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Processo n.º 653/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A. pretende – “nos termos dos artigos 69°, 71°, 72° n.º 1 alínea b), de harmonia com o estatuído no artigo 70° n.º 1 alíneas b) e g), todos do disposto na Lei n.º 28/82 de 15/11” – recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido em 25 de Março de 2004 no Supremo Tribunal de Justiça pelo qual foi decidido conceder parcial provimento ao recurso no tocante à qualificação jurídico-penal dos factos e quanto à medida da pena, e o condenou pela prática do crime de homicídio simples previsto no artigo 131º do Código Penal, na pena de 10 anos de prisão.
No seu requerimento diz o seguinte:
“(...)
1- Dispõe o n.º 1 do artigo 32° da CRP que: “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa ...”;
2- O artigo 150° do CPP está ferido de inconstitucionalidade em face do disposto no artigo 32° da CRP, visto que, segundo esta norma constitucional, o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso;
3- Tendo-se feito um auto reconstituição, não por indicações do arguido, sem a presença de um Juiz, e de um Advogado, apenas com a presença do arguido, já preso e bem sovado no dia anterior pela P.J., é tal acto-reconstituição nula e de nenhum efeito;
4- Pela análise da cassete vídeo, que o Tribunal da Relação de Coimbra não quis apreciar, vê-se a forma como foi feita a reconstituição, que de reconstituição nada teve;
5- O Supremo Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre a inconstitucionalidade invocada pelo arguido.
6- Estamos perante uma situação em que se agiu contra a Lei e contra a Constituição aplicando-se uma norma em completa extrapolação dos direitos de defesa do arguido.
7- Tendo em conta o que foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão agora sob recurso, verificamos que nele se decidiu alterar a qualificação jurídica do crime pelo qual o arguido vinha acusado.
8- Nos termos do artigo 358° do CPP, quando o Tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, deverá comunicar tal alteração ao arguido e conceder-lhe, se o arguido o requerer, o prazo necessário para a preparação da defesa.
9- O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria, nomeadamente no Ac. n.º 16/97 em que decidiu: “... Assim sendo, porque a jurisprudência obrigatória estabelecida no Assento n.º 2/93 não garante que ao arguido seja, nestes casos, dado conhecimento da nova qualificação jurídica dos factos em ordem poder ser exercido o seu direito de defesa, há-de concluir-se no sentido da sua inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 32°, n.º 1 da Constituição ...”;
10- Nos presentes autos seguiu-se a esteira daquele entendimento em que se considerou como correcto alterar a qualificação jurídica sem que fosse dado ao arguido qualquer prazo para defesa.
11- Procedeu-se de acordo com um entendimento, nomeadamente do Assento n.º 2/93, Assento este que já tinha sido considerado como inconstitucional por Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional.
12- A decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça não assegurou todos os direitos de defesa do arguido, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo
32° da CRP;
13-Daí, o Acórdão recorrido violar o disposto nos artigos 12°, 13°, 27°, n.º 6 do artigo 29° e 32° da Constituição da República Portuguesa.”
2. Porém, este Tribunal entendeu não dever conhecer do objecto do recurso por decisão sumária de 9 de Junho de 2004, do seguinte teor:
“1. A. foi condenado, no Tribunal Judicial da Marinha Grande, por acórdão proferido em 2 de Maio de 2002, pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131º e 132º ns. 1 e 2 alínea a) do Código Penal, na pena de 18 anos e 6 meses de prisão. A Relação de Coimbra confirmou, por acórdão de 22 de Outubro de 2003, essa decisão; mas o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão proferido em 25 de Março de 2004, decidiu conceder provimento ao recurso no tocante à qualificação jurídico-penal dos factos e quanto à medida da pena e condenou o arguido, pela prática do crime de homicídio simples previsto no artigo 131º do mesmo diploma legal, na pena de 10 anos de prisão.
2. É desta decisão que vem interposto o presente recurso “nos termos dos artigos 69°, 71°, 72° n.º 1 alínea b), de harmonia com o estatuído no artigo 70° n.º 1 al.s b) e g), todos do disposto na Lei n.º 28/82 de 15/11, e alterações subsequentes”. No requerimento de interposição de recurso, diz o ora recorrente: [...]
3. O recurso de fiscalização concreta previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, incide obrigatoriamente sobre normas jurídicas (norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo) aplicadas na decisão recorrida como fundamento jurídico da decisão e versa sobre a conformidade constitucional dessa norma jurídica. Não se trata – e este Tribunal tem insistentemente afirmado este princípio – de apurar de eventual ofensa à Constituição provocada pela decisão recorrida enquanto processo concretizador da solução jurídica da causa, mas da aplicação, nessa solução, de uma norma inconstitucional. De modo que o objecto do recurso consiste, em suma, na aferição da conformidade constitucional de uma determinada norma (ou da sua interpretação) efectivamente aplicada na decisão; está fora desse objecto a apreciação do processo ou do raciocínio lógico-jurídico que tenha presidido à aplicação no caso concreto de uma determinada norma, ainda que o resultado surja como aparentemente desconforme com os princípios ou normas constitucionais. No âmbito deste recurso o Tribunal não aprecia decisões jurisdicionais, pois apenas lhe é lícito exercer um controlo normativo.
É ao abrigo desta alínea que vem interposto o recurso de constitucionalidade reportado ao artigo 150º do Código de Processo Penal. Ora, no recurso em análise o recorrente visa manifestamente questionar a conformidade constitucional da decisão. Isto é, o recorrente não está a colocar uma questão de inconstitucionalidade normativa, mas a questionar a subsunção dos factos ao direito que foi acolhida na decisão e cujo resultado é, no seu entender, ofensivo de todos os direitos de defesa do arguido.
É o que resulta das alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e dos termos do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, em que o recorrente questiona a valoração que o tribunal fez do auto de reconstituição e em que aponta à decisão, com toda a clareza, o vício resultante da desconformidade constitucional. Neste contexto, não pode considerar-se ter sido suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, mas antes ter sido dirigida à própria decisão recorrida uma censura de inconstitucionalidade, pelo que se não verificam os pressupostos de admissibilidade deste tipo de recurso.
4. O recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC tem, como condição de admissibilidade, a aplicação na decisão recorrida de norma (ou de interpretação normativa) anteriormente já julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional. O requisito exige uma coincidência efectiva entre a norma aplicada e a norma julgada inconstitucional. Pelos termos do requerimento de interposição de recurso parece resultar que essa norma é a do artigo 358º do Código de Processo Penal e que já teria sido julgada inconstitucional pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 16/97. Ora, aquele acórdão apreciou a constitucionalidade do Assento n.º 2/93 que determinou a seguinte jurisprudência obrigatória:
“Para os fins dos artigos 1º, alínea f), 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº
2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.”, tendo decidido,
“Julgar inconstitucional o Assento nº 2/93, publicado no Diário da República, I Série-A, de 27 de Janeiro de 1993, enquanto interpreta como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa”. Ora, a norma ou a sua interpretação normativa anteriormente julgada inconstitucional não foi a aplicada na decisão recorrida. A decisão recorrida procedeu, isso sim, à alteração da qualificação jurídica do crime de homicídio qualificado para o crime de homicídio simples, com condenação do arguido em pena menos grave, resultado coincidente, aliás, com a opinião do próprio recorrente – conclusões 41 e 42 da respectiva alegação. Em suma, falta manifestamente o pressuposto de admissibilidade do recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC ao abrigo do qual recorre o interessado. Nestes termos, decide-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, não conhecer do objecto do recurso. (...)”
3. Contra esta decisão reclama o interessado nos seguintes termos:
“1° – Conforme resulta dos autos, foi apresentado recurso para o Tribunal Constitucional, interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do artigo 70° da Lei n.
28/82 de 15 de Novembro.
2° – Na sua motivação de recurso perante o Tribunal Constitucional, o recorrente invocou a inconstitucionalidade da norma do artigo 150° do CPP, por violação do artigo 32°, n.º 1 da Lei Fundamental.
3° – De acordo com o que já tinha sido invocado durante o processo.
4° – Pois esta questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 150° do CPP já tinha sido invocada em momento anterior e no decurso do processo, conforme se verificará dos autos.
5° – Sendo ainda certo que, conforme foi também alegado por parte do recorrente no seu recurso para o Tribunal Constitucional, o STJ não decidiu, ou não se pronunciou sobre a inconstitucionalidade invocada.
6° – Por outro lado, nos termos da al. g) do n. 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, dispõe-se que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos Tribunais que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional.
7° – Em sede de motivação foi invocado o decidido pelo Tribunal Constitucional no Ac. n.º 16/97 em que decidiu: “... Assim sendo, porque a jurisprudência obrigatória estabelecida no Assento n.º 2/93 não garante que ao arguido seja, nestes casos, dado conhecimento da nova qualificação jurídica dos factos em ordem poder ser exercido o seu direito de defesa, há-de concluir-se no sentido da sua inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 32°, n. 1 da Constituição ...”;
8° – Este Acórdão dizia respeito ao Assento 2/93 que interpretava como correcto alterar a qualificação jurídica sem que fosse dado ao arguido qualquer prazo para defesa.
9° – Entendimento este também entendido na decisão que motivou o recurso para o Tribunal Constitucional.
10° – E daí este motivo de recurso, na medida em que nos tínhamos que insurgir contra um entendimento (o Assento n. 2/93 e o do Acórdão do STJ sob recurso) que já tinha sido considerado como inconstitucional por Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional.
11° – Verifica-se assim, quer pelo facto de no decurso anterior do processo já ter sido invocada a inconstitucionalidade da norma do artigo 150º do CPP, quer ainda pelo facto de se efectuar na decisão sob recurso uma interpretação do artigo 358° do CPP a qual já tinha sido declarada como inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional, verifica-se estarem reunidos os pressupostos necessários para que o recurso apresentado perante o Tribunal Constitucional fosse apreciado.
12° – O que também aqui se requer. Termos em que, se requer a V. Ex.as., a revogação da decisão reclamada devendo os autos prosseguir afim de serem apreciadas as inconstitucionalidades invocadas, por ser de JUSTIÇA.”
4. O representante do Ministério Público neste Tribunal manifestou a opinião de que a reclamação deverá ser indeferida.
5. Conforme se vê do antecedente relatório, a decisão de não conhecer do objecto do recurso fundamentou-se, quanto ao interposto ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, na circunstância de não estar em causa uma questão de inconstitucionalidade normativa, visto a censura de inconstitucionalidade ter sido dirigida pelo recorrente à própria decisão recorrida. E explicou-se que “ no recurso em análise o recorrente visa manifestamente questionar a conformidade constitucional da decisão. Isto é, o recorrente não está a colocar uma questão de inconstitucionalidade normativa, mas a questionar a subsunção dos factos ao direito que foi acolhida na decisão e cujo resultado é, no seu entender, ofensivo de todos os direitos de defesa do arguido. É o que resulta das alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e dos termos do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, em que o recorrente questiona a valoração que o tribunal fez do auto de reconstituição e em que aponta à decisão, com toda a clareza, o vício resultante da desconformidade constitucional. Neste contexto, não pode considerar-se ter sido suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, mas antes ter sido dirigida à própria decisão recorrida uma censura de inconstitucionalidade, pelo que se não verificam os pressupostos de admissibilidade deste tipo de recurso.”
Ora esta fundamentação não é verdadeiramente questionada pela presente reclamação, sendo, assim, de manter o decidido.
6. Quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n. 1 do artigo
70º da LTC, a decisão assentou no entendimento de que a norma anteriormente julgada inconstitucional não fora aplicada na decisão recorrida. A decisão recorrida procedera à alteração da qualificação jurídica do crime de homicídio qualificado para o crime de homicídio simples com condenação do arguido em pena mais leve, o que coincide, aliás, com a opinião expressa pelo próprio recorrente nas conclusões 41 e 42 da respectiva alegação. A matéria anteriormente julgada inconstitucional tem a ver com a situação oposta, isto é, com a circunstância de a diferente qualificação jurídico-penal dos factos conduzir à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevendo “que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa”.
É, pois, de concluir que a norma anteriormente julgada inconstitucional não foi aplicada na decisão recorrida.
Ora, também nesta parte, não se mostra contestado o fundamento da decisão reclamada, que se nos afigura ser de manter.
Nestes termos, indefere-se a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 13 de Julho de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos