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Processo n.º 393/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - Nos autos de recurso supra identificados em que é recorrente A. e recorrido o Director da 1ª Direcção de Finanças de Lisboa, foi proferida a seguinte decisão sumária:
1 – A. interpôs recurso contencioso de anulação do acto de autorização do Director da 1ª Direcção de Finanças de Lisboa materialmente concretizado no despacho de 27 de Março de 2001 que determinou o procedimento de alteração da matéria colectável daquela contribuinte em Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) de 1996 e 1997, através da aplicação da norma anti-abuso prevista no artigo 57º - A do Código de IRC.
Em 4 de Dezembro de 2001, foi proferido despacho nos autos do seguinte teor:
“Contendo os presentes autos toda a factualidade necessária à sua decisão conscienciosa, o Tribunal prescinde da inquirição das testemunhas arroladas pela recorrente no final do requerimento de interposição de recurso” (cfr. fls. 223). Inconformada com este despacho, a recorrente interpôs recurso de agravo (cfr. fls. 228 a 229), que foi admitido em 13 de Dezembro de 2001 (cfr. fls. 231). Concluiu a sua alegação como segue:
“1. O presente recurso vem interposto do douto despacho do Tribunal A Quo que prescindiu da inquirição de testemunhas arroladas pela recorrente no final do requerimento de interposição de recurso.
2. Na resposta ao recurso da ora agravante a entidade recorrida, ao afirmar serem inaplicáveis os artigos 46º e 49º do RCPIT às inspecções efectuadas, indirectamente nega estar-se na presença de uma inspecção externa, nos termos do artigo 13º b) do mesmo diploma, com as consequências legais daí inerentes, nomeadamente a desnecessidade de exibição das ordens de serviço conformadoras das inspecções.
3. A audição das testemunhas arroladas pela recorrente, reforçando a prova que as inspecções foram externas, é de molde a garantir o pleno direito de recurso contencioso de acto administrativo ilegal, consagrado no artigo 268º nº 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Nestes termos deve o despacho recorrido, que dispensou a audição das testemunhas, ser revogado dado que só com a mesma audição se efectivará plenamente o direito previsto no artigo 268º nº 4 da CRP, que consagra o recurso contencioso de acto administrativo ilegal.” A recorrida, 1ª Direcção de Finanças de Lisboa, pugnou na contra-alegação pela manutenção do despacho recorrido (cfr. fls. 241 a 244). Por acórdão de 4 de Novembro de 2003, o Tribunal Central Administrativo indeferiu o recurso. De novo inconformada, A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, tendo, no essencial, dito no requerimento de interposição de recurso:
“2. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas do artigo 679º do CPC, por um lado e por outro do artigo 97º nº 2 do CPPT, com as interpretações que lhe foram dadas no Acórdão contendo a decisão recorrida – do recurso a fls. 228 dos autos do despacho do Juiz de 1ª Instância que prescindiu da audição de testemunhas – segundo a qual, por um lado tal despacho foi proferido no uso de poderes discricionários não cabendo recurso do mesmo e, por outro, em termos da remissão da citada norma do CPPT para a LPTA e para o RSTA, por essa via, se excluir, no caso, a admissão de prova testemunhal.
3. As interpretações mencionadas violam o princípio constitucional consagrado no artigo 268 nº 4 do Constituição que consagra o pleno direito de recurso contencioso do acto administrativo ilegal.
4. A questão de inconstitucionalidade foi suscitada nos autos, a fls. ... – das alegações do recorrente, relativamente ao recurso em causa, no artigo 7º das mesmas e no ponto 3 das suas conclusões, ao referir que a audição das testemunhas arroladas pela recorrente é de molde a garantir o pleno direito de recurso contencioso de acto administrativo ilegal, consagrado no artigo 268 nº 4 da Constituição.
5. O presente recurso tem efeito suspensivo e sobe nos próprios autos”. Cumpre apreciar e decidir.
2 - No direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, in Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p. 821). E é também jurisprudência pacífica deste Tribunal que a questão de constitucionalidade suscitada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (cfr. o artigo 72º, n.º 2, da LTC), há-de ser uma questão de constitucionalidade normativa, isto é, referida à conformidade constitucional de norma(s). Salienta-se, ainda, que o recurso de constitucionalidade só é admissível se a norma (ou uma sua interpretação) cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada constituir a ratio da decisão impugnada. Ora, na parte que importa, escreveu-se no acórdão recorrido;
“Recurso de fls. 228 e segs, admitido pelo despacho de fls. 231: Muito embora tenha sido admitido o recurso do despacho de fls 223 que considerou conterem os autos todos os meios de prova para uma decisão conscienciosa, sem ter inquirido as testemunhas arroladas pela recorrente, tal não deveria ter acontecido, porque tal despacho, porque proferido no uso de poderes discricionários do M. Juiz do tribunal “a quo”, dele não cabia recurso – art.º
679º do CPC – sem prejuízo da sindicabilidade de tal questão, na sentença final, ou seja se os autos, afinal, continham ou não todos os elementos de facto que comportem a aplicação do direito, segundo as várias soluções plausíveis. Por outro lado, porque nos encontramos no âmbito de um recurso contencioso de acto administrativo em matéria tributária, a que lhe é aplicável as normas da LPTA – artº. 97º nº 2 do CPPT – a produção de prova testemunhal não se encontra prevista, quer no artº. 24º e segs da mesma LPTA, quer na Lei Orgânica ou no RSTA, mandada aplicar por esta norma, não havendo assim lugar à mesma. Assim, porque de tal despacho não cabia recurso, e o despacho que o admitiu não vincula este Tribunal, nos termos do disposto no artº. 687º nº 3 do CPC, indefere-se este recurso interposto”. (cfr. fls. 427). O Tribunal Central Administrativo entendeu, pois, que o despacho recorrido fora proferido no uso de um poder discricionário e era por isso irrecorrível nos termos do artigo 679º do CPC. O que a mais se diz no mesmo acórdão, no sentido de não ser admissível a prova testemunhal no recurso contencioso de acto administrativo em matéria tributária,
é, dado o tipo de decisão proferida - inadmissibilidade do recurso - e sob pena de contradição, um claro 'obiter dictum'. Na verdade, dizer-se que não está legalmente prevista a prova testemunhal no meio processual em causa é afinal conhecer do mérito de um recurso que antes se julgara inadmissível. Mas, sendo assim, não pode, desde logo, constituir objecto idóneo do recurso a norma do artigo 97º n.º 2 do CPPT, uma vez que esta norma não foi ratio decidendi do acórdão impugnado.
3 - Resta, deste modo, a norma do artigo 679º do CPC - enquanto nela se estabelece a irrecorribilidade de despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário - em que o acórdão recorrido enquadrou o caso do despacho que prescinde da prova testemunhal apresentada, por o processo alegadamente conter todos os factos necessários à decisão conscienciosa do recurso. O recorrente não suscitou a inconstitucionalidade da referida norma perante o tribunal que proferiu a decisão impugnada. Aceita-se, no entanto, que a decisão se possa considerar como decisão-surpresa
(o recurso foi, aliás, admitido, no tribunal de 1ª instância), o que exonera o recorrente do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade. A verdade, porém, é que, conhecendo do objecto do recurso tal como o recorrente o recorta e tendo em conta a disposição constitucional que o mesmo recorrente diz ter sido violada, não pode o Tribunal deixar de julgar o recurso manifestamente infundado. Com efeito, mesmo aceitando, por mera hipótese de raciocínio, que a prova testemunhal seja um meio essencial para garantir o pleno direito de recurso de acto administrativo ilegal nos termos do artigo 268º n.º 4 da CRP, de nenhum modo se pode entender que a norma do artigo 679º do CPC, interpretada no sentido acima exposto, ofenda aquela norma constitucional. Na verdade, conclusão contrária só poderia, eventualmente, extrair-se de uma norma que impedisse a prova testemunhal, tal como se entendeu no trecho do acórdão recorrido que se considerou ser um mero 'obiter dictum' e que, portanto, não está agora em causa. Mas de uma norma que, na interpretação adoptada no acórdão recorrido, se limita a dispor que é irrecorrível, por ser proferido no uso de um poder discricionário, o despacho que prescinde da prova testemunhal por o processo fornecer todos os elementos de facto necessários a uma decisão conscienciosa do recurso, nada resulta em contrário da pretensa essencialidade da prova testemunhal. Note-se que esta essencialidade não pode colocar-se relativamente ao efeito probatório que o recorrente, em concreto, pretendia com a apresentação da prova testemunhal. Se assim não fosse, estaria o Tribunal Constitucional a sindicar a própria decisão que julgou dispensável a produção da prova, o que está fora dos poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade, a norma (ou a sua interpretação) em causa é perfeitamente compatível com o suposto relevo constitucional da prova testemunhal em contencioso administrativo, pois tal não obsta a que um tribunal considere irrecorrível, por força dessa mesma norma, a decisão que, em concreto, prescinde da referida prova, no uso de poderes discricionários. Por outras palavras, quer a aludida discricionariedade, quer a irrecorribilidade do despacho, não põem em causa o pretendido valor constitucional da prova testemunhal por força do artigo 268º n.º 4 da CRP. Ou ainda: esse suposto valor permanece intangível mesmo que se não vede ao juiz a ponderação da sua necessidade no caso concreto e se não sujeite a recurso a sua decisão.
3 – Decisão: Pelo exposto e em conclusão, decide-se: a) não tomar conhecimento do objecto do presente recurso quanto à norma do artigo 97º n.º 2 do CPPT. b) negar provimento ao recurso, por manifestamente infundado, quanto à norma do artigo 679º do CPC. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 Ucs.'
Notificado desta decisão, a recorrente vem agora reclamar para a conferência.
A reclamação divide-se em três partes distintas: uma primeira respeitante à decisão de não conhecimento do recurso, relativamente à norma do artigo 97º n.º 2 do CPPT, onde a reclamante argui a nulidade da decisão sumária, nos termos do artigo 668º n.º 1 alínea d) do CPC, por alegado excesso dos poderes de pronúncia judicial, uma segunda em que se pretende demonstrar que o recurso, relativamente à citada norma do CPPT, deveria ser admitido e uma terceira em que se impugna a decisão na parte em que julgou manifestamente improcedente o recurso, na parte respeitante ao artigo 679º do CPC.
Vejamos, pois, cada uma destas questões.
3 - A decisão de não conhecimento do recurso relativamente a norma do artigo 97º n.º 2 do CPPT fundamentou-se, como se viu, no facto de se ter entendido que no despacho recorrido a referência à inadmissibilidade de prova testemunhal se deveria interpretar como mero obiter dictum, uma vez que, no mesmo despacho se julgara inadmissível o recurso por vir interposto de despacho proferido no uso de poderes discricionários.
Sendo pressuposto do recurso de constitucionalidade a aplicação da norma, cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada, como ratio decidendi, e competindo ao Tribunal Constitucional apreciar a verificação dos pressupostos do recurso, óbvio é que esta sindicância só pode ser efectuada mediante a interpretação da decisão recorrida, acto este que, assim, se compreende, plenamente, nos poderes jurisdicionais do relator (artigo 78º-A n.º 1 da LTC).
Por esta via não se verifica, pois, qualquer excesso de pronúncia quando o relator interpreta a decisão recorrida.
Coisa diferente - diferente de 'excesso de pronúncia' - é entender-se que esse acto interpretativo incorre em erro (no caso, segundo a reclamante, por 'reduzir arbitrariamente a decisão recorrida').
Improcede, pois, a invocada nulidade.
4 - Não aduz a reclamante qualquer argumento suficientemente consistente no sentido de abalar a interpretação que foi feita, na decisão sumária, do acórdão recorrido.
Resta, assim, à conferência confirmar essa interpretação, não deixando, ainda, de salientar como reforço do que se entendeu na decisão reclamada, o trecho conclusivo do acórdão recorrido, onde se afirma:
'Assim, porque de tal despacho não cabia recurso, e o despacho que o admitiu não vincula este Tribunal, nos termos do disposto no artº. 687º nº 3 do CPC, indefere-se este recurso interposto'.
5 - Finalmente, no que concerne à norma do artigo 687º n.º 3 do CPC, relativamente à qual se decidiu que o recurso era manifestamente improcedente, também se não vê na reclamação qualquer fundamento que demonstre que a questão a decidir não é de simples resolução - único fim que a reclamação, nestes casos, pode visar.
Com efeito, a reclamante, para além de insistir na afirmação feita no acórdão recorrido no sentido de que a prova testemunhal não é admissível em recurso de acto tributário - o que, como se viu já, só tem a ver com a questão da aplicação da norma do artigo 97º n.º 2 do CPPT, que foi decidida em sentido contrário à pretensão da reclamante - faz apenas relevar o valor da prova testemunhal na tutela judicial efectiva dos direitos ofendidos, relevância essa que radica na Constituição.
Ora, na decisão reclamada, não se põe em causa uma tal relevância, assentando até nesse pressuposto o julgamento de improcedência do recurso.
O que se diz é que o invocado direito à prova testemunhal não é, de modo algum, incompatível com a possibilidade de o juiz entender, no uso de um poder discricionário, que o processo contém já todos os elementos de facto necessários para uma decisão conscienciosa (o que até, genericamente, se admite nos termos do artigo 510º n.º 1 alínea b) do CPC) e, consequentemente, prescinda da prova testemunhal oferecida, como acto que, nas circunstâncias do caso, seria inútil.
Nesta conformidade, só uma alegação fundada no sentido de tal poder do julgador ser incompatível com o valor constitucional da prova testemunhal seria susceptível de determinar a conferência à revogação do despacho reclamado e à decisão de notificar a recorrente para produzir alegações.
Tal não se verifica, não deixando a conferência de sufragar o entendimento da decisão reclamada quanto à manifesta improcedência do recurso.
6 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se as custas em 20 Ucs.
Lisboa, 13 de Julho de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida