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Proc. n.º 425/04
3ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. A., ora reclamante, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 20 de Março de 2002. O recurso foi rejeitado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Julho de 2003, com a seguinte fundamentação:
“[...] No acórdão acabado [de] referir deste Supremo Tribunal, em Tribunal Pleno das Secções Criminais, proferido em 30 de Março de 2000, publicado no D.R. I - Série - A, de 27 de Maio de 2000, foi fixada a seguinte jurisprudência:
'Considerando o disposto nos artigos 412° n° 1 e 2 alínea b), 420°, n° 1, 438°, n° 2, e 448°, todos do Código de Processo Penal no requerimento de interposição de recurso de fixação de jurisprudência, deve constar, sob pena de rejeição para além dos requisitos exigidos no referido artigo 438° n° 2 o sentido em que deve fixar-se a jurisprudência cuja fixação é pretendida'. Como resulta dos autos, no requerimento de interposição do presente recurso não foi dado cumprimento àquele requisito fixado em jurisprudência obrigatória. Logo, o recurso terá de ser rejeitado. [...]”
2. Inconformada com esta decisão, veio a ora reclamante aos autos dizer o seguinte:
“[...]1° Nos termos do disposto no n° 3 do art. 445 do CPP, tal como em razão dos dispositivos constitucionais, o assento n° 9/2000 citado no douto Acórdão, não é uma norma legal e já não tem força vinculativa genérica para os tribunais judiciais.
2° Apesar disso, e mau grado a recorrente saber que há quem entenda, igualmente por bons e fundamentados motivos, não ser o requerimento de interposição de recurso para fixação de jurisprudência o local mais apropriado para a imediata indicação do sentido em que deve ser fixada a jurisprudência que resolva o conflito de decisões apontado, - vidé gratiae' os votos de vencido, constantes do próprio assento n° 9/2000 –
3° Aqui se confessa que foi por lapso formal que não se deu cumprimento àquela directiva jurisprudencial.
4° Não foi, seguramente, por a recorrente querer afrontar tal directiva jurisprudencial. Isto Posto,
5° A recorrente não foi notificada para corrigir a apontada deficiência do seu requerimento de Recurso Extraordinário para fixação de jurisprudência,
6° A recorrente não foi previamente ouvida, nem lhe foi concedido o direito de se pronunciar acerca dessa questão/possibilidade de o recurso interposto ser rejeitado, por faltar no respectivo requerimento tal indicação conclusiva do sentido da fixação da jurisprudência que resolva o assinalado conflito.
7º No entanto, salvo o devido e muito merecido respeito, entende a recorrente que antes de ser proferido o douto acórdão que lhe rejeitou o recurso, deveria ter sido concedido à recorrente a possibilidade de, em prazo fixado pelo tribunal, corrigir tal deficiência do seu requerimento de interposição de recurso, tal como lhe deveria ter sido dado a oportunidade de se pronunciar sobre tal questão.
8° Tal omissão configura, no entender da recorrente e sempre salvo o devido e merecido respeito, uma irregularidade que manifestamente a prejudicou e impediu de ver apreciado os substanciais e verdadeiros fundamentos subjacentes à interposição daquele Recurso Extraordinário,
9º Foram, desse modo, violados, para além de outros, os princípios constitucionais da Proporcionalidade, subjacentes à ideia do Estado de Direito Democrático - art.2º da Constituição -, com referencia ao direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado nos nºs 2 e 3 do art. 18 e 20 da Constituição e ainda o disposto no n° 1 do art. 32 da nossa lei fundamental. Parecendo igualmente à recorrente que é inconstitucional a norma tirada do disposto nos arts, 412° n° 1 e 2 al. b), 420º n° 1, 438º n° 8 e 448º do CPC, quando, em conjugação com o citado assento n° 9/2000, é interpretada no sentido de a falta da indicação do sentido em que deve ser fixada a jurisprudência, no requerimento de interposição de Recurso Extraordinário de jurisprudência leva à rejeição imediata de tal recurso, sem que previamente seja feito o convite à recorrente para aperfeiçoar tal requerimento, suprindo a respectiva deficiência
- por violação dos supra citados preceitos constitucionais ('vidé gratiae' neste sentido, entre outros, o Ac. TC n.º 43/99 de 19 de Janeiro, publicado no DR, na Série de 26 de Março do mesmo ano e o Ac, TC n° 275/99 de 5 de Maio in BMJ n° 487, pág. 61).[...]”
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 12 de Novembro de 2003, rejeitou a reclamação, utilizando a seguinte fundamentação:
“[...]Tudo visto e considerado: As disposições legais nas quais a recorrente, agora reclamante, pretende fundar a sua pretensão respeitam nos recursos ordinários e têm em vista, também de harmonia com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, garantir aos arguidos, com a maior amplitude o direito de defesa. Só que, nos presentes autos, a recorrente não é arguida nem está em causa o seu direito de defesa, e o recurso que está na origem dos presentes autos é um recurso extraordinário. Este Supremo Tribunal, ao aplicar a jurisprudência obrigatória fixada pelo Assento n° 9/2000, rejeitando o recurso agiu no uso de um poder legal.
-3- Assim sendo, como é, não se verificando a invocada irregularidade do acórdão, a reclamação terá de improceder .
-4- Acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a reclamação de fls. 116 a 119, mantendo-se o acórdão em causa, nos seus precisos termos.
[...]”.
4. Notificada deste acórdão interpôs a ora a reclamante recurso para o Tribunal Constitucional através de um requerimento do seguinte teor:
“[...]Não se conformando com o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que rejeitou o recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência de fls. dos autos, bem como com o Acórdão que, na linha daquele julgou improcedente a Reclamação contra o mesmo deduzida, Vem do mesmo INTERPÔR RECURSO para o Tribunal Constitucional, a fim de que este Alto Tribunal declare a inconstitucionalidade da norma tirada do disposto nos arts. 412° n.º1 e 2 al. b), 420 n.º1 438º n.º 8 e 448º do C.P.C. quando, em conjugação com o Assento n.º 9/2000, é interpretada no sentido de a falta de indicação do “sentido em que deve ser fixada a jurisprudência, no requerimento de interposição do Recurso Extraordinário de Jurisprudência leva à rejeição imediata de tal Recurso, sem que previamente seja feito o convite à recorrente – arguida, para aperfeiçoar tal requerimento suprindo a respectiva deficiência'. Por violação, entre outros, dos princípios Constitucionais do amplo exercício do Direito da Defesa, Direito da Igualdade de Armas e do Acesso à Justiça, do Direito de Recurso e das Garantias de defesa, contidos, entre outros, nos arts.
2°, 18º n.º 2 e 3, 20° e 32° da Constituição da República Portuguesa (“vidé gratiae' neste sentido, entre outros, o Ac. TC n.º 43/99 de 19 de Janeiro, publicado no DR. na Série de 26 de Março do mesmo ano e o Ac. TC n.º 275/99 de 5 de Maio in BMJ n.º 487, pág. 61). A Recorrente já suscitou, sem êxito, esta questão inconstitucionalidade da dita norma nas sua Reclamação de rejeição do Recurso Extraordinário de fixação de jurisprudência para o Supremo Tribunal de Justiça - arts. 70º n.º 1, al. b) e g), 72° e 75°- A da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro.[...]”
5. O recurso não foi admitido por despacho do Relator, de 10 de Dezembro de
2003. É o seguinte o seu teor:
“No decurso dos presentes autos, em momento algum anteriormente à reclamação de fls. 116 a 119, a recorrente suscitou a questão – qualquer questão – de inconstitucionalidade, e o acórdão de fls. 111 e 112, ao rejeitar o recurso da recorrente, não fez qualquer interpretação inconstitucional do disposto nos arts. 412º, n.º 1, e 2, al. b), 420º, n.º 1, 438º, n.º 8 e 448º todos do Cód. Proc. Penal, quando em conjugação com o Assento n.º 9/2000, de 27-5-2000, à luz do Ac. do T.C., n.º 143/99, de 19-1-99 (D.R. II Série, de 26 de Março). Logo, entendemos que não se verificam os pressupostos aludidos na alínea b), do n.º 1, do art. 70, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro. Assim, não admito o recurso interposto a fls. 129.[...]”
6. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer no sentido da procedência da reclamação apresentada, posição que fundamentou nos seguintes termos:
“Afigura-se que não era exigível à recorrente, ao apresentar o requerimento de interposição do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, a suscitação da questão de constitucionalidade da interpretação normativa constante do acórdão uniformizador de 30/3/2000: na verdade, tal suscitação só teria sentido se a recorrente pretendesse, desde logo, contestar tal solução jurídica, no plano da constitucionalidade – e não, como se alega e parece plausível, se a omissão cometida radicou em simples “lapso formal”. Ora, não tendo sido ouvida a recorrente sobre o despacho liminar do relator, consideramos tempestiva e adequada a colocação da questão de constitucionalidade em sede de reclamação da irregularidade procedimental que se teve por praticada. Por outro lado – e não se podendo considerar a questão de constitucionalidade equacionada como “manifestamente infundada”- afigura-se que será de admitir o recurso interposto, por se verificarem os respectivos pressupostos, o que conduzirá à procedência da presente reclamação.”
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
7. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada. Vejamos.
Como resulta dos autos, a ora reclamante, notificada do acórdão que rejeitou o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, reclamou, invocando não só a irregularidade consistente na falta de um convite de aperfeiçoamento, mas também a inconstitucionalidade “da norma tirada do disposto nos arts. 412° n.º1 e 2 al. b), 420 n.º1 438º n.º 8 e 448º do C.P.C. quando, em conjugação com o Assento n.º 9/2000, é interpretada no sentido de a falta de indicação do
«sentido em que deve ser fixada a jurisprudência, no requerimento de interposição do Recurso Extraordinário de Jurisprudência leva à rejeição imediata de tal Recurso, sem que previamente seja feito o convite à recorrente – arguida, para aperfeiçoar tal requerimento suprindo a respectiva deficiência»”.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão 12 de Novembro de 2003, decidiu
“indeferir a reclamação de fls. 116 a 119, mantendo-se o acórdão em causa, nos seus precisos termos.” Para tal, refutou a alegada inconstitucionalidade e reiterou a aplicação dos preceitos questionados, na interpretação alegadamente inconstitucional, conforme se deduz da afirmação de que se mantém o acórdão em causa, nos seus precisos termos.
A ora reclamante recorreu então para este Tribunal. O recurso, como se viu, não foi, porém, admitido, com fundamento em que a questão de constitucionalidade não foi suscitada antes da reclamação da irregularidade de fls.116 a 119.
Acontece, porém, que, como refere o representante do Ministério Público, tratando-se de mero “lapso formal” e não pretendendo a ora reclamante contestar, desde logo, no plano da constitucionalidade, a solução do acórdão uniformizador de 30/3/2000, mas, apenas, a interpretação que conduziu à rejeição do recurso sem que lhe fosse dirigido um convite para aperfeiçoamento do requerimento, há que considerar tempestiva e adequada a colocação da questão de constitucionalidade em sede de reclamação da irregularidade procedimental que se teve por praticada. Acresce que a questão de constitucionalidade não pode ser considerada manifestamente infundada.
Assim sendo, deve ser admitido - para julgamento da questão de saber se é inconstitucional a “norma tirada do disposto nos arts. 412° n.º1 e 2 al. b), 420 n.º1 438º n.º 8 e 448º do C.P.C. quando, em conjugação com o Assento n.º 9/2000,
é interpretada no sentido de [que] a falta de indicação do «sentido em que deve ser fixada a jurisprudência, no requerimento de interposição do Recurso Extraordinário de Jurisprudência leva à rejeição imediata de tal Recurso, sem que previamente seja feito o convite à recorrente – arguida, para aperfeiçoar tal requerimento suprindo a respectiva deficiência»” - o recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Novembro de 2003, que decidiu a reclamação de irregularidade procedimental e que, aplicando as normas questionadas no sentido alegadamente inconstitucional, rejeitou a alegação de inconstitucionalidade.
III – Decisão
Nestes termos, defere-se a reclamação.
Lisboa, 26 de Abril de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida