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Processo n.º 499/2003 Plenário Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
1. A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores veio requerer ao Tribunal Constitucional, “ao abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 1, alíneas a), b) e d) e nº 2, alínea g) do artigo 281º da Constituição da República Portuguesa”, na redacção então em vigor, anterior à que resultou da Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de Julho, a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade ou, subsidiariamente, da ilegalidade, das normas contidas nos artigos 83º, 84º, 85º, 88º e 89º da Lei nº
91/2001, de 20 de Agosto (Lei de Enquadramento Orçamental), acrescentados pelo artigo 1º da Lei Orgânica nº 2/2002, de 28 de Agosto, bem como da norma contida no artigo 3º da mesma Lei Orgânica nº 2/2002, que aditou um artigo 48º-A à Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro (Lei de Finanças das Regiões Autónomas).
As normas em causa são do seguinte teor:
Lei nº 91/2001 (na redacção da Lei nº 2/2002):
Artigo 83º Objectivos e medidas de estabilidade orçamental
1 - A aprovação e a execução dos orçamentos de todos os organismos do sector público administrativo são obrigatoriamente efectuadas de acordo com as medidas de estabilidade orçamental a inserir na lei do Orçamento, em conformidade com objectivos devidamente identificados para cada um dos subsectores, para cumprimento do Programa de Estabilidade e Crescimento.
2 - Os objectivos e medidas a que se refere o número anterior são integrados no elemento informativo previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 34º da presente lei, o qual constitui um instrumento de gestão previsional que contém a programação financeira plurianual necessária para garantir a estabilidade orçamental.
3 - As medidas de estabilidade devem incluir a fixação dos limites de endividamento e do montante das transferências, nos termos dos artigos 84º e
85º da presente lei.
4 - A justificação das medidas de estabilidade consta do relatório da proposta de lei do Orçamento e inclui, designadamente, a justificação do cumprimento do Programa de Estabilidade e Crescimento e a sua repercussão nos orçamentos do sector público administrativo.
Artigo 84º Equilíbrio orçamental e limites de endividamento
1 - Em cumprimento das obrigações de estabilidade orçamental decorrentes do Programa de Estabilidade e Crescimento, a lei do Orçamento estabelece limites específicos de endividamento anual da administração central do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, compatíveis com o saldo orçamental calculado para o conjunto do sector público administrativo.
2 - Os limites de endividamento a que se refere o número anterior podem ser inferiores aos que resultariam das leis financeiras especialmente aplicáveis a cada subsector.
Artigo 85º Transferências do Orçamento do Estado
1 - Para assegurar o estrito cumprimento dos princípios da estabilidade orçamental e da solidariedade recíproca, decorrentes do artigo 104º do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, a lei do Orçamento pode determinar transferências do Orçamento do Estado de montante inferior àquele que resultaria das leis financeiras especialmente aplicáveis a cada subsector, sem prejuízo dos compromissos assumidos pelo Estado no âmbito do sistema de solidariedade e de segurança social.
2 - A possibilidade de redução prevista no número anterior depende sempre da verificação de circunstâncias excepcionais imperiosamente exigidas pela rigorosa observância das obrigações decorrentes do Programa de Estabilidade e Crescimento e dos princípios da proporcionalidade, não arbítrio e solidariedade recíproca e carece de audição prévia dos órgãos constitucional e legalmente competentes dos subsectores envolvidos.
Artigo 88º Dever de informação
1 - O Ministro das Finanças pode exigir dos organismos que integram o sector público administrativo uma informação pormenorizada e justificada da observância das medidas e procedimentos que têm de cumprir nos termos da presente lei.
2 - Sempre que se verifique qualquer circunstância que envolva o perigo de ocorrência, no orçamento de qualquer dos organismos que integram o sector público administrativo, de uma situação orçamental incompatível com o cumprimento das medidas de estabilidade a que se refere o artigo 83º, o respectivo organismo deve remeter imediatamente ao Ministério das Finanças uma informação pormenorizada e justificada acerca do ocorrido, identificando as receitas e despesas que as originaram, e uma proposta de regularização da situação verificada.
3 - O Ministro das Finanças pode solicitar ao Banco de Portugal e a todas as instituições de crédito e sociedades financeiras toda a informação que recaia sobre qualquer organismo do sector público administrativo e que considere pertinente para a verificação do cumprimento da presente lei.
Artigo 89º Incumprimento das normas do presente título
1 - O incumprimento das regras e procedimentos previstos no presente título constitui sempre uma circunstância agravante da inerente responsabilidade financeira.
2 - A verificação do incumprimento a que se refere o número anterior
é comunicada de imediato ao Tribunal de Contas.
3 - Tendo em vista o estrito cumprimento das obrigações decorrentes do artigo 104º do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Pacto de Estabilidade e Crescimento em matéria de estabilidade orçamental, pode suspender-se a efectivação das transferências do Orçamento do Estado, em caso de incumprimento do dever de informação estabelecido no artigo anterior e até que a situação criada tenha sido devidamente sanada.
4 - Por efeito do não cumprimento dos limites específicos de endividamento que se prevêem no artigo 84º, a lei do Orçamento pode determinar a redução, na proporção do incumprimento, das transferências a efectuar, após audição prévia dos órgãos constitucional e legalmente competentes dos subsectores envolvidos.
Lei Orgânica nº 2/2002 Artigo 3º Alteração da Lei de Finanças das Regiões Autónomas
É aditado à Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro, um artigo 48º-A, com a seguinte redacção:
Artigo 48º-A Realização do Programa de Estabilidade e Crescimento
A presente Lei não exclui a aplicação das normas do novo título V da Lei de Enquadramento Orçamental, até à plena realização do Programa de Estabilidade e Crescimento.
2. Como fundamentos, a requerente, tendo como referência o texto constitucional então em vigor, apontou, em síntese, o seguinte:
– A Lei Orgânica nº 2/2002 introduziu na Lei de Enquadramento Orçamental (LEO – Lei nº 91/2001) um conjunto de normas destinadas a garantir a estabilidade orçamental, que passaram a constituir o seu Título V, expressamente ligadas ao cumprimento das obrigações “de convergência e estabilidade financeira assumidas pelo Estado Português no seio da Comunidade Europeia”, aplicáveis à totalidade do Sector Público Administrativo e, portanto, também à administração regional autónoma;
– A mesma Lei Orgânica nº 2/2002 aditou um artigo (48º-A) à Lei de Finanças das Regiões Autónomas (Lei nº 13/98), determinando que esta última lei não exclui a aplicação daquelas normas “até plena realização do Programa de Estabilidade e Crescimento”;
– Ora, a autonomia orçamental e financeira integra a autonomia político-administrativa das regiões, constitucionalmente definida, exigindo a existência de um «sistema financeiro regional independente do Estado». Como escreve Sousa Franco, o modelo constitucional da autonomia financeira regional corresponde ao de «um pequeno Estado dotado da plenitude dos poderes financeiros do Estado no seu território», havendo “uma constituição económico-financeira de cada região, constituída pelo bloco da Constituição do Estado Português e do respectivo Estatuto” (Considerações sobre a problemática das relações financeiras do Estado com as Regiões Autónomas, Direito e Justiça, Vol. X., T1, pág. 153);
– O artigo 227º da Constituição “identifica um conjunto vasto de poderes de natureza económico-financeira atribuídos às regiões autónomas” – poder de planificação regional, poder de aprovação do orçamento regional, poder patrimonial, que inclui a faculdade de endividamento, poder de aprovação das contas, poder tributário –, poderes esses pormenorizadamente tratados nos Estatutos respectivos;
– Também Gomes Canotilho refere que a autonomia económica e financeira implica
«a garantia dos recursos financeiros para a prossecução das tarefas autonómicas» e a «autonomia como liberdade de decisão dentro do leque de competências constitucional e estatutariamente definidas, sem qualquer tutela ou controlo dos
órgãos do governo central» (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª Edição, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 360);
– O novo texto do Título V da Lei de Enquadramento Orçamental faz um tratamento comum dos vários orçamentos públicos, entre os quais se encontram os orçamentos regionais. Ora, a Constituição devolve a concretização da autonomia regional para o Estatuto (com a inerente garantia constituída pela reserva de iniciativa das regiões para a sua alteração) e a definição das relações financeiras entre o Estado e as regiões para a Lei das Finanças das Regiões Autónomas (nº 3 do artigo 229º); assim, uma 'matéria que verse sobre o poder orçamental e o sistema de financiamento regional' não pode ser 'regulada por uma Lei da Assembleia da República que não seja o Estatuto ou a Lei das Finanças das Regiões Autónomas';
– Além disso, as 'matérias que integram a autonomia financeira regional' são
'matéria estatutária na sua dimensão essencial' (artigo 94º e segs. do Estatuto), não podendo uma lei, ainda que orgânica, regular matéria que é
'conteúdo necessário' dos Estatutos;
– Nem pode tal lei 'dispor em sentido contrário” ao dos mesmos Estatutos, pois a Constituição, nos artigos 280º, n.º 2, c) e 281º, d), confere-lhes uma superioridade que impõe que sejam “leis de referência a ter em conta no juízo de legitimidade do regime financeiro regional que resulta da Lei de Estabilidade”, constituindo uma possível desconformidade da LEO com o direito estatutário uma ilegalidade susceptível de controlo;
– A contradição apontada ocorre também em relação à Lei das Finanças das Regiões Autónomas, mas implica agora uma inconstitucionalidade, “dado que a Lei de Estabilidade Orçamental dispôs sobre matéria reservada pela Constituição para a Lei de Finanças das Regiões”;
– A solução encontrada pelo legislador para contornar este problema foi o aditamento de um artigo à Lei de Finanças Regionais (artigo 48º-A); mas esta alteração não permitiu a 'análise especialmente cuidadosa da matéria' que a Constituição pretendeu, ao reservar o tratamento da matéria para uma lei orgânica própria;
– Para além disso, sendo substancial, a alteração implica a inviabilidade da
“aplicação integral” da Lei das Finanças das Regiões Autónomas até à ocorrência de um “facto, além do mais, incerto quanto à data da sua ocorrência”, ou seja,
“a realização plena do Pacto de Estabilidade e Crescimento”;
– É, pois, inconstitucional o aditamento deste artigo 48º-A à Lei das Finanças das Regiões Autónomas;
– Relativamente ao artigo 83º, a requerente sustenta que a subordinação da administração pública regional a um princípio de estabilidade orçamental (artigo
81º, n.º 1), concretizado em medidas a inserir no Orçamento de Estado anualmente, significando 'que o poder de decisão orçamental é transferido para a Assembleia da República', destrói a independência orçamental das regiões, a cujas assembleias legislativas está reservado o poder de aprovação do orçamento regional (artigo 232º, n.º 1). É, assim, violada a al. p) do nº 1 do artigo 227º da Constituição, havendo ainda inconstitucionalidade porque 'não estão tipificadas as medidas de estabilidade”;
– No que respeita ao artigo 84º, e sendo certo que as receitas creditícias constituem uma das modalidades de receitas constitucionalmente previstas para as regiões, nos termos da alínea j) do n.º1 do artigo 227º da Constituição (estão incluídas entre as “outras receitas”), e que são expressamente referidas como tal pelo Estatuto, 'não será constitucionalmente aceitável o estabelecimento de um regime que permite ao Estado, através da Lei do Orçamento, eliminar as receitas creditícias do conjunto de receitas próprias das Regiões', anulando “a possibilidade de recurso ao crédito” e, deste modo, podendo ter consequências negativas na coesão económica s social que “é, afinal, a ratio ultima da Autonomia”. O artigo 84º é, pois, inconstitucional e ilegal por violação do Estatuto da Região;
– O artigo 85º prevê a possibilidade de as transferências do Orçamento de Estado para as regiões serem fixadas, pela Lei do Orçamento, em montante inferior ao que resultaria da aplicação da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, cujos valores constituem 'uma referência sólida na quantificação do dever de cooperação do Estado para com os Órgãos Regionais'; e o artigo 89º admite a possibilidade de redução das transferências (nº 4) em caso de não cumprimento dos limites especiais de endividamento e da sua suspensão (nº 3) em caso de incumprimento dos deveres de informação estabelecidos no artigo 88º;
– Tal possibilidade de redução ou eliminação das transferências viola o princípio da 'solidariedade nacional', estreitamente ligado ao princípio da igualdade e consagrado nos artigos 225º, nº 2, e 229º, nº 1, da Constituição e concretizado no artigo 99º do Estatuto e na Lei das Finanças das Regiões Autónomas, tornando inconstitucionais os artigos 85º e 89º “na parte em que violam a directiva material que emana” daquele princípio;
– Acerca do artigo 88º, a requerente sustenta que aquele artigo, ao 'prever uma relação directa entre o Ministro das Finanças e os organismos integrados na Administração Regional', criando um dever de informação dos segundos ao primeiro acompanhado de um poder de intervenção directa deste, viola o poder conferido às regiões pelo artigo 227º, nº1, alínea o), da Constituição, que confere à Região o poder de se dotar dos órgãos necessários à prossecução das suas actividades;
– Finalmente, a requerente afirma que “foi intenção do legislador constituinte associar as regiões à determinação das matérias que embora reservadas aos órgãos de soberania exigem uma articulação permanente com os órgãos regionais”, como sucede com a definição da política financeira (artigo 227º, nº 1, al. r), da Constituição);
– Ora, a alteração legislativa em causa veio criar “mecanismos globais de execução de uma política financeira de âmbito regional”, sendo, por isso,
“constitucionalmente imperioso associar as regiões juntamente com os órgãos de soberania”. O assento das Regiões no novo Conselho de Coordenação Financeira assegura a participação regional na execução das políticas financeiras, mas não na sua definição, excluindo-as, nomeadamente, da definição da política de endividamento prevista no artigo 84º; a Lei Orgânica nº 2/2002 viola, pois, a alínea r) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição.
3. Concluindo, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores requer:
“a) A declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral do artigo
83º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, na redacção da Lei Orgânica n.º 2/2002, de 28 deAgosto, por violação do disposto nas alíneas j), p) e r) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição, ou, caso assim se não entenda, a declaração, nos mesmos termos, da ilegalidade do mesmo artigo, por violação do disposto nos artigos 95º, 97º a 100º, 102º, alínea g), 106º e 109º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e nos artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, n.º 2, 23º a 27º, 30º e 31º da Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro;
b) A declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo
84.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, na redacção da Lei Orgânica n.º
2/2002, de 28 de Agosto, por violação do disposto nas alíneas j), p) e r) do n.º
1 do artigo 227.º da Constituição, ou, caso assim se não entenda, a declaração, nos mesmos termos, da ilegalidade do mesmo artigo por violação do disposto nos artigos 95º, 97º a 100º, 102º, alínea g), 106º e 109º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e nos artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, n.º 2, 23º a 27º, 30º e 31º da Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiros;
c) A declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo
85.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, na redacção da Lei Orgânica n.º
2/2002, de 28 de Agosto, por violação do princípio da solidariedade consagrado no n.º 1 do artigo 229.º, e do disposto na alínea r) do n.º 1 do artigo 227.º, ambos da Constituição, ou, caso assim se não entenda, a declaração, nos mesmos termos, da ilegalidade do mesmo artigo por violação do disposto nos artigos 95º,
97º a 100º, 102º, alínea g), 106º e 109º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e nos artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, n.º 2, 23º a 27º, 30º e 31º da Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro;
d) A declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 88.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, na redacção da Lei Orgânica n.º
2/2002, de 28 de Agosto, por violação do princípio da auto-organização administrativa regional consagrado na alínea o) e r) do n.º 1 do artigo 227.º, e n.º 5 do artigo 235º, ambos da Constituição, ou, caso assim se não entenda, a declaração, nos mesmos termos, da ilegalidade por violação do disposto no art.
2º, n.º 1 do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores;
e) A declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo
89.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, na redacção dada pela Lei Orgânica n.º
2/2002, de 28 de Agosto, por violação do princípio da solidariedade consagrado no n.º 1 do artigo 229.º, e do disposto na alínea r) do n.º 1 do artigo 227.º, ambos da Constituição, ou, caso assim se não entenda, a declaração, nos mesmos termos, da ilegalidade do mesmo artigo por violação do disposto nos artigos 95º,
97º a 100º, 102º, alínea g), 106º e 109.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e nos artigos 1.º, n.ºs1 e 2, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, n.º
2, 23º a 27º, 30º e 31º da Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro;
f) A declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo
3.º da Lei Orgânica n.º 2/2002, de 28 de Agosto, por violação do princípio da reserva estatutária consagrado nos artigos 226.º e 227.º, do princípio da repartição de competências entre o Estado e Regiões Autónomas e do princípio da autonomia financeira das Regiões Autónomas, ambos consagrados no artigo 227.º, do disposto na alínea r) do n.º 1 do artigo 227.º e do disposto no n.º 3 do artigo 229.º, todos da Constituição, ou caso assim se não entenda, a declaração, nos mesmos termos, da ilegalidade do mesmo artigo por violação do disposto nos artigos 95º, 97º a 100º, 102º, alínea g), 106º e 109.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e nos artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, n.º 2, 23º a 27º, 30º e 31º da Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro”.
4. Notificada do pedido, para, querendo, sobre ele se pronunciar, nos termos previstos no artigo 54º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos e juntar os Diários da Assembleia da República contendo os trabalhos preparatórios.
5. Apresentado memorando pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos previstos no nº 1 do artigo 63º da Lei nº 28/82, foi o mesmo discutido, tendo sido definida a orientação a seguir. Ocorreu, entretanto, a entrada em vigor da já referida Lei Constitucional n.º
1/2004, razão pela qual se fará referência às alterações verificadas nos preceitos constitucionais relevantes.
6. Cabe começar por delimitar o âmbito de apreciação do pedido. Com efeito, sendo a Assembleia Legislativa dos Açores a requerente, os poderes de cognição deste Tribunal restringem-se às causas de pedir que, nos termos da al. g) do n.º
2 do artigo 281º da Constituição, podem ser invocadas por aquele órgão. Assim sendo, as normas em apreciação serão analisadas, na perspectiva da inconstitucionalidade, apenas para verificar se nelas se pode detectar uma eventual 'violação dos direitos das regiões autónomas'; e, na perspectiva da ilegalidade, tão-só para apurar se existe uma eventual 'violação do estatuto' político-administrativo da Região Autónoma dos Açores. Sempre se observa, todavia, que o Tribunal Constitucional considera que não podia haver qualquer ilegalidade com fundamento na violação da Lei nº 13/98 (Lei de Finanças das Regiões Autónomas), tendo em conta, por um lado, a norma constante do novo artigo 48º-A deste diploma e, por outro, que não faria sentido aferir da legalidade de uma alteração à Lei nº 13/98 confrontando-a consigo própria. Deste modo, o Tribunal Constitucional terá apenas em conta, no caso em apreço, as normas constitucionais (nomeadamente, as invocadas pela requerente, com a ressalva de que esta, quando se refere ao artigo 235º, nº 5, da Lei Fundamental, quis certamente aludir ao artigo 225º, nº 3, cujo teor é idêntico ao do artigo
2º, nº 1, do EPARAA) e as normas do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores. Constituirão assim parâmetro de aferição da constitucionalidade as seguintes normas da Constituição, na sua redacção actual:
Artigo 225.º
(Regime político-administrativo dos Açores e da Madeira)
3 - A autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição.
Artigo 226.º
(Estatutos e leis eleitorais)
1 - Os projectos de estatutos político-administrativos e de leis relativas à eleição dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas são elaborados por estas e enviados para discussão e aprovação à Assembleia da República.
2 - Se a Assembleia da República rejeitar o projecto ou lhe introduzir alterações, remetê-lo-á à respectiva Assembleia Legislativa para apreciação e emissão de parecer.
3 - Elaborado o parecer, a Assembleia da República procede à discussão e deliberação final.
4 - O regime previsto nos números anteriores é aplicável às alterações dos estatutos político-administrativos e das leis relativas à eleição dos deputados
às Assembleias Legislativas das regiões autónomas.
Artigo 227.º
(Poderes das regiões autónomas)
1 - As regiões autónomas são pessoas colectivas territoriais e têm os seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos:
j) Dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhes sejam atribuídas e afectá-las às suas despesas;
o) Superintender nos serviços, institutos públicos e empresas públicas e nacionalizadas que exerçam a sua actividade exclusiva ou predominantemente na região, e noutros casos em que o interesse regional o justifique;
p) Aprovar o plano de desenvolvimento económico e social, o orçamento regional e as contas da região e participar na elaboração dos planos nacionais;
r) Participar na definição e execução das políticas fiscal, monetária, financeira e cambial, de modo a assegurar o controlo regional dos meios de pagamento em circulação e o financiamento dos investimentos necessários ao seu desenvolvimento económico-social;
Artigo 229.º
(Cooperação dos órgãos de soberania e dos órgãos regionais)
1 - Os órgãos de soberania asseguram, em cooperação com os órgãos de governo próprio, regional, o desenvolvimento económico e social das regiões autónomas, visando, em especial, a correcção das desigualdades derivadas da insularidade.
3 - As relações financeiras entre a República e as regiões autónomas são reguladas através da lei prevista na alínea t) do artigo 164.º.
Por seu turno, o parâmetro de legalidade será constituído pelas seguintes normas do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores:
Artigo 2.º Regime político-administrativo
1 - A autonomia política, administrativa e financeira da Região Autónoma dos Açores não afecta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição e do presente Estatuto.
Artigo 95.º Plano de desenvolvimento económico e social
O desenvolvimento da Região deve processar-se dentro das linhas definidas pelo plano de desenvolvimento económico e social e pelo Orçamento regionais.
Artigo 97.º Autonomia financeira
1 - A autonomia financeira da Região exerce-se no quadro da Constituição, do presente Estatuto e da Lei de Finanças das Regiões Autónomas.
Artigo 98.º Receitas
A Região dispõe, nos termos do Estatuto e da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, das receitas fiscais nela cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhe sejam atribuídas e afecta-as às suas despesas.
Artigo 99.º Solidariedade nacional
A solidariedade nacional vincula o Estado a suportar os custos das desigualdades derivadas da insularidade, designadamente no respeitante a comunicações, transportes, educação, cultura, segurança social e saúde, incentivando a progressiva inserção da Região em espaços económicos amplos, de dimensão nacional e internacional.
Artigo 100.º Fundos da União Europeia
O Estado assegura que a Região Autónoma dos Açores beneficie do apoio de todos os fundos da União Europeia nos termos do restante território nacional, tendo em conta as especificidades do arquipélago.
Artigo 102.º Receitas da Região
Constituem receitas da Região:
g) O apoio financeiro do Estado a que a Região tem direito, de harmonia com o princípio da solidariedade nacional;
Artigo 106.º Transferências de fundos para investimento
De harmonia com o princípio da solidariedade nacional, o Estado dotará a Região dos meios financeiros necessários à realização dos investimentos constantes do plano de desenvolvimento económico e social regional que excedam a capacidade de financiamento dela, de acordo com o programa de transferências de fundos nos termos da Lei de Finanças das Regiões Autónomas.
Artigo 109.º Empréstimos
1 - Para fazer face a dificuldades de tesouraria, a Região poderá movimentar junto do Banco de Portugal, sem quaisquer encargos de juros, até 10% do valor correspondente ao das receitas cobradas no penúltimo ano.
2 - A Região pode ainda, para o mesmo efeito, recorrer a empréstimos de curto prazo, que deverão estar liquidados no último dia do ano.
3 - A Região pode também contrair empréstimos internos e externos a médio e a longo prazos, exclusivamente destinados a financiar investimentos.
4 - A contracção de empréstimos externos depende de prévia autorização da Assembleia da República, após a audição do Governo da República.
7. As normas cuja declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade é requerida foram aprovadas pela Lei Orgânica nº 2/2002. Tiveram por objectivo introduzir na Lei de Enquadramento Orçamental, a Lei n.º
91/2001, mecanismos destinados a assegurar o cumprimento de determinadas obrigações “decorrentes do Tratado da União Europeia” (al. b) do artigo 14º da Lei n.º 91/2001), no caso, da obrigação de “evitar défices orçamentais excessivos” (artigo 104º do Tratado), e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, aprovado pelo Conselho Europeu de Amsterdão de 7 de Julho de 1997 (JOC nº C 236, de 2 de Agosto de 1997) (cfr., em especial, o novo artigo 79º, n.º 2 e o Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, Diário da Assembleia da República, I, n.º 31, de 11 de Julho de 2002). As alterações que a Lei n.º 2/2002 veio provocar na Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro (Lei de Finanças das Regiões Autónomas) e na Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto (Lei de Finanças Locais) destinaram-se apenas, como é manifesto, a resolver um possível conflito entre estes diplomas e o novo regime introduzido na Lei n.º 91/2001, garantindo a prevalência deste último. Para alcançar a finalidade pretendida, a Lei Orgânica n.º 2/2002 introduziu na Lei n.º 91/2001 um conceito de equilíbrio orçamental distinto do que consta, quer do seu artigo 20º para o orçamento dos serviços integrados, quer do seu artigo 22º para os orçamentos dos serviços e fundos autónomos, resultante do direito comunitário, e que se traduz na igualdade entre receitas efectivas e despesas efectivas.
Sendo as receitas não efectivas, no essencial, empréstimos, o desequilíbrio orçamental, entendido o equilíbrio neste sentido, resulta essencialmente na diferença entre os empréstimos contraídos e os empréstimos reembolsados, ou seja, no endividamento líquido. Este conceito de equilíbrio orçamental foi introduzido no Tratado de Roma pela redacção aprovada em Maastricht, em 1992, em cujo artigo 104º-C (correspondente ao actual artigo 104º) se estatuiu para os Estados-Membros a já referida obrigação de “evitar défices orçamentais excessivos'. O Protocolo Relativo ao Procedimento Aplicável em Caso de Défice Excessivo, adicional ao Tratado, aprovado na mesma ocasião, definiu como défice a contracção líquida de empréstimos (artigo 2º), e estabeleceu como valor de referência, para qualificação de um défice como excessivo, o valor de 3% do Produto Interno Bruto a preços de mercado (artigo 1º). Para evitar que os Estados-Membros atinjam tais valores, e para permitir uma rápida correcção na eventualidade de se não ter conseguido evitar a ultrapassagem, a citada Resolução do Conselho Europeu de Amsterdão de 17 de Junho de 1997 adoptou o já citado Pacto de Estabilidade e Crescimento, constituído por três instrumentos juridicamente vinculantes: a Resolução e dois Regulamentos, os Regulamentos (CE) nºs 1466/97 e 1467/97 do Conselho, de 7 de Julho (JOC n.º L 209, de 2 de Agosto de 1997). Ora, o novo regime aplica-se aos orçamentos das Regiões Autónomas. Com efeito, o referido protocolo adicional estabelece que o equilíbrio orçamental 'diz respeito ao Governo em geral', incluindo 'o governo regional ou local' (artigo
2º). Assim, e em síntese, as normas jurídicas cuja inconstitucionalidade e ilegalidade são suscitadas pretendem assegurar o cumprimento dos limites ao endividamento líquido decorrentes do artigo 104º do Tratado de Roma e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, para os quais é contabilizado o endividamento líquido decorrente da execução orçamental das regiões autónomas.
8. Cumpre então passar à análise das questões de constitucionalidade suscitadas.
O artigo 83º introduzido pela Lei Orgânica n.º 2/2002 impõe a subordinação de todos os orçamentos do sector público administrativo – incluindo, como se viu, o sector público administrativo regional – tanto na aprovação, como na execução, a
'medidas de estabilidade orçamental a inserir na Lei do Orçamento'. Não são enunciados os tipos de 'medidas de estabilidade' a adoptar, salvo quanto aos dois referidos no nº 3 – fixação de 'limites de endividamento' e do
'montante de transferências', ambos claramente aplicáveis às regiões autónomas, e que vêm desenvolvidos nos artigos seguintes. Assim, no n.º 1 do artigo 84º determina-se que a Lei do Orçamento estabeleça um limite anual ao endividamento regional, compatível, em conjunto com os limites estabelecidos para os sectores central e local, com um saldo orçamental efectivo adequado ao cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
A possibilidade desta limitação anual do endividamento não é, em si, inovadora, pois resultava já do disposto no nº 2 do artigo 9º da Lei de Estabilidade Orçamental que as Regiões Autónomas não podem “endividar-se para além dos valores inscritos no Orçamento do Estado, nos termos da Lei das Finanças das Regiões Autónomas”. Da conjugação do nº 2 do mesmo artigo 84º com o artigo 48º-A acrescentado à Lei de Finanças das Regiões Autónomas pelo artigo 3º da Lei Orgânica nº 2/2002 resulta todavia que esse limite, a fixar pela Lei do Orçamento, pode ser inferior ao que resultaria da aplicação da Lei de Finanças das Regiões Autónomas. A verdade, no entanto, é que não decorre do texto deste último diploma (cfr. o seu artigo 26º) a existência de qualquer valor mínimo para tal limite de endividamento anual; com efeito, o n.º 3º do artigo 26º apenas estabelece, indirectamente, o limite superior de endividamento:
Artigo 26º Limites ao endividamento
1 - Tendo em vista assegurar a coordenação efectiva entre as finanças do Estado e das Regiões Autónomas, serão definidos anualmente na Lei do Orçamento do Estado limites máximos do endividamento líquido regional para cada ano.
2 - Tais limites serão fixados tendo em consideração as propostas apresentadas em cada ano pelos governos regionais ao Governo e obedecerão às metas por este estabelecidas quanto ao saldo global do sector público administrativo.
3 - Na fixação de tais limites atender-se-á a que, em resultado de endividamento adicional ou de aumento do crédito à Região, o serviço de dívida total, incluindo as amortizações anuais e os juros, não exceda, em caso algum,
25% das receitas correntes do ano anterior, com excepção das transferências e comparticipações do Estado para cada Região.
4 - Para efeitos do número anterior, não se considera serviço da dívida o montante das amortizações extraordinárias.
5 - No caso dos empréstimos cuja amortização se concentra num único ano, para efeitos do nº 3, proceder-se-á à anualização do respectivo valor.
Como fica claro, não está limitada, por estas normas, a decisão da Assembleia da Republica relativa à fixação anual de um limite de endividamento, a não ser indirectamente e quanto ao limite superior – o limite fixado pelo Orçamento não pode conduzir a um valor da dívida que viole o disposto no nº 3 deste artigo.
Pode assim dizer-se que, no que toca à fixação de limites de endividamento para as regiões autónomas, as normas em apreciação (artigo 84º da Lei de Estabilidade Orçamental e artigo 48º-A da Lei das Finanças das Regiões Autónomas) não trazem inovam. Por sua vez, o artigo 85º da Lei de Estabilidade Orçamental prevê que as transferências do Orçamento de Estado para outros sectores (incluindo, portanto, as regiões) possam ser fixados pelo Orçamento de Estado em valores inferiores aos que resultariam de outras leis aplicáveis (o que, para o caso em apreço, inclui a Lei de Finanças das Regiões Autónomas, especialmente os seus artigos
30º e 31º). O novo artigo 48º-A da Lei de Finanças das Regiões Autónomas compatibiliza este regime com o disposto naquele diploma. O nº 2 do artigo 85º faz depender esta redução de transferências “sempre da verificação de circunstâncias excepcionais” exigidas pelo cumprimento das obrigações comunitárias, da observância dos “princípios da proporcionalidade, não arbítrio e solidariedade recíproca” e da audição prévia dos órgãos regionais.
9. A requerente sustenta que o artigo 83º da Lei de Estabilidade Orçamental viola as alíneas j), p) e r) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição por transferir para a Assembleia da República o “poder de decisão orçamental” constitucionalmente reservado às regiões e por não tipificar as medidas de estabilidade. Ora sucede, em primeiro lugar, que não se verifica tal transferência. As regiões continuam a dispor do poder orçamental que lhes é atribuído, não ficando impedidas, nem de tomar autonomamente as decisões de afectação das receitas às suas despesas (cf. artigo 227º, nº1, alínea j), da Constituição), ou seja, de decidir quais as finalidades das despesas, quais os serviços que recebem os créditos orçamentais e o seu volume, nem de definir autonomamente as suas fontes de receitas próprias.
É certo que o novo artigo 83º admite a possibilidade de introdução de limites a esse poder orçamental. Mas, desde logo, também o poder orçamental da Assembleia da República é limitado, não só pelas inevitáveis constrições fácticas, mas também juridicamente (por exemplo, pela obrigação constitucional de criar dotação para as despesas obrigatórias – artigo 105º, nº 2, da Constituição).
É maior a limitação do poder orçamental regional; mas, como se escreveu no Acórdão nº 624/97 deste Tribunal (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 38º volume, págs. 73 e segs.), “a autonomia financeira regional nunca poderia, no quadro de um Estado unitário, como o português, ser sinónimo de independência financeira”. Aliás, o essencial desta limitação não decorre da intervenção legislativa em análise, mas do facto de, como já escrevia em 1985 E. Paz Ferreira, 'não ser previsível que, a curto prazo, as regiões venham a dispor de receitas suficientes para assegurar a cobertura das despesas, o que as leva a terem de elaborar os seus orçamentos com uma certa ligação com o Orçamento Geral do Estado, em função das transferências que este lhes irá proporcionar” ( As Finanças Regionais, Lisboa, INCM, 1985, pág. 267). De resto, não é novidade a previsão de limitações ao poder orçamental regional, limitações expressamente referidas no artigo 83º, e decorrentes da competência da Assembleia da República para determinar as transferências do Orçamento de Estado e fixar um limite de endividamento; a primeira decorre directamente da Constituição, a segunda já foi considerada não inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, como adiante se referirá. Para além disso, e em segundo lugar, não provoca inconstitucionalidade a apontada falta de tipicidade das medidas de estabilidade orçamental que podem ser impostas às regiões, por violação do poder orçamental autonómico, uma vez que, em abstracto, essa limitação deste poder pelo poder central é constitucionalmente admissível. Naturalmente, medidas que sejam qualificadas 'de estabilidade', a inserir num Orçamento de Estado em concreto, podem ser inconstitucionais porque o seu conteúdo atinge o poder orçamental regional no núcleo garantido pela Constituição, ou contraria a reserva de Estatuto. Mas daí não resultaria inconstitucionalidade do artigo 83º da Lei de Estabilidade Orçamental, e sim dessas – hipotéticas – normas, cuja análise não é suscitada pela requerente. Não pode, pois, afirmar-se que o disposto no artigo 83º da Lei de Estabilidade Orçamental viole quaisquer direitos constitucionalmente previstos das regiões autónomas, nomeadamente o poder de decisão orçamental, expresso nas alíneas j), p) e r) do nº 1 do artigo 227º da Lei Fundamental. Resta, portanto, saber se as limitações que são concretizadas pelo diploma em análise, nomeadamente as constantes dos artigos 84º e 85º, padecem do vício de inconstitucionalidade.
10. Como já foi atrás afirmado, o disposto no artigo 84º em nada veio alterar o regime anteriormente vigente para a limitação do endividamento das regiões autónomas, a não ser na injunção dirigida à Assembleia da República para adequar esses limites à necessidade de cumprimento das obrigações comunitárias relativas ao equilíbrio orçamental. Continua, portanto, vigente o regime correspondente à prática legislativa portuguesa desde o Orçamento de Estado para 1991, e já consagrado na anterior redacção da Lei de Estabilidade Orçamental: a competência da Assembleia da República para limitar anualmente, na Lei do Orçamento, o endividamento líquido das regiões. Não parece entender assim a requerente, que vê nesta norma 'a anulação da possibilidade de recurso ao crédito por parte das regiões'. Essa consequência, todavia, não decorre necessariamente desta norma – a fixação do limite de endividamento zero é apenas uma das possibilidades que decorrem do presente regime legal. Deve desde logo recordar-se, como já se fez no Acórdão nº 532/00 deste Tribunal
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48º volume, págs. 59 e segs.), que “a possibilidade de recurso ao crédito (ou à obtenção de receitas de empréstimos) pelas regiões autónomas nunca chegou a ser prevista expressa e especificamente na Constituição – continuando ainda hoje, e a esse nível, a não poder extrair-se mais do que da combinação das alíneas h) e p) do nº 1 do artigo 227º”. Ora, o Tribunal já se pronunciou sobre a questão da limitação do endividamento das regiões, nomeadamente nos Acórdãos nºs 624/97 e 532/00, já citados, sendo
útil recordar a orientação então adoptada. Na primeira daquelas decisões estavam em causa normas do Decreto-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro, cujo conteúdo era precisamente o de estabelecer como competência da Assembleia da República a fixação anual, na lei do Orçamento, dos
'limites máximos de endividamento regional directo e indirecto'. Era suscitada a ilegalidade por violação da norma do EPARAA que previa a competência da Assembleia Legislativa para aprovação do Orçamento (com um conteúdo, no essencial, idêntico ao hoje disposto no artigo 232º, nº 1, da CRP). Decidiu então este Tribunal pela não ilegalidade das normas em causa, escrevendo-se nessa decisão:
“O estabelecimento nas normas impugnadas pelo grupo de deputados à Assembleia Legislativa Regional dos Açores de um sistema de limites ao endividamento das regiões autónomas é uma consequência do carácter unitário do Estado (ainda que dispondo de duas regiões autónomas, dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio, e de autarquias locais, que usufruem de órgãos representativos, de autonomia administrativa e de património e finanças próprios), proclamado no artigo 6º da Lei Fundamental.
(…)[a norma que determina] a fixação anual dos limites máximos de endividamento regional em disposição constante da lei do Orçamento do Estado, não impõe ao orçamento regional uma dependência em relação ao Orçamento do Estado passível de se revelar como nuclearmente redutora da autonomia financeira da Região Autónoma dos Açores (…)” Na segunda das decisões referidas, tratou-se da questão, suscitada pelo Presidente do Governo Regional da Madeira, da inconstitucionalidade das normas do (já citado) artigo 26º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas e do artigo
93º Lei do Orçamento do Estado para 2000, que fixava o limite de endividamento da região. O Tribunal pronunciou-se pela não inconstitucionalidade destas normas
(tendo por referência o texto constitucional saído da revisão de 1997), destacando-se da fundamentação da decisão então tomada:
“(...) a previsão desses limites [de endividamento das regiões] – e, em particular do que é o seu elemento central: a fixação anual, pelo Orçamento do Estado, do plafond de endividamento das regiões – representa uma 'constrição' da autonomia financeira (mormente da autonomia orçamental), e também da autonomia patrimonial, constitucionalmente garantidas às regiões: mas é uma constrição que, por um lado, encontra fundamento em exigências ou razões (como a da unidade do Estado) igualmente com relevo constitucional, e, por outro lado, não vai ao ponto de 'subverter' e destruir tal autonomia. Ou, como se disse ainda no Acórdão nº 624/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 38º volume, pág. 95): não é «nuclearmente redutora» da mesma autonomia”. No mesmo acórdão, acolheu-se a argumentação do Primeiro-Ministro na sua resposta no processo em que foi tirado o Acórdão nº 624/97, sobre a necessidade de um controlo de nível nacional (pela Assembleia da República) dos níveis de endividamento das regiões, já que “o Estado Português, com a assinatura do Tratado da União Europeia, assumiu novos compromissos internacionais, no que respeita aos défices orçamentais e ao peso da dívida pública no Produto Interno Bruto, sendo os valores de referência avaliados em termos consolidados para o conjunto do território nacional. (...) remeter a fixação anual dos limites máximos de endividamento regional para o Orçamento do Estado tem, nestes termos, plena lógica, não só porque as orientações macro-económicas do Estado são fixadas no Orçamento do Estado, mas também porque é esta mesma lei que assegura o fluxo de uma parte das receitas correntes das regiões, através das transferências anuais para aqueles territórios”. Acrescente-se que, mesmo quem entenda não existir, em todos os casos, uma possibilidade constitucionalmente admissível de limites ao endividamento das regiões autónomas – enquanto constrição da sua autonomia financeira e patrimonial, com fundamento na unidade do Estado – admitirá que este pode fixar um limite máximo ao endividamento regional em situações nas quais o limite em concreto estabelecido para determinado ano possa, uma vez ultrapassado, constituir sérios riscos com projecção na economia e nas finanças do todo nacional, como seria o caso de aumento das taxas de juro do mercado ou de elevada repercussão nos compromissos internacionais assumidos pelo Estado no sentido de diminuir os défices orçamentais e o peso da dívida pública face ao PIB (neste sentido, veja-se a declaração de voto do Conselheiro Bravo Serra, no Acórdão nº 532/00). Esta argumentação, naturalmente, só ganha actualidade com a passagem do critério do défice de condição de adesão à 3ª fase da União Económica e Monetária para obrigação permanente de evitar défices excessivos, e com a vigência do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
É certo que a requerente se pronuncia contra a “eliminação” da possibilidade do recurso ao crédito; essa consequência, todavia, e como já foi dito, não decorre directamente do preceito em análise. No entanto, ainda que o Tribunal entendesse ser a limitação do endividamento líquido regional a zero incompatível com a Lei Fundamental, não se vê como poderia o Tribunal, que não é um órgão legiferante, determinar em abstracto qual o limite mínimo do endividamento que a Assembleia da República deveria conceder anualmente às regiões. Sendo ainda de sublinhar que, se o Tribunal declarasse em abstracto essa impossibilidade de fixação em zero do limite de endividamento, e tendo em conta que o objectivo de longo prazo do Pacto de Estabilidade e Crescimento é o défice zero, tal equivaleria à afirmação, por este Tribunal, que a Constituição imporia aos restantes níveis da administração (central e local) a exigência de um superavit efectivo. Nestes termos, não pode concluir-se pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 84º da Lei de Estabilidade Orçamental. Como se referiu, tal disposição não pode ter-se por violadora do poder de decisão orçamental das regiões autónomas, previsto nas alíneas j), p) e r) do nº 1 do artigo 227º da Lei Fundamental.
11. Sobre o artigo 85º, argumenta a requerente que viola a Constituição a possibilidade de a Lei do Orçamento fixar para o montante das transferências do Orçamento de Estado para as regiões um valor inferior ao que resultaria da aplicação da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, porque esta seria a referência para o cumprimento dos deveres de solidariedade impostos ao Estado.
É verdade que a Constituição impõe ao poder central o dever de promover especificamente o desenvolvimento regional, com o objectivo de corrigir “as desigualdades derivadas da insularidade' (n.º 1 do artigo 229º). Expressão financeira desse dever é a norma constitucional contida na alínea j) do nº 1 do artigo 227º, que prevê que as regiões disponham, além das receitas fiscais 'nelas cobradas ou geradas', ainda de uma parte das outras receitas fiscais do Estado, determinadas 'de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional'. Todavia, já em lado algum do texto constitucional se encontra apoio para a tese sustentada pela requerente de que o valor fixado, pelo legislador ordinário, na Lei de Finanças das Regiões Autónomas, constitui 'uma referência sólida na quantificação do dever de cooperação do Estado para com os órgãos regionais', sendo a norma que permite a fixação de um valor inferior incompatível com a Lei Fundamental. A Constituição remeteu para a decisão da Assembleia da República a definição do quadro em que se realizam as transferências, ao estatuir que é da sua competência legislativa reservada o “regime de finanças das regiões autónomas” – artigo 164º, alínea t) –, em lei que deve, nos termos do artigo 229º, nº 3, regular “as relações financeiras entre a República e as regiões”; mas não impôs que o valor certo dessas transferências deva decorrer necessariamente da Lei de Finanças das Regiões Autónomas. Certo é que essa fixação compete sempre ao Parlamento, por via da sua competência para aprovação do Orçamento, do qual consta precisamente, nos termos do artigo 106º, nº 3, alínea e), da Constituição, a previsão dessa transferência de verbas. Não pode portanto este Tribunal substituir-se aos poderes do Parlamento e fixar em abstracto um valor abaixo do qual se tivessem por não cumpridos os deveres de transferências de verbas para as regiões. Cabe aqui recordar o que, a propósito do limite de endividamento, se escreveu no já citado Acórdão nº 532/00:
“Seja como for, sempre a extensão do controlo jurisdicional de constitucionalidade, em situações ou relativamente a normas como as sub judicio, terá de confrontar-se com inevitáveis limitações: é que se está (ser-se-ia tentado a dizer assim) perante uma norma jurídica em mero sentido 'formal', e em que se verte, sim, uma decisão, não só de carácter radical e essencialmente técnico-político (no sentido de que é e não pode deixar de ser confiada ao saber técnico, à opção e ao critério de escolha e à responsabilidade do órgão e da maioria legislativa), como de política conjuntural. Dir-se-á, pois, que, sob pena de o Tribunal agir ultra vires, só lhe cabe, para julgar aqui do respeito pelo princípio da proporcionalidade, controlar se o legislador excedeu a margem de discricionariedade que lhe está, nesta matéria, reservada.” Esse juízo de proporcionalidade, já de si complexo face à fixação de um valor em concreto, resulta totalmente impossível face a uma norma que se limita a prever que o valor em causa se pode fixar abaixo do que resultaria da Lei de Finanças das Regiões Autónomas; e ainda mais quando a própria norma prevê o seu carácter excepcional, em respeito aos princípios constitucionais em causa, e a audição prévia das regiões. Deste modo, não pode concluir-se pela violação do princípio da solidariedade consagrado no artigo 229º, nº 1, nem do disposto na alínea r) do nº 1 do artigo
227º da Lei Fundamental, por parte do artigo 85º da Lei de Estabilidade Orçamental. Não se vê igualmente que resulte qualquer violação da Constituição do facto de estas normas não estarem formalmente inseridas no texto da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, uma vez que o acto normativo de que constam obedece aos requisitos de forma exigidos pelo artigo 166º, nº 2, da Constituição (lei orgânica) e que a sua aplicação está prevista por uma norma que, do mesmo passo, foi introduzida naquela Lei. A adopção de uma lei orgânica pelo Parlamento não merece o juízo de inconstitucionalidade (por “imponderação”) que lhe dirige a requerente.
12. Argumenta ainda a requerente que as normas constantes dos artigos 83º, 84º e
85º versam sobre matéria da competência reservada ao Estatuto da Região Autónoma, contrariando, aliás, as normas do Estatuto em vigor; também por este motivo seriam (formalmente) inconstitucionais. Este Tribunal já teve ocasião de afirmar a existência de uma reserva de estatuto
(cf., por ex., os Acórdãos nº 92/92, nº 637/95, nº 291/99 ou nº 162/99, respectivamente em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º volume, pág. 7, 32º volume, pág. 139, e 43º volume, pág. 559 e pág. 35). Neste último aresto, escreveu-se:
“Existe, assim, uma reserva de lei estatutária, pois há matérias que só os estatutos regionais podem regular. E, por isso, há violação da reserva de estatuto, se a regulamentação dessas matérias for feita por uma lei comum da Assembleia da República ou por um decreto-lei do Governo.” Todavia, o âmbito dessa reserva de estatuto não se determina em função do conteúdo concreto de um estatuto vigente; não ocorre violação da 'reserva de estatuto' sempre que uma norma o contrarie. Escreveu-se no mesmo Acórdão nº
162/99:
“Não basta, pois, que uma determinada norma conste de um estatuto regional para que a sua alteração por um decreto-lei importe violação da reserva de estatuto
(…) Essa violação só existirá, se essa norma constante do estatuto pertencer ao
âmbito material estatutário – ou seja: se ela regular questão materialmente estatutária.” Ora, fora da reserva de estatuto está necessariamente 'o regime de finanças das regiões autónomas' – alínea t) do artigo 164º da Constituição –, e nomeadamente a matéria das 'relações financeiras entre a República e as regiões autónomas' – nº 3 do artigo 229º da Constituição –, que é matéria reservada à competência legislativa da Assembleia da República e deve constar da Lei de Finanças das Regiões Autónomas. Tal opinião é também expressa no Acórdão nº 162/99, seguindo Gomes Canotilho e Vital Moreira. Assim, não se verifica a apontada inconstitucionalidade, por violação da reserva de estatuto, das suas normas ou do princípio da repartição de competência entre o Estado e as regiões autónomas, das normas que se referem às transferências do Estado para as regiões; nem, pelas razões já apontadas anteriormente, das que se referem à possibilidade de limitação ao endividamento líquido regional.
13. A requerente entende ainda que as normas constantes do artigo 88º e dos n.ºs
1 e 2 do artigo 89º, relativas a um dever de informação dos organismos do Sector Público Administrativo face ao Ministro das Finanças, são inconstitucionais na sua aplicação às regiões autónomas, pois pressupõem uma “relação directa entre o Ministro das Finanças e os organismos integrados na Administração Regional”. Efectivamente, deve entender-se que dos poderes das regiões autónomas de
“exercer poder executivo próprio” [artigo 227º, nº1, alínea g)] e, sobretudo, de
“superintender nos serviços e institutos públicos” da administração regional, decorre a impossibilidade de uma relação de “tutela” como a que estaria implícita num dever de informação sobre a execução orçamental, a prestar directamente, por um organismo integrado na administração regional, a um membro do Governo da República (ao que se somaria ainda o poder deste último de aplicar sanções pelo incumprimento, que se analisará de seguida). Tal matéria, por não ser essencialmente financeira (antes dizendo respeito às relações administrativas entre serviços da administração regional e o poder central), estaria ainda abrangida pela reserva de estatuto, pelo que as normas em causa seriam também formalmente inconstitucionais. Todavia, a interpretação do preceito que é feita pela requerente não é, nem a
única possível, nem a que o Tribunal entende resultar da sua inserção sistemática e da intenção legislativa, que apontam para um outro sentido, este conforme com a Constituição. Na verdade, o preceito em causa refere-se aos “organismos que integram o sector público administrativo”, o que parece indicar que abrange directamente os serviços na dependência do poder regional. Todavia, há que recordar que este preceito não tem apenas em vista a realidade regional, mas a totalidade do sector público administrativo. Se confrontarmos as normas contidas nos nºs 1 e 2 do artigo 88º (que são as que estão essencialmente em causa e prevêem a existência deste dever de informação) com o disposto no nº 3 do artigo 89º, verificamos que a sanção para o incumprimento do dever de informação é a suspensão das transferências do Orçamento de Estado. Ora, a lógica desta consequência jurídica, presente para os organismos dependentes da administração central (cujos créditos são financiados essencialmente por essas transferências), desaparece se pensarmos nos organismos dependentes da administração regional e, portanto, de transferências dos orçamentos das regiões autónomas. Assim, parece que a lógica interna dos preceitos não aponta para que os titulares do dever de prestação de informações sejam, no caso das regiões, os serviços dependentes do governo autonómico, mas o próprio governo regional, que executa o orçamento que recebe as transferências do Orçamento de Estado. Assim interpretado, o preceito escapa à crítica da requerente, pois não cria uma situação paralela de tutela do Ministro das Finanças em relação aos organismos públicos regionais; antes impõe ao governo regional o dever de prestar informações ao Governo central sobre a sua execução orçamental. Face à legitimidade constitucional dos deveres das regiões na execução orçamental, nomeadamente quanto ao cumprimento do limite de endividamento líquido, este dever acessório não levanta, em si, um problema de constitucionalidade. Face ao exposto, é então lícito concluir pela inexistência de qualquer violação do princípio da auto-organização administrativa regional (consagrado nos artigos
225º, nº3, e 227º, nº 1, alínea o) da Constituição).
14. Os n.ºs 3 e 4 do artigo 89º prevêem a possibilidade de suspensão e de redução das transferências do Orçamento de Estado, no primeiro caso, como sanção pelo incumprimento do dever de informação já referido e enquanto esse incumprimento se mantiver e, no segundo, por incumprimento dos limites fixados nos termos do artigo 84º. A requerente considera que tais normas violam o já referido princípio da solidariedade nacional, estreitamente ligado ao princípio da igualdade e consagrado, quer nos artigos 225º, n.º 2 e 229º, n.º 1, da Constituição, quer no artigo 99º do Estatuto da Região. A redução das transferências previstas no Orçamento de Estado em caso de incumprimento do limite de endividamento, e na proporção do incumprimento, é uma solução semelhante à que já constava do artigo 9º, n.º 3, da mesma Lei de Estabilidade Orçamental. A diferença, aparentemente, é que a redução não ocorre necessariamente no orçamento subsequente, podendo dar-se na própria execução orçamental em curso (em harmonia com a filosofia do diploma, de acompanhamento do cumprimento dos objectivos de equilíbrio ao longo da execução orçamental, de forma que se adequa às necessidades de cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento). Aos argumentos relativos à admissibilidade constitucional de “reduções” de transferências, já atrás referidos, deve aqui acrescentar-se que a redução, por um lado, terá necessariamente como causa uma decisão ilegal dos órgãos regionais
(pois o limite de endividamento aprovado no Orçamento de Estado é para estes vinculativo) e, por outro, é adequada aos fins, na medida em que a redução compensa na despesa efectiva do Orçamento de Estado o aumento de endividamento regional, repondo os objectivos de equilíbrio. Quanto à possibilidade de suspensão das transferências, há, porém, que analisar mais detidamente algumas questões. Esta possibilidade, como decorre do n.º 3 do artigo 89º, resulta do
“incumprimento do dever de informação” previsto no artigo 88º. Todavia, note-se que o mesmo artigo estabelece que a referida suspensão só pode ocorrer “até que a situação criada tenha sido devidamente sanada”. Está, pois, em causa, uma medida com um inegável carácter provisório, que se configura, no quadro do diploma sub iudice, como uma verdadeira medida compulsória, porque visa apenas levar ao cumprimento, por parte dos organismos do sector público administrativo, do referido dever de informação. A conformidade constitucional de sanções compulsórias de natureza administrativa foi já, aliás, expressamente admitida pelo Tribunal Constitucional, desde que, em cada caso concreto, não exista uma situação relativamente à qual se possa afirmar que a estipulação da medida administrativa compulsória especificamente em causa é intoleravelmente desproporcionada ou exorbitante (cfr. Acórdãos nºs
414/99, 564/01 e 393/02, respectivamente em Acórdãos do Tribunal Constitucional,
44º volume, págs. 497 e segs., 51º volume, págs. 573 e segs. e 54º volume, págs.
357 e segs.). Cabe, assim, averiguar aqui se estará assegurada, no caso ora em apreço, a adequação ou idoneidade da medida contestada para realizar o fim que a lei propõe. A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
É certo que se poderia sustentar que decorre do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição, segundo a qual as Regiões Autónomas dispõem “das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas” e ainda de “uma participação nas receitas tributárias do Estado”, que as transferências do Orçamento de Estado correspondem a um direito das regiões autónomas, pelo que a suspensão equivaleria à redução a zero, ainda que temporária, do cumprimento de um imperativo constitucional. No caso extremo de o incumprimento por parte dos
órgãos das regiões se prolongar ao longo de todo o ano, a suspensão transformar-se-ia em ausência de qualquer transferência durante a execução orçamental. A verdade, todavia, é que está na inteira disponibilidade de cada organismo público – logo, também, dos governos regionais – obviar a que se mantenha a suspensão da transferência de verbas, bastando, para tal, que forneça ao Estado as informações pormenorizadas exigidas pela lei. Ou seja, a transferência de verbas, o cumprimento dos imperativos constitucionais, depende aqui dos governos regionais – da sua diligência no cumprimento dos deveres legais – e não da administração central. Deste modo, não se descortina qualquer violação, nem do princípio da proporcionalidade, nem do princípio da solidariedade consagrado no artigo 229º, nº 1, da Constituição, nem do disposto no seu artigo 227º, nº 1, alínea r), como pretende a requerente. Por último, cabe esclarecer que a situação ora em apreço é substancialmente diversa da que foi tratada no Acórdão nº 260/98 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 39º volume, págs. 97 e segs.). No caso então submetido à apreciação deste Tribunal questionava-se a conformidade constitucional da retenção na fonte, por parte da administração central, de uma parcela das receitas da sisa e das transferências resultantes do Fundo de Equilíbrio Financeiro, para pagamento de dívidas das autarquias locais a determinada empresa. Estava-se, pois, perante uma verdadeira substituição dos municípios pela administração central, nas relações com um terceiro. O Tribunal entendeu então que tal configurava um caso de tutela de mérito, na variante de tutela substitutiva, proibida pelo artigo 242º, nº 1, da Lei Fundamental. No caso presente, nem ocorre uma relação jurídica triangular, por estarem em causa apenas relações entre a administração central e os governos regionais, nem se trata de qualquer avaliação de mérito, mas tão somente da avaliação do cumprimento (ou incumprimento) de deveres legais; nem estão em causa medidas de carácter definitivo, mas antes medidas compulsórias, cuja cessação depende unicamente dos próprios governos regionais.
15. A requerente pretende, ainda, que o Tribunal Constitucional declare a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 3º da Lei Orgânica n.º 2/2002, norma cujo objectivo de garantir a prevalência das alterações introduzidas na Lei n.º 91/2001 foi já referido. Em seu entender, tal norma violaria os princípios constitucionais da reserva estatutária, o princípio da repartição de competências entre o Estado e as Regiões Autónomas e o princípio da autonomia financeira das regiões. O Tribunal entende que os argumentos utilizados para afastar a inconstitucionalidade apontada pela requerente aos artigos 83º, 84º, 85º, 88º e
89º da Lei n.º 9/2001, aditados pela Lei Orgânica n.º 2/2002, valem para excluir a inconstitucionalidade também do artigo 3º deste mesma Lei Orgânica.
16. Resta, assim, referir que esses mesmos argumentos valem ainda para afastar a ilegalidade que a requerente invoca, por violação do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, já que o conteúdo das normas relevantes deste Estatuto pode reconduzir-se ao conteúdo das normas constitucionais à luz das quais foi apreciado o pedido de declaração de inconstitucionalidade.
17. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade nem a ilegalidade das normas contidas nos artigos 83º,
84º, 85º, 88º e 89º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, aditadas pela Lei Orgânica n.º 2/2002, de 28 de Agosto, e no artigo 3º desta última Lei.
Lisboa, 22 de Setembro de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Vítor Gomes Artur Maurício Gil Galvão Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Bravo Serra Paulo Mota Pinto Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração em anexo) Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO Voto integralmente o presente acórdão embora entenda – quanto ao que se afirma nos pontos 13 e 14 – que o dever que impende sobre o governo regional de prestação de informações e a correspondente submissão a sanções compulsórias de natureza administrativa tem limites que não são alteráveis por lei pois decorrem, na sua exacta medida, da concreta configuração constitucional do regime autonómico. Pamplona de Oliveira