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Processo n.º 557/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. O relator do presente processo proferiu, em 17 de Maio de 2004, decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), com a seguinte fundamentação:
“1. A., B. e C. reclamaram para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa contra o despacho do juiz da 7.ª Vara Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa, de 16 de Dezembro de 2003, que não admitiu recurso interposto contra despacho de 1 de Julho de 2003, na parte em que indeferira pretensão dos autores de denúncia ao Ministério Público de determinados factos e na parte em que os condenara na multa de 2 unidades de conta por junção tardia de documentos, por entender que, quanto à primeira decisão, a mesma era irrecorrível, por ter sido proferida no uso legal de um poder discricionário, e, quanto à segunda, por o valor da sucumbência não consentir o recurso.
Por despacho de 9 de Março de 2004, o Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu a reclamação, por igualmente entender que o artigo
678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) veda o recurso quando o valor da sucumbência for inferior a metade do valor da alçada do tribunal que proferiu a decisão, e por os artigos 156.º, n.º 4, e 679.º do CPC não consentirem recurso de decisões proferidas no uso de um poder discricionário.
Notificados deste despacho, dele interpuseram os reclamantes recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das seguintes «normas»:
1) – «a extraída dos artigos 156.º, n.º 4, e 679.º do CPC, segundo a qual o envio dos autos com vista ao Ministério Público, requerida pelas partes ao abrigo do artigo 242.º, n.º 1, alínea b), do CPP, para apreciação de actos e documentos impugnados nos mesmos, arguidos de falsidade e de consubstanciarem os ilícitos do artigo 256.º, n.º 3, com referência ao n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal, não constitui qualquer obrigação vinculada do juiz da 1.ª instância, antes configura uma situação de poder discricionário neles previstas, cujo exercício dispensa a fundamentação legal do artigo 158.º, n.º
1, do CPC, decorrente da norma do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição»; e
2) – «a extraída do artigo 678.º, n.º 1, do CPC, segundo a qual é irrecorrível a decisão proferida em processo de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, que julga irrelevantes documentos oferecidos para impugnação de documentos juntos pela parte contrária ao abrigo do disposto no artigo 512.º do CPC, e para prova da arguida falsidade dos mesmos, e falsificação do artigo 256.º, n.º 3, com referência ao n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal, julga tardio e injustificado o oferecimento de tais documentos, sem decidir se são ou não admitidos nos autos, e recusa vista destes ao Ministério Público para efeito do disposto no artigo 241.º do CPP».
Mais indicou que a primeira «norma» «viola as garantias constitucionais consignadas nos artigos 202.º, n.º 2, no segmento relativo à incumbência de os tribunais reprimirem a violação da legalidade democrática, e
205.º, n.º 5, da Constituição, e o correspondente direito fundamental do cidadão de obter a efectivação de tais garantias, directamente aplicável ex vi seu artigo 18.º, n.º 1», e a segunda «viola os princípios e as normas dos artigos
2.º, 13.º, 18.º, n.º 1, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição», e que tais questões de constitucionalidade foram suscitadas na reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, «designadamente nas suas partes I, ponto 4.3, II, ponto 2, e IV, pontos 1.1. e 3».
O recurso foi admitido pelo Desembargador Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, decisão que não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC). E, com efeito, entende-se que o presente recurso é inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
2. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o que torna a sua admissibilidade dependente da verificação dos requisitos de, por um lado, a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de, por outro lado, a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelos recorrentes.
Ora, desde logo, a decisão recorrida não fez aplicação das dimensões normativas indicadas pelos recorrentes no requerimento de interposição do recurso: quanto à primeira «norma», nenhuma pronúncia, explícita ou implícita, se contém nessa decisão quanto à dispensa de fundamentação da não comunicação ao Ministério Público de determinados factos, já que o despacho ora impugnado se limitou a apreciar a questão da recorribilidade dessa «não comunicação»; quanto à segunda «norma», não se contém na mesma decisão qualquer pronúncia relativa à irrelevância de determinados documentos nem quanto ao carácter tardio da sua junção, pois, de novo, o despacho impugnado se limitou a apreciar a questão da recorribilidade de uma decisão que se entendeu ter representado para os recorrentes apenas o «prejuízo» do pagamento de uma multa (uma vez que os documentos por eles apresentados foram efectivamente juntos aos autos), de valor inferior ao correspondente a metade da alçada do tribunal.
Não tendo o despacho impugnado feito aplicação, como ratio decidendi, das dimensões normativas que os recorrentes apodam de inconstitucionais, tanto basta para se concluir pela inadmissibilidade do presente recurso, tornando desnecessária a indagação da verificação do requisito de as questões de inconstitucionalidade normativa que se pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional terem sido suscitadas, ante o tribunal recorrido e antes de proferida a decisão impugnada, em termos processualmente adequados a que esse tribunal ficasse constituído na obrigação de delas conhecer.”
1.2. Notificados os recorrentes desta decisão, a recorrente A., veio requerer a sua reforma, nos seguintes termos:
“1. A decisão ora sindicada não é passível de recurso. É passível de reclamação para a conferência. Reclamação e recurso são, porém, como é sabido, formas distintas de impugnação de uma decisão judicial.
Com a devida vénia: a reclamação consiste num pedido de reapreciação de uma decisão dirigida ao tribunal que a proferiu, com ou sem a invocação de elementos novos pelo reclamante; o recurso ordinário é um pedido de reapreciação de uma decisão ainda não transitada, dirigido a um tribunal de hierarquia superior fundamentada na ilegalidade da decisão e visando revogá-la ou substituí-la por uma outra mais favorável ao recorrente (cf. Prof. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, págs. 369-370).
2. Inexistindo recurso de uma decisão jurisdicional – como é o caso
– é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por manifesto lapso, não haja tomado em consideração (cf. artigo 669.°, n.° 2, alínea b), do CPC).
Tem-se por pacífico que esta norma é também aplicável ao processo de julgamento de constitucionalidade de normas, ex vi artigo 69.° da Lei Orgânica desse Alto Tribunal.
Ora, e salvo o devido respeito,
3. A decisão sumária sindicada padece do vício previsto na citada norma do artigo 669.° do CPC.
Tal norma tem uma dimensão axiológica da maior relevância na realização da Justiça, especialmente da Justiça constitucional.
Para o sublinhar, e tendo em conta o disposto no artigo 9.º, n.° 1, do Código Civil, transcreve-se, com a devida vénia, o que, a respeito de tal norma, se contém no pensamento legislativo: destarte, sempre na preocupação de realização efectiva e adequada do direito material e no entendimento de que será mais útil, à paz social e ao prestígio e dignidade que a administração da justiça coenvolve, corrigir que perpetuar um erro juridicamente insustentável, permite-se, embora em termos necessariamente circunscritos e com garantias do contraditório, o suprimento do erro de julgamento mediante reparação de decisão de mérito pelo próprio juiz decisor, ou seja, isso acontecerá nos casos em que
... dos autos constem elementos, designadamente de índole documental, que, só por si e inequivocamente, impliquem decisão em sentido diverso e não tenham sido considerados ... por lapso manifesto (preâmbulo do Decreto-Lei n.° 329-A/95, de
12 de Dezembro).
A preocupação legislativa de prosseguir a realização da paz social e de salvaguardar o prestígio e a dignidade que a administração da justiça coenvolve assume a maior relevância na concretização da incumbência cometida aos tribunais nos artigos 202.°, n.° 2, e 221.º da Constituição, e na realização do Estado de direito consagrado no artigo 2.°, por imposição do artigo 9.°, alínea b), da mesma Lei.
4. Embora não referida expressamente na Lei Orgânica desse Alto Tribunal, tem-se, pois, como pacífico que, em obediência ao princípio da unidade do sistema jurídico, a decisão do Relator nesse Pretório, insusceptível de recurso, é passível de reforma ao abrigo da invocada norma do citado artigo
669.º do CPC. Questão é que se verifiquem os pressupostos nele previstos.
Efectivamente,
5. É evidente que a decisão sumária sindicada, salvo o devido respeito, não teve em consideração os seguintes elementos constantes dos autos de recurso:
5.1. Reclamando ao abrigo e nos termos do artigo 688.º do CPC, foi dito:
«3. As normas aplicadas na decisão ora impugnada são inconstitucionais.
3.1. A extraída dos artigos 156.º, n.° 4, e 679.° do CPC, segundo a qual a observância do disposto no artigo 242.º, n.° 1, alínea b), do CPP, constitui matéria confiada ao prudente arbítrio do julgador, é inconstitucional por violar a garantia do artigo 202.º, n.° 2, da CRP, no segmento relativo à incumbência de os tribunais reprimirem a violação da legalidade democrática.»
O segmento normativo do artigo 679.º do CPC, aqui sindicado, é, como resulta da decisão reclamada, ter esta sido proferida, pretensamente, no uso legal de um poder discricionário.
5.2. Apreciando e decidindo tal questão de direito, disse o Ex.mo Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa:
«No que respeita ao envio dos autos com vista ao Ministério Público entendemos também que não existe qualquer obrigação vinculada do M.mo Juiz da
1.ª instância nesse sentido. (...)
Em nossa opinião estamos manifestamente perante uma situação de poder discricionário. (...)
Assim, muito bem esteve o M.mo Juiz da 1.ª Instância ao não admitir o recurso nos termos do disposto nos artigos 156.º, n.° 4, ... e 679.º, todos do Código de Processo Civil.»
5.3. No requerimento de interposição do recurso, disse a recorrente sobre tal questão de direito:
«1. Nos termos do disposto no artigo 75.°-A, n.° 1, da Lei n.°
28/82, de 15 de Novembro, cumpre-lhe identificar as normas cuja inconstitucionalidade pretende seja apreciada. São elas:
a) A extraída dos artigos 156.º, n.º 4, e 679.º do Código do Processo Civil (CPC, doravante), segundo a qual o envio dos autos com vista ao Ministério Público, requerido pelas partes ao abrigo do artigo 242.º, n.° 1, alínea b), do CPP, para apreciação de actos e documentos impugnados nos mesmos, arguidos de falsidade e de consubstanciarem os ilícitos do artigo 256.°, n.° 3, com referência ao n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal, não constitui qualquer obrigação vinculada do Juiz de 1.ª instância, antes configura uma situação de poder discricionário neles prevista ...
2. Em cumprimento do disposto no artigo 75.°-A, n.° 2, da dita Lei, cumpre-lhe indicar as normas e princípios constitucionais violados pelas normas extraídas dos referidos artigos do CPC:
a) A extraída das disposições conjugadas dos artigos 156.º, n.° 4, e
679.° do CPC, com a dimensão supra referida, viola as garantias constitucionais consignadas nos artigos 202.º, n.° 2, no segmento relativo à incumbência de os tribunais reprimirem a violação da legalidade democrática ...»
5.4. No requerimento de interposição do recurso, disse a recorrente em cumprimento do disposto no artigo 75.°-A, n.° 2, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, sobre tal questão de direito:
«a peça processual em que foi suscitada a questão de inconstitucionalidade é a reclamação deduzida ao abrigo do artigo 688.° do CPC, designadamente nas suas partes ... IV, pontos 1.1. e 3.»
6. A decisão do Ex.mo Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, quanto ao requerimento de vista ao Ministério Público, tem, manifestamente por ratio decidendi a norma aplicada quer em 1.ª instância quer por ele próprio, segundo a qual a apreciação de tal requerimento e a respectiva decisão são subsumíveis ao 2.° segmento normativo do artigo 679.° do CPC.
Foi por entender que a dimensão normativa de tal segmento é inconstitucional que a recorrente reclamou nos termos do artigo 688.º do CPC. Tendo tal dimensão normativa sido confirmada e aplicada na decisão proferida ao abrigo do artigo 689.º do mesmo Código, foi dela interposto o competente recurso de constitucionalidade.
Na Relação foi, aliás, enfatizada tal dimensão normativa ao proclamar-se:
a) «entendemos também que não existe qualquer obrigação vinculada do M.mo Juiz da 1.ª Instância nesse sentido»;
b) «estamos manifestamente perante uma situação de poder discricionário».
7 . A decisão sumária sindicada é omissa sobre ter ou não sido aplicada a dimensão normativa que o Juiz de 1.ª instância extraiu do artigo
679.°, 2.° segmento, do CPC, e aplicou na decisão reclamada, e o tribunal ad quem confirmou, enfatizando-a na sua fundamentação, e aplicando-a na decisão final.
Dos autos constam os elementos em que se revela a aplicação de tal dimensão normativa do artigo 679.º do CPC; tais elementos implicam, só por si, necessariamente, decisão diversa da proferida; a sua não consideração só pode dever-se a lapso manifesto.
8. Atento o exposto, pede a recorrente, ora reclamante, reforma da decisão sumária sindicada, ao abrigo do artigo 669.°, n.° 2, alínea b), do CPC, aplicável ex vi artigo 69.º da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, isto é, pelo Ex.mo Juiz Conselheiro Relator, proferindo decisão de notificação para alegações.”
1.3. Notificados os recorridos, as recorridas D., e E., apresentaram a seguinte resposta:
“1. É de todo infundada a pretensão da recorrente.
2. Desde logo, e tendo em conta que a douta decisão sumária poderia ser objecto de reclamação para a conferência, seria nesta que a recorrente, querendo, deveria ter deduzido o pedido de reforma da decisão – é a isso que conduz a aplicação, com as necessárias adaptações, da norma do artigo 669.°, n.º 3, do CPC.
3. Afigura-se não ser admissível, por conseguinte, o autónomo pedido de reforma da douta decisão sumária deduzido pela recorrente.
4. Ainda que o pedido em causa tivesse cabimento processual, sempre deveria ser indeferido, uma vez que não se verifica o pretenso lapso manifesto invocado pela recorrente, alegadamente resultante da não consideração de elementos constantes dos autos.
5. A douta decisão sumária julgou não verificados os requisitos de que depende o recurso para o Tribunal Constitucional por, desde logo, a douta decisão recorrida não ter feito aplicação, como ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelos recorrentes. Ora, para assim decidir, foram tomados em consideração os elementos relevantes do processo, e, concretamente, o teor da douta decisão recorrida.
6. Isso mesmo é inequívoco quando se afirma, na douta decisão sumária, o seguinte:
«Ora, desde logo, a decisão recorrida não fez aplicação das dimensões normativas indicadas pelos recorrentes no requerimento de interposição do recurso: quanto à primeira “norma”, nenhuma pronúncia, explícita ou implícita, se contém nessa decisão quanto à dispensa de fundamentação da não comunicação ao Ministério Público de determinados factos, já que o despacho ora impugnado se limitou a apreciar a questão da recorribilidade dessa “não comunicação” (...).»
7 . É indisputável, por conseguinte, que nenhum lapso existe, muito menos manifesto, ao não se admitir o recurso.
Termos em que não deverá admitir-se o pedido de reforma da douta decisão sumária ou, se assim não se entender, deverá indeferir-se esse mesmo pedido.”
1.4. Proferiu então o relator o seguinte despacho:
“O sentido da norma do n.º 3 do artigo 669.º do Código de Processo Civil (CPC), embora aí apenas se mencione expressamente a hipótese de recurso da decisão sobre que incide o pedido de reforma, é o de, cabendo impugnação dessa decisão, ser no seu âmbito que deve ser formulado o pedido de reforma, o que não impede o autor da decisão de conhecer imediatamente desse pedido (cf. remissão para o n.º 4 do artigo 668.º). Só perante decisões insusceptíveis de qualquer forma de impugnação, é que o pedido de reforma da decisão deve ser formulado em requerimento autónomo dirigido ao autor da decisão.
No presente caso, do despacho do relator cabe reclamação para a conferência, figura que, para este efeito – tal como para o previsto no n.º 3 do artigo 70.º da LTC –, é equiparada a recurso ordinário.
Assim, é inadmissível pedido autónomo de reforma da decisão sumária em causa.
No entanto, por respeito pelo princípio pro actione e da preferência pelas decisões de mérito em detrimento das de mera forma, e à semelhança do previsto no artigo 688.º, n.º 5, do CPC, entende-se justificar-se a «convolação» do pedido de reforma da decisão sumária em reclamação para a conferência dessa mesma decisão, determinando-se, para esse efeito, a submissão dos autos à conferência (artigo 700.º, n.º 3, do CPC).”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
A reclamante não questiona a decisão sumária reclamada na parte em que aí se entendeu não ser possível conhecer da questão da constitucionalidade da “segunda norma” referida pelos recorrentes, a saber: “a extraída do artigo 678.º, n.º 1, do CPC, segundo a qual é irrecorrível a decisão proferida em processo de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, que julga irrelevantes documentos oferecidos para impugnação de documentos juntos pela parte contrária ao abrigo do disposto no artigo 512.º do CPC, e para prova da arguida falsidade dos mesmos, e falsificação do artigo
256.º, n.º 3, com referência ao n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal, julga tardio e injustificado o oferecimento de tais documentos, sem decidir se são ou não admitidos nos autos, e recusa vista destes ao Ministério Público para efeito do disposto no artigo 241.º do CPP”, decisão essa que se fundou na constatação de que, quanto a essa segunda «norma», “não se contém na mesma decisão qualquer pronúncia relativa à irrelevância de determinados documentos nem quanto ao carácter tardio da sua junção, pois, de novo, o despacho impugnado se limitou a apreciar a questão da recorribilidade de uma decisão que se entendeu ter representado para os recorrentes apenas o «prejuízo» do pagamento de uma multa (uma vez que os documentos por eles apresentados foram efectivamente juntos aos autos), de valor inferior ao correspondente a metade da alçada do tribunal”.
A reclamante apenas questiona a decisão de não conhecimento da questão da inconstitucionalidade da “primeira norma”, mas fá-lo com supressão de partes significativas do seu requerimento de interposição de recurso. Na verdade, nesse requerimento, os recorrentes identificaram a norma em causa nos seguintes termos:
“a extraída dos artigos 156.º, n.º 4, e 679.º do CPC, segundo a qual o envio dos autos com vista ao Ministério Público, requerida pelas partes ao abrigo do artigo 242.º, n.º 1, alínea b), do CPP, para apreciação de actos e documentos impugnados nos mesmos, arguidos de falsidade e de consubstanciarem os ilícitos do artigo 256.º, n.º 3, com referência ao n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal, não constitui qualquer obrigação vinculada do juiz da 1.ª instância, antes configura uma situação de poder discricionário neles previstas, cujo exercício dispensa a fundamentação legal do artigo 158.º, n.º
1, do CPC, decorrente da norma do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição”
e consideraram que a mesma
“viola as garantias constitucionais consignadas nos artigos 202.º, n.º 2, no segmento relativo à incumbência de os tribunais reprimirem a violação da legalidade democrática, e 205.º, n.º 5 [aliás, n.º 1], da Constituição, e o correspondente direito fundamental do cidadão de obter a efectivação de tais garantias, directamente aplicável ex vi seu artigo 18.º, n.º 1.”
Na presente reclamação, a reclamante significativamente omitiu as passagens sublinhadas (“cujo exercício dispensa a fundamentação legal do artigo 158.º, n.º 1, do CPC, decorrente da norma do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição” e viola o artigo “205.º, n.º 5 [aliás, n.º 1], da Constituição, e o correspondente direito fundamental do cidadão de obter a efectivação de tais garantias, directamente aplicável ex vi seu artigo 18.º, n.º 1”). Ora, foi justamente atendendo às formulações agora suprimidas pela reclamante que na decisão sumária reclamada se entendeu que a dimensão normativa impugnada se reportava “à dispensa de fundamentação da não comunicação ao Ministério Público de determinados factos” (o n.º 1 do artigo 205.º da CRP, tido por violado, determina que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”), e que essa dimensão não fora aplicada pelo despacho recorrido, pois que este “se limitou a apreciar a questão da recorribilidade dessa «não comunicação»”. Na parte em que se refere a essa dimensão normativa, a decisão sumária reclamada não merece qualquer reparo. Aliás, mesmo que houvesse de dela conhecer, tal questão de inconstitucionalidade seria de considerar manifestamente infundada, por o despacho do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa ter expressamente reconhecido que, nesse aspecto, o despacho do juiz de 1.ª instância estava fundamentado, por nele se justificar a não comunicação ao Ministério Público por não existirem “quaisquer indícios de ilicitude criminal naqueles documentos”.
Mesmo, porém, que se entenda que, a par dessa dimensão, os recorrentes também haviam impugnado a que se reporta à qualificação como discricionária da obrigação de o juiz comunicar ao Ministério Público factos arguidos de falsidade e de consubstanciarem ilícitos criminais (obrigação que decorreria do artigo 242.º, n.º 1, alínea b), do CPP: “1. A denúncia é obrigatória, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos: (...) b) Para os funcionários, na acepção do artigo 386.º do Código Penal, quanto aos crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas”), com a consequência de o despacho que consubstancie a decisão de não comunicação ser irrecorrível, nos termos dos artigos 679.º (“Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário”) e 156.º, n.º 4, 2.ª parte (“...; consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador”), ambos do CPC, sempre a questão de inconstitucionalidade assim formulada seria de considerar manifestamente infundada.
Com efeito, é obviamente insusceptível de configurar incumprimento da função dos tribunais de reprimirem a violação da legalidade democrática (artigo 202.º, n.º 2, da CRP) uma interpretação normativa que não considere os tribunais vinculados a comunicarem ao Ministério Público factos a que não reconheçam relevância criminal, sendo certo que sempre aos interessados assiste a faculdade de denunciarem eles mesmos esses factos e de utilizarem todos os mecanismos legalmente disponíveis de promoção do procedimento criminal e de controlo da actividade do Ministério Público.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Julho de 2004 Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos