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Proc. nº 381/2004
2ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa em que figura como recorrente A., e como recorridos B. e outro, a Relatora proferiu Decisão Sumária, ao abrigo do artigo
78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, por a norma impugnada não ter sido aplicada pela decisão recorrida (fls. 2045 e ss.). A recorrente vem agora reclamar para a Conferência, sustentando o seguinte:
A., Recorrente nos autos supra identificados, em que são Recorridos B. e outro, notificada do despacho de 21/04/2004 e não podendo conformar-se com o decidido, vem - nos termos do disposto no n° 3 do artigo 78°-A da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC)
-, interpor Reclamação para a Conferência nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. Dispõe o n° 1 do artigo 78°-A da L TC que, «Se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso ou que a questão a decidir é simples, designadamente por a mesma já ter sido objecto de decisão anterior do Tribunal ou por ser manifestamente infundada, o relator profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para anterior jurisprudência do Tribunal».
2. No seu requerimento de interposição do presente recurso, a Recorrente delimitou o respectivo objecto pela forma seguinte: “Por tudo o exposto - e porque a proibição legal consignada no n° 2 do artigo 689° do Código de Processo Civil é inconstitucional na leitura hermenêutica que do mesmo preceito fez o Senhor Presidente da Relação de Lisboa -, pretende a R. que o mesmo preceito seja declarado inconstitucional quando a sua leitura permita que o Senhor Presidente do Tribunal da Relação, indo além da verificação dos condicionalismos formais de admissibilidade do recurso, decida ele próprio o mérito do próprio recurso, assim se erigindo em tribunal de 2ª instância que na realidade não é, desta forma violando o direito constitucional da R. ínsito no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, em cujos nºs 1, 2 e 4 se estabelece que «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos ...»; «Todos têm direito, nos termos da lei... ao patrocínio judiciário»; «Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão... mediante processo equitativo».”.
3. Tal requerimento de recurso foi interposto no seguimento da notificação do despacho do Senhor Presidente da Relação de Lisboa de fls. 2016 que reza: «Como meridianamente decorre do art. 700º n° 3, do Código de Processo Civil, das decisões do presidente não há reclamação para a conferência. Indefere-se pois o requerido.».
4. Sucede que tal despacho recaiu sobre um requerimento da Recorrente cujo petitório é: «Por tudo o exposto - e porque a proibição legal consignada no n °
2 do artigo 689° do Código de Processo Civil é inconstitucional -, vem a R. impugnar o despacho de V.Exa. de 05/12/2003, o qual ilegalmente indeferiu as reclamações contra a não admissão dos recursos de agravo interpostos pela R.; esta impugnação deverá ser presente à Secção Social deste Tribunal da Relação, a fim de sobre a mesma recair um acórdão.».
5. Tal requerimento foi deduzido na sequência dos despachos do Senhor Presidente da Relação que sucessivamente: a) indeferiu a reclamação contra a retenção dos recursos de agravo interpostos pela Recorrente (despacho de 05/12/2003); b) indeferiu o pedido de reforma da anterior decisão (fls. 1974); c) indeferiu o requerimento de arguição de nulidades relativamente ao despacho anterior (fls. 1994).
6. O requerimento da Recorrente que o Senhor Presidente da Relação de Lisboa despachou da forma acima transcrita (artigo 3° deste requerimento) tinha como objecto a impugnação judicial do despacho do mesmo Senhor Presidente de
05/12/2003, o qual indeferiu as reclamações contra a não admissão dos recursos de agravo - o que resulta claramente do texto do requerimento e do histórico processual.
7. A decisão do Presidente da Relação não pode ser impugnada, tal como postula o n° 2 do artigo 689° do Código de Processo Civil.
8. A Recorrente entende que esta norma é inconstitucional, no sentido de que a sua leitura permita que o Senhor Presidente do Tribunal da Relação, indo além da verificação dos condicionalismos formais de admissibilidade do recurso, decida ele próprio o mérito do próprio recurso, assim se erigindo em tribunal de 2ª instância que na realidade não é, desta forma violando o direito constitucional da R. ínsito no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, em cujos
[sic] nºs 1, 2 e 4.
9. Tal inconstitucionalidade foi atempadamente alegada.
10. O despacho do Senhor Presidente da Relação de Lisboa indefere a impugnação, apelando ao disposto no artigo 700°, n° 3, do Código de Processo Civil, o qual dispõe: «Salvo o disposto no artigo 688º quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência depois de ouvida a parte contrária».
11. Por sua vez, o artigo 688° do mesmo Código, versando sobre a matéria da
«Reclamação contra o indeferimento ou retenção do recurso» estipula (n° 1) que
«Do despacho que não admita a apelação, a revista ou o agravo e bem assim do despacho que retenha o recurso, pode o recorrente reclamar para o presidente do tribunal que seria competente para conhecer o recurso» .
12. Assim sendo, resulta meridianamente claro que o artigo 700°, n° 3, não tem aplicação ao caso dos autos, pelo que a sua citação se deverá certamente a um lapso de escrita do Senhor Presidente da Relação de Lisboa.
13. O caso dos autos é o de uma reclamação deduzida nos termos do disposto no artigo 688° do Código de Processo Civil - caso excluído, portanto, da previsão do artigo 700°, n° 3 do mesmo Código;
14. sobre essa reclamação foi dado despacho pelo Senhor Presidente do Tribunal da Relação,
15. despacho que, nos termos da disposição cuja constitucionalidade se contesta no presente recurso - n° 2 do artigo 689° do CPC -, não pode ser impugnado.
16. O presente recurso mantém a sua utilidade.
17. A decisão a proferir por este Tribunal Constitucional - caso vá no sentido propugnado pela Recorrente, como esta legitimamente espera -, terá a virtualidade de alterar a decisão recorrida, pois passará a ser admitida a impugnação da decisão do Senhor Presidente da Relação a qual indeferiu as reclamações contra a não admissão dos recursos de agravo deduzidas pela Recorrente.
18. A citação, pelo Senhor Presidente da Relação do artigo 700°, n° 3, que não tem aplicação ao caso dos autos, como acima defendido, deve ter-se por mero lapso de escrita.
19. A norma impugnada foi, de facto, o fundamento da decisão recorrida, que reza verbatim: «Como meridianamente decorre do artº 700º n° 3, do Código de Processo Civil, das decisões do presidente não há reclamação para a conferência. Indefere-se pois o requerido.».
20. Ora o que resulta meridianamente claro da disposição legal citada é que a mesma não tem aplicação ao caso dos autos («Salvo o disposto no artigo
688°...»).
21. A citação de preceito legal não vincula o Tribunal Superior, que pode entender estar essa citação errada.
22. O que sucede nos presentes autos.
23. Aliás, se assim não fosse, estaríamos em presença de uma perversidade do sistema judicial: arguida a inconstitucionalidade de uma determinada norma que impede o recurso de uma determinada decisão e interposto recurso dessa decisão, o juiz recorrido indefere esse recurso invocando uma norma inaplicável ao caso e, por via desse erro, o Tribunal Constitucional não aprecia o recurso de constitucionalidade por a norma realmente aplicável não ter sido fundamento da decisão! Por outro lado:
24. A norma contida no n° 1 do artigo 78°-A da LTC apenas permite decisão sumária pelo Relator - que pode consistir em simples remissão para anterior jurisprudência do Tribunal -, se entender: a) que não pode conhecer-se do objecto do recurso, b) que a questão a decidir é simples, designadamente por a mesma já ter sido objecto de decisão anterior do Tribunal, c) que a questão é manifestamente infundada.
25. Ora a decisão reclamada, afirmando que não pode conhecer-se do objecto do recurso por a norma impugnada não ter sido fundamento da decisão recorrida, incorre em vício que justifica a sua reforma.
26. Como visto supra, a norma impugnada é a única que podia dar sustentação à decisão recorrida, enquanto que a norma citada no texto da decisão não tem aplicação ao caso dos autos. Nestes termos, deve a presente reclamação ser atendida e a decisão reclamada ser reformada, no sentido de vir este Tribunal Constitucional a tomar conhecimento do objecto do recurso. Para tanto, R. a V.Exa. seja admitida a presente reclamação, a fim de sobre a mesma se pronunciar a conferência.
Por seu turno os recorridos pronunciaram-se nos seguintes termos:
1° Basta, basta de uma vez por todas !
2° A Ré, com todas as manobras dilatórias e entorpecedoras da acção da justiça que vem tão reiterada quanto impunemente utilizando, já conseguiu dilatar o cumprimento ou execução das sentenças condenatórias que contra ela foram proferidas desde há já quase ano e meio!?
3° Não contente com isso, vem reeditar neste Tribunal Constitucional as manobras de sempre - reclama para a conferência, a seguir, e face à inevitável decisão desfavorável, pede a aclaração para, logo de seguida e face ao indeferimento desta, arguir uma nulidade, para face ao respectivo desatendimento, inventar um qualquer recurso sabe-se lá para onde, para face à não admissão deste deduzir uma qualquer reclamação e assim sucessiva e impunemente. Ora,
4° Compete ao julgador, nos termos do ano 265°, n° 1 do C.P.C., “providenciar pelo andamento regular e célere do processo (...) recusando o que for impertinente ou meramente dilatório”.
5°
É isso que os AA. e recorridos esperam firmemente da parte da Justiça!!
6° Quanto à “reclamação” ora sob resposta é manifesto que a mesma não tem qualquer vislumbre de fundamento, como aliás a própria R. bem sabe. Com efeito,
7° Indeferida a reclamação que apresentara ao Sr. Presidente da Relação, a Ré apresentou um requerimento de reforma de tal indeferimento, indeferido este, por seu turno, veio a Ré arguir umas fantasmagóricas nulidades da decisão e face ao
(novo) indeferimento de tal arguição, a Ré apresentou uma reclamação para a conferência e o Sr. Juiz Presidente - muito bem e sem qualquer pretenso “lapso de escrita” - decidiu que “como meridianamente decorre do artº 700º, n° 3 do C.P.C., das decisões do Presidente não há reclamação para a conferência. Indefere-se pois o requerido”,
8° Julgando que poderia assim continuar a eternizar a dilação, a Ré veio então pretender interpor um recurso para este Tribunal Constitucional, cujo objecto era a impugnação de uma norma que, todavia, não era aquela em que (bem, mas bem ou mal, isso agora tanto monta) se fundamenta a decisão recorrida.
9° Correctamente decidiu, pois, V.Exa ao proferir, nos termos do art° 78°-A, nº 1 da Lei n° 28/82, decisão sumária no sentido de não conhecer do objecto de tal recurso.
10º A reclamação para a conferência ora sob resposta não tem, pois, qualquer vislumbre de fundamento e antes consubstancia uma postura de continuada produção de incidentes inteiramente anómalos e de reiterada litigância de má fé, que se espera mereça a adequada apreciação e decisão por parte deste Tribunal Constitucional.
Cumpre apreciar.
2. A recorrente pretende demonstrar que no caso é aplicável a norma do artigo
685º do Código de Processo Civil, sustentando que a invocação na decisão recorrida do artigo 700º, nº 3, do mesmo diploma se deveu a mero lapso de escrita. Ora, nada nos autos permite concluir pela ocorrência de qualquer lapso manifesto. Por outro lado, não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar se o direito infraconstitucional foi bem ou mal aplicado. Com efeito, apenas compete ao Tribunal Constitucional apreciar se o direito efectivamente aplicado pela decisão recorrida é ou não inconstitucional. E esta lógica que subjaz ao controlo de constitucionalidade não cria nenhuma perversidade do sistema, na medida em que compete aos tribunais comuns, nas suas instâncias superiores, controlar a aplicação correcta ou errónea do Direito. Aliás, o próprio controlo da constitucionalidade das decisões judiciais compete a esses tribunais. Nos termos da Constituição [artigo 280º, nº 1, alínea b) e nº 6], porém, ao Tribunal Constitucional compete ser a “última instância” na matéria de controlo da constitucionalidade normativa, na medida em que é um Tribunal com competência para verificar a concordância com a Constituição da actividade legislativa, quer directamente emanada do legislador quer proveniente da formulação pelo juiz de critérios normativos, a partir da lei, aplicáveis ao caso concreto e de certa forma determinados pela solicitação interpretativa da lei suscitada pelo caso concreto. Ora, no caso concreto, é óbvio que o critério normativo que presidiu à decisão foi o artigo 700º, nº 3, não só porque tal foi expressamente afirmado, mas, decisivamente, porque foi ao abrigo desse preceito que o tribunal recorrido fixou os pressupostos da sua decisão. Não se trata, assim, de um caso em que haja uma linha argumentativa e de fundamentação desfasada do preceito invocado, situação em que o Tribunal Constitucional poderia considerar que a ratio decidendi normativa seria diversa do preceito invocado e que um outro preceito teria sido implicitamente aplicado. Nessa medida, reitera-se a fundamentação da Decisão Sumária recorrida que não é afectada pela presente reclamação. Refira-se, por último, que, como resulta expressamente do artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, ao contrário do que afirma a recorrente, a Decisão Sumária pode ter lugar quando o Relator entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso, o que, como se demonstrou, sucede nos presentes autos. Com efeito, o artigo 78º-A, nº 1, em conjugação com o artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional define como pressuposto do recurso de constitucionalidade a aplicação pela decisão recorrida da norma impugnada, o que, não acontecendo, tornará inútil a formulação de qualquer juízo de inconstitucionalidade.
É pois improcedente a presente reclamação.
3. Em face do exposto o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 19 de Maio de 2004
Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos