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Processo n.º 132/04 Plenário Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. Um grupo de Deputados do Partido Socialista à Assembleia da República requereu, ao abrigo dos artigos 281.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 51.º, n.º 1, e 62.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade das normas contidas nos n.ºs 1 a 5 do artigo 1.º da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro (décima sétima alteração ao Estatuto da Aposentação, revogação do Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, e primeira alteração aos Decretos-Leis n.ºs 128/90, de 17 de Abril, e 327/85, de 8 de Agosto).
As normas impugnadas são do seguinte teor:
Artigo 1.º Caixa Geral de Aposentações
1 – Os artigos 51.º e 53.º do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro, nas redacções, respectivamente, da Lei n.º 30-C/92, de 28 de Dezembro, e do Decreto-Lei n.º 191-A/79, de 25 de Junho, passam a ter a seguinte redacção:
«Artigo 51.º Regimes especiais
1–
.................................................................................................
2–
.................................................................................................
3 – Sem prejuízo de outros limites aplicáveis, a pensão de aposentação do subscritor sujeito ao regime do contrato individual de trabalho determina-se pela média mensal das remunerações sujeitas a desconto auferidas nos últimos três anos, com exclusão dos subsídios de férias e de Natal ou prestações equivalentes.
4 – (Anterior n.º 3.)
Artigo 53.º Cálculo da pensão
1 – A pensão de aposentação é igual à 36.ª parte da remuneração mensal relevante, deduzida da percentagem da quota para efeitos de aposentação e de pensão de sobrevivência, multiplicada pela expressão em anos do número de meses de serviço contados para a aposentação, com o limite máximo de
36 anos.
2 – A pensão não pode, em caso algum, exceder o montante da remuneração líquida a que se refere o n.º 1.
3–
.................................................................................................
4–
...............................................................................................»
2 – É aditado um artigo 37.º-A ao Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro, com a seguinte redacção:
«Artigo 37.º-A Aposentação antecipada
1 – Os subscritores da Caixa Geral de Aposentações que contem, pelo menos, 36 anos de serviço podem, independentemente de submissão a junta médica e sem prejuízo da aplicação do regime da pensão unificada, requerer a aposentação antecipada.
2 – O valor da pensão de aposentação antecipada prevista no número anterior é calculado nos termos gerais e reduzido pela aplicação de um factor de redução determinado pela fórmula 1 - x, em que x é igual à taxa global de redução do valor da pensão.
3 – A taxa global de redução é o produto da taxa anual de
4,5% pelo número de anos de antecipação em relação à idade legalmente exigida para a aposentação.
4 – O número de anos de antecipação a considerar para a determinação da taxa global de redução da pensão é reduzido de um por cada período de três que exceda os 36.»
3 – É revogado o Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 de Abril.
4 – É aditado um n.º 5 ao artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 128/90, de
17 de Abril, com a seguinte redacção:
«5 – A remuneração relevante para efeitos de desconto de quota e de cálculo da pensão de aposentação não pode ser inferior à estabelecida na convenção colectiva de trabalho aplicável nem superior à que respeite à categoria e escalão da carreira docente instituída para o ensino oficial correspondente ao mesmo tempo de serviço docente.»
5 – O artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 327/85, de 8 de Agosto, passa a ter a seguinte redacção:
«Artigo 4.º
1–
.................................................................................................
2 – A remuneração relevante para efeitos de desconto de quota e de cálculo da pensão de aposentação não pode ser inferior à estabelecida na convenção colectiva de trabalho aplicável nem superior à que respeite à categoria e escalão da carreira docente instituída para o ensino oficial correspondente ao mesmo tempo de serviço docente.
3 – (Anterior n.º 2.)»
2. Na fundamentação do pedido, os requerentes aduziram, designadamente, o seguinte:
– são profundas e de grande impacto para os trabalhadores da Administração Pública as alterações que as normas questionadas vêm introduzir, quer quanto ao método de cálculo das pensões de aposentação, com particular incidência nos respectivos montantes, quer quanto ao regime de aposentação antecipada, conduzindo a uma restrição dos direitos e regalias até então vigentes;
– a Lei n.º 1/2004 teve por desiderato, como expressamente reconhecem os autores do Projecto de Lei n.º 362/IX (Diário da Assembleia da República, IX Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa, II Série-A, n.º 8, de 18 de Outubro de 2003, pág. 325), que esteve na sua génese, repor através de uma iniciativa legislativa própria da Assembleia da República as normas constantes do artigo 9.º, n.ºs 1 a 8, da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2003), declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 360/2003
(Diário da República, I Série-A, n.º 232, de 7 de Outubro de 2003, pág. 6624), por violação do direito das associações sindicais à participação na elaboração da legislação do trabalho, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da CRP;
– esquecem os Grupos Parlamentares que apadrinharam a Lei n.º
1/2004 que as normas contidas no seu artigo 1.º, n.ºs 1 a 5, não levantando, desta vez, dúvidas de inconstitucionalidade por violação do direito das associações sindicais à participação na elaboração da legislação do trabalho, continuam a suscitar dúvidas no plano da sua conformidade legal com o disposto na Lei n.º 23/98, de 26 de Maio, que estabelece o regime de negociação colectiva e de participação dos trabalhadores em regime de direito público;
– com efeito, entendem os requerentes que as normas em causa, dado estatuírem sobre o método de cálculo das pensões de aposentação e consequentemente sobre o montante das pensões e sobre o regime de aposentação antecipada, devem forçosamente ser analisadas à luz do enquadramento jurídico previsto na Lei n.º 23/98, que estabelece o regime de negociação colectiva e de participação dos trabalhadores em regime de direito público;
– este é um exercício necessário e fundamental que se impõe fazer de modo a determinar se as citadas normas legais se reportam, ou não, a matérias que integram o conceito de matérias sujeitas a negociação colectiva a desenvolver entre o Governo e as associações sindicais, já que daí resultará a sua conformidade ou desconformidade legal com o disposto nas normas contidas na Lei n.º 23/98, que fixam as matérias e os procedimentos da negociação colectiva;
– a CRP reconhece expressamente às associações sindicais o direito de contratação colectiva, o qual é assegurado nos termos da lei; trata-se, como se infere da CRP e da jurisprudência constitucional sedimentada, de um direito consagrado sob reserva da lei, não podendo esta esvaziar o seu conteúdo;
– no que especificamente se refere aos trabalhadores da Administração Pública que prestam a sua actividade em regime de emprego público, o direito de contratação colectiva encontra-se densificado na Lei n.º 23/98;
– a citada Lei n.º 23/98 garante expressamente aos trabalhadores em regime de emprego público o direito de negociação colectiva do seu estatuto, definindo a negociação colectiva como “a negociação efectuada entre as associações sindicais e a Administração das matérias relativas àquele estatuto, com vista à obtenção de um acordo” (artigo 5.º, n.ºs 1 e 2), estatuindo que, nas situações de negociação colectiva de carácter geral, o interlocutor pela Administração é o Governo (artigo 14.º, n.º 1);
– o citado diploma legal consagra de forma taxativa as matérias que são objecto de negociação colectiva, definindo, como tal, designadamente,
“as matérias relativas à fixação ou alteração: (...) b) Das pensões de aposentação ou de reforma” (artigo 6.º, alínea b));
– significa, pois, que as normas ora questionadas, dado que objectivamente incidem sobre a fixação e a alteração do método do cálculo das pensões de aposentação dos trabalhadores da Administração Pública e, nessa medida, conduzem a uma modificação do montante das pensões, integram o conceito de matérias de negociação colectiva, nos termos e para os efeitos previstos na Lei n.º 23/98;
– neste contexto, é forçoso concluir que as normas contidas no artigo 1.º, n.ºs 1 a 5, da Lei n.º 1/2004, tinham de ser prévia e obrigatoriamente objecto de negociação colectiva a exercer entre o Governo e as associações sindicais representativas dos trabalhadores da Administração Pública, sob pena de enfermarem de ilegalidade por violação das normas contidas na Lei n.º 23/98;
– em consequência, dado que a negociação colectiva não ocorreu no caso vertente e que a Assembleia da República não poderia suprir tal omissão porque pura e simplesmente não dispõe de legitimidade jurídico-legal para, em representação da Administração Pública ou do Governo, exercer a negociação colectiva (cf. artigo 182.º da CRP e 14.º da Lei n.º 23/98), não estava o Parlamento habilitado para aprovar as normas em apreço, e, ao fazê-lo, colocou em crise as normas que na Lei n.º 23/98 fixam as matérias e os procedimentos de negociação colectiva, situação tanto mais grave quando é sabido estarmos perante um diploma legal de valor reforçado;
– ao aprovar a Lei n.º 23/98, que consagra um bloco de matérias sujeitas a negociação colectiva a exercer entre as associações sindicais representativas dos trabalhadores da Administração Pública em regime de direito público e o Governo, bem como normas que fixam os procedimentos de negociação colectiva, o que lhe confere o carácter de lei de valor reforçado, a Assembleia da República clara e manifestamente autolimitou o seu poder de iniciativa legislativa quanto às referidas matérias, que só podem ser objecto de acto normativo cumpridos os requisitos previstos no citado diploma legal;
– com efeito, as normas constantes da Lei n.º 23/98 que estabelecem os procedimentos de negociação colectiva quanto a determinadas matérias, nomeadamente do Estatuto da Aposentação, gozam do status de leis de valor reforçado, na medida em que impõem a outras normas legais que modificam os regimes jurídicos a observância de determinados procedimentos quanto ao modo de produção de actos legislativos (cf. n.º 3 do artigo 112.º da CRP, in fine);
– ora, a Lei n.º 23/98, aprovada na decorrência do n.º 3 do artigo
56.º da Constituição, que estabelece o direito de contratação colectiva, ao conter normas que fixam as matérias sujeitas ao império da negociação colectiva e os procedimentos a observar no quadro da negociação colectiva, conferindo-lhe o status de lei de valor reforçado, enquadrando-se na parte final do já aludido n.º 3 do artigo 112.º da CRP, na justa medida em que outras leis que venham a regular tais matérias, nomeadamente as relativas à fixação ou alteração “das pensões de aposentação ou de reforma”, devem respeitar os procedimentos de negociação colectiva ali fixados;
– nestes termos, o incumprimento de tais procedimentos no quadro do processo legislativo que culminou com a aprovação do artigo 1.º, n.ºs 1 a 5, da Lei n.º 1/2004, configura um vício autónomo de ilegalidade, por violação de uma lei de valor reforçado.
3. Na sua resposta, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e juntou os Diários da Assembleia da República contendo os trabalhos preparatórios da Lei n.º 1/2004.
4. Debatido o memorando apresentado, nos termos do artigo 63.° da LTC, pelo Presidente do Tribunal, e fixada a orientação sobre as questões a resolver, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
II – Fundamentação
5. Como expressamente se afirma na “Exposição de motivos” do citado Projecto de Lei n.º 362/IX, esta iniciativa legislativa, que viria a culminar com a publicação da Lei n.º 1/2004, foi desencadeada na sequência da prolação do Acórdão n.º 360/2003 do Tribunal Constitucional, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do direito das associações sindicais à participação na elaboração da legislação do trabalho, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da CRP, das normas constantes dos n.ºs 1 a 8 do artigo 9.º da Lei n.º 32-B/2002 (Orçamento do Estado para 2003), que introduziam alterações no método de cálculo das pensões de aposentação e no regime de aposentação antecipada dos trabalhadores da Administração Pública.
O processo onde foi emitido o Acórdão n.º 360/2003 teve na base requerimento do Presidente da República que, ao abrigo do artigo 281.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), e 2, da CRP, formulou dois pedidos: pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas questionadas (com um triplo fundamento: (i) violação do direito de contratação colectiva das associações sindicais, consagrado no artigo 56.º, n.º 3, da CRP; (ii) violação do direito das associações sindicais à participação na elaboração da legislação do trabalho, consagrado no artigo 56.º, n.º 2, alínea a), da CRP; e (iii) violação indirecta do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da CRP, “que, numa lógica de autolimitação jurídica dos poderes do Estado, obriga os poderes constituídos à observância das leis por eles mesmos emitidas enquanto essas leis estiverem em vigor” e do princípio do artigo 112.º, n.º 3, in fine, da CRP,
“que, concretizando aquele princípio, expressamente eleva à categoria de leis ordinárias reforçadas todas aquelas que por outras devam ser respeitadas”) e pedido de declaração de ilegalidade das mesmas normas (por violação dos artigos
6.º, alínea b), 7.º, 10.º, n.º 1, alínea d), e 9.º e 14.º da Lei n.º 23/98, rotulada de lei com valor reforçado). No referido Acórdão, o Tribunal Constitucional, tendo atribuído prioridade à apreciação do segundo fundamento do pedido de declaração de inconstitucionalidade (violação do direito das associações sindicais à participação na elaboração da legislação do trabalho) e tendo concluído pela sua procedência, com declaração de inconstitucionalidade das normas impugnadas, considerou desnecessário apreciar quer a verificação dos demais vícios invocados para basear o pedido de inconstitucionalidade
(desrespeito do direito de negociação e violação indirecta dos artigos 2.º e
112.º, n.º 3, da CRP), quer o pedido de declaração de ilegalidade.
No presente caso, os requerentes formulam apenas o pedido de declaração de ilegalidade, e não também o de inconstitucionalidade, o que implica que, caso aquele venha a ser julgado improcedente, não será consentido ao Tribunal Constitucional indagar da eventual existência de vícios susceptíveis de fundar um juízo de inconstitucionalidade das normas impugnadas, como resulta do n.º 5 do artigo 51.º da LTC, que conjuga o princípio do conhecimento oficioso do direito pelos tribunais com o princípio do pedido.
Do exposto resulta que há que apreciar apenas se as normas dos n.ºs 1 a 5 do artigo 1.º da Lei n.º 1/2004 padecem de vício de ilegalidade por violarem a Lei n.º 23/98, que os requerentes qualificam como lei com valor reforçado.
Para essa apreciação cumpre, antes de mais, clarificar o conceito constitucional de “lei com valor reforçado”, para, depois, determinar se a Lei n.º 23/98 a ele se subsume, e, em caso de resposta afirmativa, apurar se as normas questionadas desrespeitam esta Lei.
6. Foi a revisão constitucional de 1982 que explicitou a regra da equivalência das leis e dos decretos-leis, mas logo excepcionando a posição de subordinação dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos decretos-leis de desenvolvimento das bases gerais dos regimes jurídicos às correspondentes leis de autorização e leis de bases (n.º 2 do artigo 115.º), e que cometeu ao Tribunal Constitucional, então instituído, a par da sua competência em sede de fiscalização da constitucionalidade, a fiscalização
(concreta e abstracta sucessiva) da legalidade, mas circunscrita ao âmbito regional (ilegalidade de normas constantes de diplomas regionais por violação do estatuto da região ou de lei geral da República e ilegalidade de norma constante de diploma emanado de órgão de soberania por violação do estatuto de uma região autónoma – artigos 280.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), e 281.º, n.º 1, alíneas b) e c)).
No entanto, a doutrina já vinha enunciando outras situações de supra-ordenação de actos legislativos, fazendo apelo a variados critérios para a determinação dessas “leis reforçadas”: o da parametricidade (aferido por um processo judicial de fiscalização), o do fundamento material de validade normativa, o da capacidade derrogatória, o da forma e especificidade procedimental, o da diferenciação de funções, o da proeminência não hierárquica
(cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo V – Actividade Constitucional do Estado, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, págs.
348-349, com extensas referências bibliográficas).
A revisão constitucional de 1989, embora não tivesse acolhido a proposta de consagração das “leis paraconstitucionais”, instituiu a figura das
“leis orgânicas”, a que o n.º 2 do artigo 115.º atribuiu explicitamente “valor reforçado”. Nos termos do artigo 169.º, n.º 2, revestiam a forma de lei orgânica os actos previstos nas alíneas a) e e) do artigo 167.º, isto é, as leis da Assembleia da República que incidissem sobre as seguintes matérias, todas elas incluídas no âmbito da sua reserva absoluta de competência legislativa: a) eleições dos titulares dos órgãos de soberania; b) regime do referendo; c) organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional; d) organização da defesa nacional, definição dos deveres dela decorrentes e bases gerais da organização, do funcionamento e da disciplina das Forças Armadas; e e) regimes do estado de sítio e do estado de emergência. As leis orgânicas, para além de serem obrigatoriamente votadas na especialidade pelo Plenário da Assembleia da República (característica, que, porém, não era exclusiva delas – cf. artigo
171.º, n.º 4), careciam ainda de aprovação, na votação final global, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (artigo 171.º, n.º 5).
A mesma revisão constitucional de 1989 alargou a competência do Tribunal Constitucional, na fiscalização concreta e abstracta sucessiva da ilegalidade, até então confinada ao “âmbito regional”, a todas as situações de
“ilegalidade de quaisquer normas constantes de acto legislativo com fundamento em violação de lei com valor reforçado” (artigos 280.º, n.º 2, alínea a), e
281.º, n.º 1, alínea b)). A ausência de uma definição constitucional do conceito de “lei com valor reforçado”, que obviamente não se cingia às leis orgânicas, originou assinaláveis divergências doutrinárias, desde a tentativa de reconduzir o critério de atribuição desse qualificativo ao mesmo que operava nas leis orgânicas (integração na reserva legislativa absoluta do Parlamento e sujeição a um procedimento agravado de aprovação parlamentar), passando por uma posição “monista” centrada na proeminência material de certas leis sobre outras, e até à posição “dualista”, que considerava reforçadas tanto as leis sujeitas a um procedimento agravado, como as leis paramétricas do conteúdo de outras (cf., relativamente à versão da CRP de 1989, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, págs. 503-508 e 1022-1023; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 1991, págs.
873-876; Carlos Blanco de Morais, As Leis Reforçadas – As Leis Reforçadas pelo Procedimento no Âmbito dos Critérios Estruturantes das Relações entre Actos Legislativos, Coimbra Editora, Coimbra, 1998; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II – Constituição e Inconstitucionalidade, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, págs. 327-328; Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, págs. 290-301; e “Apreciação da Dissertação de Doutoramento de Carlos Blanco de Morais”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXVIII, n.º 2, 1997, págs. 595-603; J. J. Teixeira Ribeiro, “As últimas alterações à Constituição no domínio das finanças públicas”, Boletim de Ciências Económicas, vol. XXXIII, 1990, pág. 201, n.º 8; António Vitorino, “Prefácio” à Constituição da República Portuguesa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1989, págs. LXX-LXXII; José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1989, pág. 71; José Luís R. Moreira da Silva, Da Lei Orgânica na Constituição da República Portuguesa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1991; Lino Torgal, “Da Lei-Quadro na Constituição Portuguesa de 1976”, em Jorge Miranda (org.), Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, págs. 907-962; e Paulo Castro Rangel, “A concretização legislativa da Lei-Quadro das Reprivatizações (a propósito da inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro)”, Legislação – Cadernos de Ciência de Legislação, n.º 23, Outubro/Dezembro de
1998, págs. 5-38).
Face à redacção de 1989 da Constituição, a jurisprudência constitucional teve oportunidade de se debruçar por diversas vezes sobre a temática das leis de valor reforçado, densificando este conceito. Destacam-se, a este propósito, os Acórdãos n.ºs 71/90, 358/92 e 365/96, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 15.º, pág. 7, vol. 23.º, pág. 109, vol. 33.º, pág. 513, respectivamente, e no Diário da República, II Série, n.º 164, de 18 de Julho de 1990, pág. 7989, I Série-A, n.º 21, de 26 de Janeiro de 1993, pág.
297, e II Série, n.º 108, de 9 de Maio de 1996, pág. 6185, também respectivamente).
No primeiro dos arestos citados (Acórdão n.º 71/90), tendo em conta as alterações introduzidas pela 2.ª revisão constitucional, o Tribunal pronunciou-se sobre o valor reforçado da lei quadro das reprivatizações, nos seguintes termos:
“(...) à face do disposto na Constituição, esta lei quadro das reprivatizações é concebida como uma norma sobre a produção normativa (à semelhança do que sucede com as leis de autorização legislativa, com as denominadas «leis de enquadramento» – caso da referente ao Orçamento do Estado – e mesmo com algumas leis de bases), destinada a desempenhar uma função habilitante, na medida em que constitui pressuposto da prática pelo Governo dos actos normativos de reprivatização de cada empresa pública ou nacionalizada [os decretos-leis de transformação das empresas em causa em sociedades anónimas
(artigo 4.º do Decreto) e as resoluções do Conselho de Ministros que aprovam as condições finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização (artigo 14.º do Decreto)] e dotada de uma primariedade material e hierárquica (porque conformadora daqueles decretos-leis e daquelas resoluções e sobre uns e outros naturalmente prevalecente, não só em função da sua específica função hierárquico-normativa, mas também por força do princípio da repartição de competências entre os órgãos de soberania – já que versando matéria sobre a qual primariamente só o Parlamento detém competência legislativa).”
O segundo acórdão mencionado (Acórdão n.º 358/92), também no âmbito da 2.ª revisão constitucional, analisou a Lei das Finanças Locais, tendo concluído que não se tratava de lei de valor reforçado. Sobre este conceito, importa reter o seguinte trecho do acórdão:
“(...) na ausência de uma definição expressa, o assinalado valor reforçado há-de decorrer da conjugação de dois critérios essenciais, o da sua proeminência funcional enquanto fundamento material da validade normativa de outros actos e o da sua força formal negativa, enquanto portadora de uma especial protecção face aos efeitos derrogatórios produzidos por lei posterior. Um e outro critério deverão operar sempre em função dos enunciados linguísticos da própria Constituição.”
Por seu turno, o mencionado Acórdão n.º 365/96, em que estavam em causa normas contidas no Tratado de Roma, qualificado pelo recorrente como lei de valor reforçado, pronunciou-se no seguinte sentido:
“(...) quer se assente o traço característico das «leis com valor reforçado» na posição de proeminência de natureza funcional traduzida numa específica força formal ou se parta da ideia de que se está perante leis conformadoras da produção de outras leis ou constitutivas dos seus limites, tais leis, para além de certas exigências procedimentais na sua aprovação, dispõem de uma «superioridade relativa» em face de outros actos legislativos, derivada do seu conteúdo que é condicionante material da normação a estabelecer pelos diplomas a publicar na sua directa dependência.”
Finalmente, a revisão constitucional de 1997, na redacção dada ao artigo 112.º (correspondente ao anterior artigo 115.º), repôs, no n.º 2, a versão de 1982 (“As leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos”), e aditou um novo n.º 3, do seguinte teor:
“Têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem da aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou por outras devam ser respeitadas.”
Esta definição constitucional de leis com valor reforçado, corresponde, como reconhece Carlos Blanco de Morais (Justiça Constitucional, Tomo I – Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, págs. 410-433, em especial pág. 416, n.º 339), ao acolhimento da posição “dualista” que, já face à revisão de 1989, considerava que o valor reforçado das leis podia advir quer da sujeição a um procedimento agravado, quer da atribuição de uma função paramétrica (“leis interpostas”).
Resulta, com efeito, da actual redacção do n.º 3 do artigo 112.º da CRP que se prevêem quatro espécies de leis com valor reforçado, as duas primeiras tendo na base critérios “formais ou procedimentais” e as duas últimas assentando em critérios “materiais”:
1) as leis orgânicas, isto é, nos termos do artigo 166.º, n.º 2, as leis da Assembleia da República que versem sobre: eleições dos titulares dos
órgãos de soberania; regimes dos referendos; organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional; organização da defesa nacional, definição dos deveres dela decorrentes e bases gerais da organização, do funcionamento, do reequipamento e da disciplina das Forças Armadas; regimes do estado de sítio e do estado de emergência; aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade portuguesa; associações e partidos políticos; eleições dos deputados às Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira; eleições dos titulares dos órgãos do poder local; regime do sistema de informações da República e do segredo de Estado; regime de finanças das regiões autónomas; e criação de regiões administrativas;
2) as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, isto é, nos termos do artigo 168.º, n.º 6: a lei que regula o exercício do direito de voto para a eleição para Presidente da República dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro; as disposições das leis que regulam a composição da Assembleia da República e os círculos eleitorais; as disposições das leis que regulam as restrições ao exercício de direitos por militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, bem como por agentes dos serviços e forças de segurança; e as leis relativas ao sistema e método de eleição dos órgãos executivos colegiais das autarquias locais;
3) as leis que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis; e
4) as leis que, por força da Constituição, devam ser respeitadas por outras leis.
Nestes dois últimos casos, a Constituição prevê uma relação de pressuposição e de parametricidade entre normas, que constitui excepção face à regra geral, instituída no n.º 2 do artigo 112.º, do igual valor entre as leis e os decretos-leis.
Também esta nova formulação tem originado entendimentos não inteiramente coincidentes por parte da doutrina (cf. as “Opiniões” de Carlos Blanco de Morais, J. J. Gomes Canotilho, Jorge Bacelar Gouveia, Jorge Miranda, Manuel Afonso Vaz, Maria Lúcia Amaral e Paulo Otero, em Legislação – Cadernos de Ciência de Legislação, n.º 19/20, Abril/Dezembro de 1997, págs. 9-147, em especial págs. 23-30, 42-43, 59-61, 70-81, 98-100, 111-114 e 129-132, respectivamente; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, págs. 781-785; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo V – Actividade Constitucional do Estado,
2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, págs. 349-369, e “Sobre os actos legislativos em Portugal após a revisão constitucional de 1997”, em Seminário Permanente de Direito Constitucional e Administrativo, vol. I, Associação Jurídica de Braga / Departamento Autónomo de Direito da Universidade do Minho,
1999, págs. 5-33, em especial págs. 21-24; José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, Editorial Notícias, Lisboa, 1999, pág. 141; Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, Constituição da República Portuguesa Comentada, Lex, Lisboa, 2000, págs. 227-228; Alexandre Sousa Pinheiro e Mário João de Brito Fernandes, Comentário à IV Revisão Constitucional, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1999, págs. 277-300, em especial págs. 292-300; e, por último, Florence Cruz, L’Acte Législatif en Droit Comparé Franco-Portugais, Presses Universitaires d’Aix-Marseille / Economica,
2004, págs. 652-681).
Na citada “Opinião” (Legislação, n.ºs 19/20, pág. 42), J. J. Gomes Canotilho refere:
“Perante a indeterminação do conceito de leis reforçadas introduzida pela 2.ª revisão da Constituição, a Lei Constitucional n.º 1/97 pretendeu eliminar algumas dúvidas através da densificação jurídico-constitucional de tal conceito. (...) No artigo 112.º, n.º 3, recortam-se quatro categorias de leis reforçadas articulando critérios muito heterogéneos para a sua caracterização. Por um lado, recorre-se a critérios funcionais-formais para identificar como leis reforçadas as leis orgânicas e as leis que carecem de aprovação por uma maioria de dois terços. Por outro lado, apela-se a “critérios-represa” para captar as restantes leis reforçadas. São eles critérios da parametricidade específica (leis que são pressupostos normativos necessários de outras leis) e critérios da parametricidade geral (leis que devem ser respeitadas por outras leis).”
O mesmo autor (em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, citado, págs. 783-785) dá como exemplos de aplicação do critério da parametricidade específica: as leis de bases (que estabelecem parâmetros materiais vinculativos dos decretos-leis ou dos decretos legislativos regionais de desenvolvimento – artigos 112.º, n.º 2, 198.º, n.º 1, alínea c), e 227.º, n.º
1, alínea c)), as leis de autorização (que prescrevem critérios materiais obrigatoriamente observados pelos decretos-leis ou pelos decretos legislativos regionais autorizados – artigos 112.º, n.º 2, 165.º, n.º 2, 198.º, n.º 1, alínea b), e 227.º, n.º 1, alínea b)), e a lei de enquadramento do orçamento (que estabelece princípios inderrogáveis pela lei anual dos orçamentos do Estado e das Regiões Autónomas – artigos 106.º, n.º 1, 164.º, alínea r), 227.º, n.º 1, alínea r), e 232.º, n.º 1); e como exemplos de aplicação do critério da parametricidade geral: a lei das grandes opções dos planos de desenvolvimento económico e social (artigo 105.º, n.º 2), a lei quadro das privatizações (artigo
296.º), os estatutos das regiões autónomas (artigo 226.º) e a lei das finanças regionais (artigos 229.º, n.º 3, e 164.º, alínea t)).
Por seu turno, Jorge Miranda (Manual ..., tomo V, citado, págs.
354-355) aponta como leis reforçadas (das duas últimas espécies): a lei do regime do estado de sítio e do estado de emergência (porque a declaração do estado de sítio, a sua autorização ou a sua ratificação – actos materialmente legislativos ou, pelo menos, actos com força afim da força de lei – devem obediência a esta lei: artigos 19.º, n.ºs 5 e 7, 164.º, alínea e), e 275.º, n.º
7); o Orçamento do Estado (porque, durante o ano económico, nenhuma lei que não seja de alteração do próprio Orçamento o pode afectar: artigos 105.º, 106.º,
161.º, alínea g), e 165.º, n.º 5); a lei do regime dos planos de desenvolvimento económico e social (porque estes planos são elaborados de acordo com as suas regras enquanto complementares das normas constitucionais: artigos 91.º e 165.º, n.º 1, alínea m)); a lei relativa às condições de recurso ao crédito público
(porque as leis de autorização de empréstimos têm de a respeitar: artigos
105.º, n.º 4, 161.º, alínea h), e 166.º, n.º 3); as leis de enquadramento orçamental (porque o orçamento do Estado e os das Regiões Autónomas são elaborados, organizados e executados de acordo com elas: artigos 106.º, 164.º, alínea r), 227.º, n.º 1, alínea p), e 232.º, n.º 1); as leis de autorização legislativa (porque os decretos-leis e os decretos legislativos regionais autorizados têm de respeitar o sentido fixado nas correspondentes leis de autorização: artigos 112.º, n.º 2, 161.º, alíneas d) e e), 165.º, n.ºs 2 e 5,
169.º, n.ºs 2 e 3, 198.º, n.ºs 1, alínea b), e 3, e 227.º, n.ºs 1, alínea b), 2,
3 e 4); as leis de bases (porque os decretos-leis e os decretos legislativos regionais de desenvolvimento têm de se mover no âmbito preceptivo das bases: artigos 112.º, n.º 2, 198.º, n.ºs 1, alínea c), e 3, e 227.º, n.º 1, alínea c)); as leis dos regimes dos referendos (porque a realização dos referendos – do referendo em geral e do referendo sobre as regiões administrativas – e a determinação dos seus efeitos constituem objecto dessas leis: artigos 115.º,
164.º, alínea b), 223.º, n.º 2, alínea f), 232.º, n.º 2, e 256.º, n.º 3); os estatutos político-administrativos das regiões autónomas (porque nenhum diploma pode contrariar as suas disposições específicas: artigos 161.º, alínea b),
226.º, 227.º, n.º 1, alínea e), 231.º, n.º 6, 232.º, n.º 3, 280.º, n.º 2, alíneas b) e c), e 281.º, n.ºs 1, alíneas c) e d), e 2); a lei do regime de criação, extinção e modificação territorial das autarquias locais (porque a divisão administrativa do território, que é feita por lei, depende desse regime: artigos 164.º, alínea n), 227.º, n.º 1, alínea l), e 236.º, n.º 4); a lei quadro de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais
(porque o poder das regiões autónomas de proceder a essa adaptação pressupõe tal lei: artigo 227.º, n.º 1, alínea i)); os orçamentos das regiões autónomas (por razões idênticas às do orçamento do Estado: artigos 227.º, n.º 1, alínea p), e
232.º, n.º 1); a lei de criação das regiões administrativas (porque a criação em concreto de cada região depende desta lei: artigos 255.º e 256.º); e a lei quadro das reprivatizações (porque qualquer acto de reprivatização deve respeitar as suas regras materiais e procedimentais: artigo 296.º da CRP, como todos os anteriormente citados sem menção de diploma).
Para efeito da densificação do conceito constitucional de lei com valor reforçado a que, neste ponto do presente acórdão, se procurou proceder, não é necessário apreciar a correcção das enumerações feitas pelos autores acabados de citar.
O que importa salientar é que – como, aliás, resulta da formulação literal do n.º 3 do artigo 112.º da CRP – os atributos de pressuposto normativo necessário e de vinculatividade material relativamente a outras leis que caracterizam as leis com valor reforçado têm de derivar directamente da Constituição; isto é, não basta que uma lei se autoproclame como pressuposto ou parâmetro de validade de outras leis para, sem mais, se transformar em lei com valor reforçado.
A necessidade de aqueles requisitos resultarem directamente da Constituição tem sido reiteradamente sublinhada pela generalidade da doutrina.
Assim, Jorge Miranda (Manual ..., tomo V, citado, pág. 351) afirma:
“Na medida em que a força específica da lei decorre de normas constitucionais, a infracção de lei de valor reforçado envolve inconstitucionalidade. Mas trata-se de inconstitucionalidade indirecta (...). Quer dizer: a lei contrária a lei de valor reforçado vem a ser inconstitucional, não porque ofenda uma norma constitucional de fundo, mas porque agride uma norma interposta constitucionalmente garantida. E, precisamente, o critério para se reconhecer se uma lei é reforçada ou não está em saber se se verifica ou não tal ocorrência; está em saber se a inconstitucionalidade surge imediatamente ou se é consequência da ilegalidade.”
E mais adiante (pág. 365):
“A qualificação de uma lei como reforçada não depende da designação que o legislador lhe confira. Depende da verificação dos requisitos de qualificação constitucionalmente fixados, os quais têm que ver essencialmente com o objecto da lei, com as matérias sobre que versa, com a função que pretende exercer e, em alguns casos, complementarmente, com o respectivo procedimento.”
Manuel Afonso Vaz (“Opinião”, em Legislação, n.ºs 19/20, págs.
99-100) refere:
“O que queremos com isto salientar – e é este o segundo aspecto a nosso ver clarificador – é que não há leis com valor reforçado que dependam da vontade do órgão legislativo, antes é «por força da Constituição» que a lei se afirma com valor reforçado. Terá sempre de se invocar um preceito constitucional específico que faça daquele acto legislativo ou a forma, ou o pressuposto, ou o parâmetro, limitadores de outros actos legislativos. O problema continua assim a ser, como já o era, um problema de interpretação constitucional.»
Por outro lado, e como é óbvio, não basta incidir sobre matéria colocada sob reserva de lei para que a lei emitida assuma valor reforçado: é necessário – repete-se – que resulte da própria Constituição que a lei em causa
é pressuposto normativo necessário de outras leis ou por elas tenha de ser respeitada.
7. Esclarecidos o sentido e alcance do conceito constitucional de lei com valor reforçado, cumpre agora apurar se nele é subsumível a Lei n.º
23/98.
Para tal, interessará começar por referir brevemente o conteúdo dessa Lei (infra, 7.1.), relembrar depois as razões que os requerentes invocam para a qualificar como lei com valor reforçado (infra, 7.2.), para, por fim, tomar posição quanto à procedência desta qualificação (infra, 7.3.).
7.1. A Lei n.º 23/98 regula as condições do exercício dos direitos de negociação colectiva e de participação dos trabalhadores da Administração Pública em regime de direito público (n.º 1 do artigo 1.º), tendo por objecto a fixação ou alteração do seu estatuto, bem como o acompanhamento da sua execução
(n.º 2 do mesmo artigo).
Interessa-nos, no presente caso, analisar especificamente o direito de negociação colectiva, uma vez que os requerentes invocam a violação das normas que o consagram. Tal direito é exercido pelas organizações sindicais que representem interesses dos trabalhadores da Administração Pública (artigo
2.º) e consiste na negociação com a Administração das matérias relativas ao estatuto desses trabalhadores, com vista à obtenção de um acordo, que, a existir, obriga o Governo à adopção das correspondentes medidas legislativas ou administrativas (n.ºs 2 e 3 do artigo 5.º).
São elencadas as matérias susceptíveis de serem objecto de negociação colectiva (artigo 6.º) e as dela excluídas (artigo 12.º); é regulado o procedimento de negociação, com calendarização da apresentação das propostas e contrapropostas (artigo 7.º); disciplina-se a convocação de reuniões (artigo
8.º); prevê-se, no caso de esgotamento do período de negociação sem obtenção de acordo, a abertura de negociação suplementar para resolução dos conflitos remanescentes (artigo 9.º); e definem-se os interlocutores por parte da Administração, consoante o carácter geral ou sectorial do procedimento (artigo
14.º), e os representantes legítimos das associações sindicais (artigo 15.º).
Trata-se, em suma, de um diploma que regula um procedimento negocial que, enquanto pode redundar na adopção de medidas legislativas, assume a natureza de regulação do procedimento legislativo.
7.2. Para fundamentar a qualificação da Lei n.º 23/98 como lei com valor reforçado aduzem os requerentes que tal lei, “aprovada na decorrência do n.º 3 do artigo 56.º da Constituição” (n.º 27.º do pedido), “consagra um bloco de matérias sujeitas a negociação colectiva a exercer entre as associações sindicais representativas dos trabalhadores da Administração Pública em regime de direito público e o Governo, bem como normas que fixam os procedimentos de negociação colectiva”, e que, ao aprová-la, “a Assembleia da República clara e manifestamente autolimitou o seu poder de iniciativa legislativa quanto às referidas matérias, que só podem ser objecto de acto normativo cumpridos os requisitos previstos no citado diploma legal” (n.º 24.º do pedido).
Isto é: a qualificação como lei com valor reforçado resultaria de a Lei n.º 23/98 “imp[or] a outras normas legais que modificam os regimes jurídicos a observância de determinados procedimentos quanto ao modo de produção de actos legislativos” (n.º 25.º do pedido), imposição de que derivaria uma autolimitação (ou autovinculação) do próprio Parlamento quanto ao seu poder de iniciativa legislativa no que concerne às referidas matérias.
7.3. O artigo 56.º, n.º 3, da CRP confere às associações sindicais o direito de contratação colectiva, “o qual é garantido nos termos da lei”. Como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (obra citada, págs. 307-308):
“(...) Enquanto direito dos trabalhadores, o direito de contratação colectiva significa designadamente direito de regularem colectivamente as relações de trabalho, substituindo o poder contratual do trabalhador individual pelo poder colectivo organizado no sindicato.
Materialmente, ele analisa-se em três aspectos: (a) o direito à liberdade negocial colectiva, não estando os acordos colectivos sujeitos a autorizações ou homologações administrativas; (b) o direito à negociação colectiva, ou seja, direito a que as entidades patronais não se recusem à negociação, o que requer garantias específicas, nomeadamente esquemas públicos sancionatórios da recusa patronal em negociar e contratar; (c) direito à autonomia contratual colectiva, não podendo deixar de haver um espaço aberto à disciplina contratual colectiva, o que não pode ser aniquilado por via normativo-estadual.
(...)
O direito de contratação colectiva assiste a todos os trabalhadores. Não estabelecendo o preceito quaisquer discriminação, não pode aquele direito deixar de ser reconhecido a todos os que gozam em geral dos direitos dos trabalhadores (...), incluindo, portanto, também os trabalhadores da função pública. A este propósito há que sublinhar que o direito de contratação colectiva não se satisfaz com um simples direito de negociação (cfr. Decreto-Lei n.º 45-A/84, de 3 de Fevereiro), pois aquele implica uma convenção entre duas partes, assumindo as suas cláusulas eficácia normativa (...).”
Não obstante os autores em questão considerarem que o direito de contratação colectiva não se limita ao direito de negociação, pressupõem que este último é um elemento integrante do primeiro.
O direito de negociação e de contratação colectivas, enquanto direito dos trabalhadores exercido através das associações sindicais, está colocado sob reserva de lei, numa dupla perspectiva: (i) a Constituição remete para a lei a modelação desse direito, embora, como se referiu no Acórdão n.º
517/98 (Diário da República, II Série, n.º 260, de 10 de Novembro de 1998, pág.
15 978; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40.º vol., pág. 573), tal não signifique que a lei possa esvaziar o seu conteúdo, como sucederia se ela própria regulasse integralmente as relações de trabalho em termos inderrogáveis pelas convenções colectivas, mas apenas que a lei pode regular o direito de negociação e contratação colectiva, delimitando-o ou restringindo-o, mas deixando sempre um conjunto minimamente significativo de matérias aberto a essa negociação; e (ii) tal regulação há-de ser feita por acto legislativo (deixando em aberto a questão de saber se se imporá sempre a reserva de lei parlamentar).
Como se referiu no citado Acórdão n.º 360/2003, é controvertida a questão de saber se a matéria sobre que versam as normas ora questionadas
(regime da aposentação) “se inclui no âmbito constitucionalmente imposto para o direito de contratação colectiva”.
Trata-se, porém, de questão cuja dilucidação, tal como a da questão anteriormente referida (relativa à existência, ou não, de uma reserva de lei parlamentar), não se impõe no contexto do presente acórdão. É que, mesmo para quem considere que a matéria do regime da aposentação se inclui no âmbito constitucionalmente imposto para o direito de negociação colectiva e que a modelação deste direito está colocada sob reserva de lei parlamentar, estes entendimentos não implicam necessariamente que a Lei n.º 23/98 tenha valor reforçado.
Na verdade, não é pelo facto de uma matéria estar eventualmente sujeita a reserva legislativa parlamentar que as disposições legais que a regulam adquirem valor reforçado. Efectivamente, como já se evidenciou (supra, n.º 6), os conceitos referidos não são coincidentes, e da circunstância de uma matéria estar incluída na reserva legislativa do Parlamento apenas resulta que o legislador constitucional lhe atribuiu especial relevo. A importância das matérias sujeitas a reserva de lei da Assembleia da República justifica, assim, uma maior publicidade do procedimento legislativo e a existência de contraditório político, além de exigir que os diplomas que as regulam constituam produto da vontade de um órgão com representatividade e legitimidade democrática directa. Tal não significa, porém, que os referidos diplomas constituam, automaticamente, parâmetro de aferição da validade de outras leis
(que é o que caracteriza as leis com valor reforçado).
Noutra perspectiva, importa sublinhar que é diferente, em termos conceptuais e normativo-constitucionais, a consagração de um direito na Lei Fundamental (no caso, o direito à negociação colectiva) e a atribuição de carácter paramétrico ao diploma legal que procede à sua regulação. Ou seja, a garantia constitucional de existência de um espaço aberto à negociação colectiva não implica, necessariamente, a proeminência legal do diploma que regula o referido direito. Note-se que a Constituição nada refere sobre o eventual carácter paramétrico da legislação sobre negociação colectiva. Na tese dos requerentes, tal qualificação resultaria, no caso em apreço, da própria lei, que estabelece regras sobre a produção e aprovação de normas legais atinentes a um determinado conjunto de matérias. Ora, é à Constituição e não à lei ordinária que compete atribuir carácter reforçado aos diplomas legais. Não é, pois, o facto de um diploma legal atribuir valor paramétrico às suas normas
(como seria, segundo os requerentes, o caso da Lei n.º 23/98), que constitui fundamento para a sua qualificação como lei com valor reforçado.
A Constituição não vincula a Assembleia da República a nenhuma forma de concretização do disposto no n.º 3 do artigo 56.º. De facto, a Lei Fundamental não diz quais as matérias que devem ser objecto de contratação ou de negociação colectiva, nem impõe que a sua regulação ou alteração obedeça à lei que estabelece o regime de negociação colectiva.
A situação em análise é similar à tratada pelo já citado Acórdão n.º 358/92, em que se concluiu que o regime das finanças locais não tem valor reforçado, sendo a respectiva fundamentação transponível para o presente caso. Aí se referiu:
“Ora, conforme já atrás se referiu (...), o artigo 240.º da Constituição (cuja redacção decorre da sua versão originária) não constitui elemento suficiente para poder concluir que, no sistema constitucional, a LFL beneficia de um tal valor reforçado para o efeito aqui tido em vista.
Na realidade, a previsão de que o regime das finanças locais será estabelecido por lei em nada difere de inúmeras remissões para a lei que a Constituição contém em diversíssimos preceitos. Daí que do enunciado linguístico da Constituição não decorra que a LFL seja fundamento material de validade de qualquer outra lei, ou que beneficie de uma especial capacidade derrogatória ou de protecção face à sua derrogação por lei posterior, circunstância que não será alheia ao facto de nos exaustivos (ainda que nem sempre forçosamente taxativos) elencos de leis reforçadas feitos pela doutrina
(a que atrás aludimos) em nenhum deles se incluir a Lei das Finanças Locais como exemplo de lei com valor reforçado.
Contudo, mesmo sem qualquer indicação específica na letra da Constituição, poder-se-ia entender que a Lei das Finanças Locais é uma lei
«constitucionalmente necessária», no sentido em que a ela cabe definir um quadro legal (com «vocação permanente») da autonomia financeira do poder local, em virtude da especial função que lhe é atribuída pela Constituição (assegurar a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias locais e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau).
Ora, esta interpretação teleológica do artigo 240.º da nossa Lei Fundamental, por si só não parece poder fundar o alegado valor reforçado da LFL.
É que a Constituição não postula nenhum sistema de autovinculação da Assembleia da República ao regime das finanças locais. Se nesta sede cabe falar de autovinculação do Parlamento (e da adopção de um regime de finanças locais que aspira a ter uma característica permanente), ela resulta em exclusivo da lei ordinária, num primeiro momento do modelo de garantia de um limite mínimo de participação no produto global de certos impostos (o da Lei n.º 1/79) e mais recentemente do modelo da fórmula de cálculo do FEF baseado na cobrança do IVA nos termos atrás referidos, de acordo com a Lei n.º 1/87.
(...) Dito de outro modo: se se pode considerar como mais adequado, tendo em vista os fins constitucionalmente fixados ao regime das finanças locais e os valores da previsibilidade e da segurança da gestão financeira das autarquias locais em função da garantia da sua própria autonomia, um sistema que assente em regras dotadas de especial valor normativo e de condições de estabilidade e proeminência (...), tal não significa, todavia, que esse e só esse seja o modelo constitucionalmente admissível ou sequer que seja o modelo exigido pela Constituição.”
De acordo com as considerações anteriores, conclui-se que a Lei n.º 23/98, de 26 de Maio, não poderá qualificar-se como lei com valor reforçado, o que determina necessariamente a improcedência do pedido, ficando, assim, prejudicada a indagação da eventual existência de contradição entre este diploma e as normas contidas nos n.ºs 1 a 5 do artigo 1.º da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro (cf. supra, n.º 5, in fine).
III – Decisão
8. Pelos fundamentos expostos, acordam em não declarar a ilegalidade das normas contidas nos n.ºs 1 a 5 do artigo 1.º da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro.
Lisboa, 26 de Maio de 2004.
Mário José de Araújo Torres Carlos Pamplona de Oliveira Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Benjamim Silva Rodrigues Vítor Manuel Gonçalves Gomes Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida