ser sovada embora com clemência (correcção do séc. XVI), à “deslealdade” americana em Berlim quando fez alinhar Jesse Owens que, para Hitler, não mais era que um macaco. Daí que a letra que diz “depósito” (art. 411°, 1 CPP) não possa abstrair do contexto da História em que se insere. O depósito, como marco para o início do prazo, só é cogitável na História, porque o arguido e seu defensor, presumidamente assistiram à leitura de sentença, não sendo demais exigir-lhes que se desloquem à secretaria, finda a leitura, para aí obterem cópia. Este o conceito que se encontra em linha com a, pressuposta, lealdade processual hodierna. Por outro lado, extensa é a previsão legal em matéria do que seja e para que serve a audiência junto das Relações (art. 423° CPP). Isto porque, na História, se entendeu que do debate nasce a luz e que as decisões judiciais se, nem sempre são iluminadas, a verdade é que, ao menos, procuram sê-lo. Feitos os debates, analisados os argumentos, decide-se (art. 424° CPP). Já a norma que prevê a redacção do acórdão não define um prazo para a decisão
(art. 425° CPP). A Justiça, na História, quer-se célere, para ser eficaz, mas quer-se amadurecida, para ser justa. Por isso se mandam notificar os recorrentes, os recorridos e o Ministério Público da decisão tomada, quando a mesma for tomada (art. 425°, 6 CPP). Entendimento diverso conduz-nos à ideia da decisão que já vai “na pasta” ao tempo dos debates, enquanto Ministério Público, recorrido e recorrente, matraqueiam o verbo “para inglês ver”. Se tal é previsível, sufragável, de encontro à lei e à História, então sim a data do depósito é muito importante ... Por outro lado, se quisermos fazer “jogos de palavras” pouco românticos sempre diremos que o sentido que se extrai da “letra” da lei é o de que só às decisões dos Tribunais singulares (art. 97°, 1, a) CPP) se aplica a regra do depósito
(art. 411º, 1 CPP). É que, na mesma linha “literal” lê-se no art. 97°, 1, c) CPP, por contraponto ao que dispõe a al. a): Os actos decisórios dos juízes tornam a forma de: c) Acórdãos. quando se tratar da decisão de um tribunal colegial. Com salvaguarda do devido respeito, o processo judicial não tem a forma de uma charada ... Ainda na História, não longe vão os tempos em que se chamavam Tribunais a um conjunto de pessoas que diziam ter um “Santo Ofício” e menos longe ainda uns Tribunais que se diziam “plenários”. Nesses, de facto, a interpretação “literal” das normas dos arts. 400°, n.º 1, al. e) e 409° CPP no sentido que se pretende ver censurado era não só previsível, como comum (o que não seria comum seria a existência de um Código de Processo Penal, como o que temos). A História, no entanto, deu “tais voltas” que tais obscuros sentidos já não povoam o espírito do vulgar cidadão. Incauto cidadão ...
TERMOS EM QUE: Deve a conferência ordenar seja tomado conhecimento do recurso.
O Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:
1° Entendemos que, na específica situação dos autos, o recorrente não teve oportunidade processual para suscitar a inconstitucionalidade que imputa à norma constante do artigo 411º, n° 1, do Código de Processo Penal, não parecendo exigível que o devesse suscitar no próprio requerimento de interposição de recurso, apresentado na sequência da notificação do acórdão proferido em conferência pela Relação.
2° Assentando, porém, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça num fundamento alternativo, é evidente a inutilidade desta questão se se concluir que falece o recurso de constitucionalidade reportado à norma constante do artigo 400°, n° 1, alínea e) do Código de Processo Penal.
3° Ora - quanto a tal questão - e ponderada a jurisprudência já existente sobre a interpretação dessa norma - afigura-se que a questão de constitucionalidade da leitura “restritiva” de tal preceito legal podia e devia ter sido colocada pelo recorrente na própria motivação do recurso que apresentou ao Supremo.
4° E importando notar, de qualquer modo, que - face à jurisprudência deste Tribunal Constitucional acerca do “direito ao recurso” do arguido - não é sustentável a existência de um normal triplo grau de jurisdição - não ofendendo seguramente o princípio das garantias de defesa o estabelecimento de um limite no acesso ao Supremo, decorrente da gravidade da pena concreta cominada nas instâncias ao arguido.
5° O que sempre tomaria a questão de constitucionalidade, reportada à norma do artigo 400°, nº 1, alínea e) do Código de Processo Penal, interpretada em termos de não ser admissível o recurso para o Supremo de uma decisão da Relação que aplicasse ao arguido pena inferior a 8 anos de prisão, insusceptível de agravamento no âmbito do recurso por ele interposto para o Supremo, como
“manifestamente infundada”.
6° Termos em que sempre seria de julgar improcedente a presente reclamação.
Cumpre apreciar.
2. O reclamante tece, na reclamação apresentada e transcrita supra, várias considerações sobre as disposições legais relativas ao julgamento dos recursos no Tribunal da Relação, sustentando uma determinada interpretação desses preceitos. No entanto, tais considerações não são pertinentes no contexto da presente reclamação, pois não está agora em causa a apreciação da conformidade à Constituição das normas impugnadas (muito menos a averiguação da interpretação mais adequada do direito infraconstitucional), mas tão-só verificar se era exigível ou não ao reclamante a suscitação das questões de constitucionalidade normativa antes da prolação da decisão recorrida. Assim, e não se ponderando se a interpretação acolhida pela decisão recorrida é ou não conforme à Constituição, cabe reiterar os fundamentos da Decisão Sumária reclamada. Na verdade, em face do teor literal das disposições legais, sempre seria configurável a possibilidade de a interpretação seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, referente à tempestividade do recurso, vir a ser aplicada. Com efeito, o artigo 411º, nº 1º, do Código de Processo Penal, refere expressamente que o prazo para a interposição de recurso é contado do depósito da sentença na secretaria (sendo que sentença é a decisão que conhece a final do objecto do processo, nos termos do artigo 97º do Código de Processo Penal). Não está naturalmente em causa a possibilidade de outras interpretações das mesmas disposições legais, nem mesmo, como se referiu, saber se a interpretação acolhida é a mais adequada. Apenas se considerou, na Decisão Sumária reclamada, que esta era uma interpretação configurável. No entanto, e decisivamente, cabe considerar o seguinte. O artigo 400º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal, consagra o limite de cinco anos para a admissibilidade do recurso, limite que não podia ser ultrapassado no caso concreto, por força da proibição da reformatio in pejus, consagrada no artigo
409º do Código de Processo Penal. Em face deste quadro legal, bem como da jurisprudência já existente sobre a interpretação destes preceitos, era inquestionavelmente previsível a possibilidade de o recurso interposto não vir a ser admitido. Nessa medida, era objectivamente exigível a suscitação da questão de constitucionalidade reportada à leitura restritiva dos preceitos em causa no próprio recurso. Não tendo sido suscitada durante o processo tal questão, o Tribunal Constitucional não poderá tomar conhecimento da mesma no presente recurso de constitucionalidade. Assim, ainda que o recurso interposto fosse considerado tempestivo (em virtude de um hipotético juízo de inconstitucionalidade que o Tribunal Constitucional viesse a formular), tal recurso não poderia ser admitido, por força da interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça dos artigos 400º, nº 1, alínea e), e 409º do Código Penal, interpretação essa insindicável pelo Tribunal Constitucional, uma vez que não se verificam os pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto (o juízo a formular sobre a dimensão normativa subjacente à decisão que considerou o recurso intempestivo sempre seria, portanto, inútil). Os elementos necessários para a suscitação da questão de constitucionalidade, como se demonstrou na Decisão Sumária reclamada, e agora se reitera, existiam nos autos. Desse modo, o não conhecimento do objecto do recurso é exclusivamente imputável à deficiente estratégia processual escolhida pelo ora reclamante (que, cabe lembrar, é, por obrigação legal, representado por advogado). Improcede, pois, a presente reclamação.
4. Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação, confirmando-se a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 11 de Maio de 2004
Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos