Imprimir acórdão
Proc.º n.º 601/2004
3ª Secção Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Em 26 de Maio de 2004 o relator proferiu decisão com o seguinte teor:
“1. Não se conformando com o acórdão proferido em 29 de Abril de 2003 pelo Tribunal colectivo de Santarém que, pelo cometimento de factos que foram subsumidos à autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo nº 1 do artº 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, a condenou na pena de cinco anos de prisão, recorreu a arguida A. para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo que, na motivação adrede produzida, não suscitou qualquer questão de desconformidade com a Lei Fundamental por banda de norma ou normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional.
Tendo aquele Alto Tribunal, no que ora releva, por acórdão de 4 de Fevereiro de 2004, negado provimento ao recurso da arguida, veio esta arguir a nulidade de tal aresto.
No que agora interessa, surpreendem-se na peça processual consubstanciadora da arguição as seguintes asserções:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
O STJ concluiu estar-se em presença da tipificação do inciso no artº
21º da Lei da Droga, apontando porém carências delimitadoras da matéria de facto, com a generalização de factos sem aproximação concreta ao que possa ter ocorrido.
[À] enorme extensão típica do artº 21º corresponde uma desmesurada moldura penal, cujo limite máximo é superior ao do homicídio tentado e, de qualquer forma, muito superior às molduras dos crimes contra a saúde previstos no Código Penal, o que espelha, em face da severidade da punição, maior equilíbrio no respectivo apuramento dos factos, para que, por comparação, se não venha dizer, por exemplo, que alguém tentou matar outrem com um objecto susceptível de provocar a morte, sem se indicar se foi com uma faca ou com um carrinho de linhas que poderia asfixiar a vítima.
Tudo isto a propósito de 2 vícios existentes no aresto ora reclamado, conduzirem a situação dos autos para o campo da violação ao texto legal fundamental.
Existem direitos formalmente constitucionais porque enunciados e protegidos por normas de valor constitucional formal e direitos materialmente constitucionais, admitidos pela CRP no artº 16º.
Estes últimos versam, afinal, todas as possibilidades de direitos que se propõem no horizonte da acção humana.
A orientação para definir e classificar tais direitos resulta de serem enquadrados a nível máximo se comparativamente aos elencados formalmente assumirem a mesma dignidade material.
Resulta deste modo, que a garantia traduzida pela necessidade de apuramento dos factos tendo em vista a aplicação de lei penal severa, como é o caso, evidencia um direito fundamental: o direito a ver o Estado proceder ao apuramento dos factos, sem recurso a expressões vagas ou conceitos indeterminados, por forma a ser a pena aplicada ao particular sustentada e legitimada.
E por isso se diz que uma condenação não alicerçada em factos concretos, devidamente apurados, contrasta com o texto fundamental, porque recusou ao particular o conhecimento próprio quanto a saber concretamente porque
é que a colectividade lhe impõe o sacrifício.
Quando se refere que a reclamante vendeu heroína, sem se proceder ao apuramento judicial das quantidades, por forma a que não seja excepcionada a dúvida extensível até onde vai a imaginação, condenando a mesma pelo artº 21º da Lei da Droga, significa que se procedeu a uma decisão que atropelou um importante direito fulcral, materialmente constitucional: o direito que tem o cidadão a não se ver condenado por uma norma de gravidade objectiva, sem ser explicitado um elemento também objectivo do tipo legal de crime em apreço.
[É] que na realidade, o próprio direito à tutela jurisdicional identifica-se com o direito a obter uma decisão fundada no direito sempre que se cumpram os requisitos legalmente exigidos.
Quando a Declaração Universal dos Direitos do Homem refere no seu artº
10º que toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a saber das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida, e no artº 11º, que toda pessoa, até que a sua culpabilidade fique provada no decurso de um processo em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas, remete para a essencialidade do que são consideradas, internamente, as ditas garantias.
E dessas garantias sobressai a garantia mencionada, conjugada com o artº 9º do CPP que dispõe que os Tribunais judiciais administram a justiça penal de acordo com a lei e o direito.
Mas a lei estabelece, igualmente, que as Sentenças são compostas pelo relatório, seguindo-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, nos termos do artº 374º.
Por seu lado, é nula uma Sentença quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, nos termos do artº 379º-
Uma Sentença nula por este motivo, além de nula é inconstitucional, pela conjugação dos preceitos diversos já citados.
Ora, essa nulidade cabe, do ponto de vista da reclamante, nos poderes de cognição desse Venerando Tribunal, tenha ou não sido suscitada a questão de forma expressa.
O STJ acabou por reconhecer a existência de expressões que, na perspectiva da reclamante, impunham a apreciação dos vícios do artº 410º do CPP.
Não o tendo feito, deixou de se pronunciar o douto Acórdão proferido acerca de uma questão que deveria ter sido apreciada.
Por isso será nulo o Acórdão, por ausência de pronúncia.
E será por esse motivo inconstitucional o entendimento nele vertido, ao omitir essa apreciação da eventual nulidade, por via do artº 410º do CPP.
Será uma decisão igualmente inconstitucional se confirmar a condenação da reclamante perante a ausência de quadro factual devidamente apurado, no que tange às omissões que o próprio aresto parece dizer estarem contidas no Acórdão da instância.
............................................................................................................................................................................................................................................’
Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 14 de Abril de
2004, desatendido a arguida nulidade, veio a arguida apresentar nos autos requerimento com o seguinte teor:
‘A., recorrente nos autos à margem identificados, inconformada com a decisão que lhe foi notificada, vem interpor RECURSO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, com efeito suspensivo por via do artº 78º da Lei do TC, o que faz ao abrigo dos artºs 61º-1-h) do CPP, 32º-1 e 280º da CRP, nos seguintes termos:
Considera a recorrente, embora ressalvando o devido respeito que é, de resto, inteiramente devido, ter o STJ violado direitos materialmente constitucionais admitidos pelo artº 16º da CRP, designadamente, os direitos de defesa da recorrente, ao sufragar a decisão que fora proferida pela instância, sem ordenar a baixa do processo para apreciação de factos essenciais à subsunção do inciso legal em que a recorrente veio a ser condenada.
Na realidade, o STJ decidiu condenar a recorrente pelo ilícito previsto e punido no artº 21º da Lei da Droga, sem que houvesse uma única referência às quantidades de estupefaciente traficados, entendimento esse de cariz inconstitucional e que a prevalecer, como prevaleceu, tolda essa disposição, por a mesma, em face do vertido entendimento, a levar para a ofensa
à CRP.
Pode alguém ser condenado pelo artº 21º da Lei da Droga, disposição legal gravíssima em termos de punição, se inapuradas as quantidades traficadas? Sem se ofender os direitos mais básicos preceituados a nível material?
Estando em causa uma decisão que implica seja a recorrente privada da liberdade, por via da condenação em 05 anos de cadeia.
O presente recurso é, pois, interposto, uma vez que o entendimento vertido leva a que a aplicação do artº 21º da mencionada lei deva ser declarado inconstitucional, pelo que se indica, em obediência ao artº 75º-A da Lei do TC, a alínea b) do artº 70º do mesmo diploma.
Na realidade, a aplicação do artº 21º referido afronta igualmente o princípio da tipicidade, pois, na realidade, perante o entendimento de que não seja necessário o apuramento das quantidades de estupefacientes traficados para que haja lugar à condenação por via da aplicação de tal normativo, leva a que seja afrontada a disposição constitucional, no que se reporta aos direitos liberdades e garantias, mormente às garantias de um processo e decisão justos e equitativos, previsto no artº 10º da DUDH, por a sua aplicação ser feita sem apuramento de elemento fundamental do tipo.
Não pode, na verdade, ser justo o processo, se inapuradas circunstâncias pertencentes a um dos elementos do tipo legal de crime que motivou a condenação.
Foi assim violado um direito materialmente constitucional, admitido a título máximo naquele artº 16º, o direito do particular a ver sustentado o seu sacrifício, por via da condenação, devidamente legitimado através do apuramento dos factos.
Pelo que, em face do exposto, pretende ver-se apreciada a constitucionalidade do artº 21º da Lei da Droga, perante o entendimento decidido pelo STJ.
A questão aqui convocada foi suscitada através de requerimento contendo reclamação, dirigida o STJ.
Pelo que se pugna pela admissão do presente recurso e pela fixação do seu efeito suspensivo, apresentando-se posteriormente as respectivas alegações nos termos do artº 79º da Lei do TC.
A atribuição do efeito suspensivo, se admitido o recurso como se impetra, sempre deverá ser fixado, uma vez que o seu contrário determinará consequências privativas da liberdade, quando poderá, eventualmente, fazer vencimento a inconstitucionalidade invocada’.
O recurso interposto por intermédio do transcrito requerimento veio a ser admitido por despacho lavrado em 12 de Maio de 2004 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
2. Porque tal despacho não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a vertente decisão, por via da qual se não toma conhecimento do objecto da presente impugnação.
Resulta do relato supra efectuado que, precedentemente à prolação do acórdão tirado pelo Supremo Tribunal de Justiça e que negou provimento ao recurso interposto da decisão condenatória proferida pelo Tribunal colectivo de Santarém, maxime na motivação apresentada nesse recurso pela ora impugnante, a mesma não equacionou alguma questão de desconformidade com o Diploma Básico reportadamente a qualquer norma vertida no ordenamento jurídico infra-constitucional.
Ora, a decisão tomada por aquele acórdão esteou-se na mesmíssima interpretação do nº 1 artº 21º do Decreto-Lei nº 15/93 que tinha sido acolhida no acórdão tirado no tribunal da 1ª instância.
Assim, caso a recorrente entendesse que o sentido interpretativo conferido àquele normativo padecia de inconstitucionalidade, sobre si impendia o
ónus de, na motivação de recurso, impostar tal questão, a fim de, sobre ela, se poder (dever) pronunciar o Supremo Tribunal de Justiça.
Não o fez, porém.
Como tem sido jurisprudência do Tribunal Constitucional, o ónus de suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa implica que deva ser colocada tal questão por forma a que o tribunal de onde emerge o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade se possa, sobre ela, debruçar. E, assim, porque o poder cognitivo do tribunal se esgota, em regra, com a prolação da sentença, já não é momento processualmente adequado efectuar-se a suscitação da questão de inconstitucionalidade nos requerimentos de aclaração, arguição de nulidades ou pedidos de reforma da decisão.
E, de todo o modo, como deflui da parte extractada do requerimento consubstanciador da arguição de nulidade do acórdão de 4 de Fevereiro de 2004, nunca aí é assacada directamente à norma do aludido nº 1 do artº 21º (ou a uma sua qualquer dimensão interpretativa) o vício de desarmonia constitucional. O que se extrai de tal requerimento é, isso sim, a imputação ao arguido acórdão do vício de enfermidade constitucional por, na óptica da recorrente, não ter apreciado oficiosamente os vícios de que, de acordo com o nº 2 do artº 410º do diploma adjectivo criminal, padeceria o acórdão proferido na 1ª instância e que, ainda na mesma óptica, deveriam conduzir à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Acontece que, como sabido é, objecto dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade são normas jurídicas e não outros actos do poder público tais como, verbi gratia, as decisões judiciais qua tale consideradas.
Neste contexto, de concluir é que falece, in casu, o requisito ínsito na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, justamente o que consiste na suscitação da questão de inconstitucionalidade referente à norma cuja apreciação se intenta com o presente recurso.
Termos em que se não toma conhecimento do objecto da impugnação, condenando-se a recorrente nas custas processuais, fixando-se em sete unidades de conta a taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido”.
Da transcrita decisão reclamou a arguida sustentando, em síntese:
- que, embora antes do acórdão de 4 de Fevereiro de
2004, não tenha suscitado qualquer questão de desconformidade normativa com a Constituição, a verdade é que no requerimento de arguição de nulidade desse acórdão foi feita uma “referência inequívoca ao facto de a recorrente ter sido condenada, nos termos em que o foi, perante a circunstância de se não terem apurad[o] as quantidades de estupefacientes em questão na norma do artº. 21.º da Lei da Droga”, tendo alegado “a inconstitucionalidade daí, eventualmente, decorrente, em 2 vias distintas”, sendo uma delas a de imputar tal vício ao
“artº. 21º. da Lei da Droga, no entendimento que prevalaceu”;
- que, assim, o Supremo Tribunal de Justiça teve oportunidade de se pronunciar quanto a tal questão, não havendo, pois, “qualquer obrigatoriedade prévia em invocar a inconstitucionalidade, aliás, intimamente ligada à questão da nulidade apontada ao aresto”;
- que só com a prolação do acórdão primitivamente tirado pelo Supremo Tribunal de Justiça se viu a reclamante “na necessidade de alegar a inconstitucionalidade”, não lhe sendo exigível “saber de ante mão que não vingaria o seu entendimento quanto à apreciação daqueles eventuais vícios, que a serem apreciados e reconhecidos, ordenando-se a baixa do processo para concretização da matéria de facto, geraria a total conformidade com o texto constitucional que de outra forma sairá afrontado pelo entendimento feito do dito art.º 21º.”;
- que, desta forma, a reclamante “suscitou a questão logo que processualmente possível”.
Ouvido sobre a reclamação, o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido de não existirem, in casu, motivos para se conhecer do recurso, já que a questão de constitucionalidade normativa não foi suscitada de modo idóneo e atempado e não se integra no âmbito do recurso de constitucionalidade a apreciação das decisões judiciais como tal consideradas, não tendo a reclamante logrado pôr em causa o que ficou consignado na decisão em análise.
Cumpre decidir.
2. Como foi assinalado na decisão sub iudicio - e essa circunstância não é infirmada pela ora reclamante -, precedentemente ao proferimento, pelo Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão que negou provimento ao recurso do aresto tirado pelo Tribunal colectivo de Santarém, a mesma não equacionou qualquer questão de desarmonia com a Lei Fundamental por parte do nº
1 do artº 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
E, talqualmente se disse também na aludida decisão, a interpretação que àquele preceito foi conferida pelo acórdão de 4 de Fevereiro de 2004 em nada divergiu da que foi adoptada pelo acórdão do Tribunal colectivo de Santarém.
Incumbia, pois, à ora reclamante, aquando da motivação do recurso interposto deste último acórdão, equacionar a questão de inconstitucionalidade referente ao indicado preceito.
O que, uma vez mais se repete, não fez.
Extrai-se de uma jurisprudência firme deste Tribunal que a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa deve ser efectuada antes de ser tomada a decisão pelo tribunal de onde emerge o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, não sendo, em regra, momento processualmente adequado efectivar-se essa suscitação em requerimentos de arguição de nulidades, pedidos de reforma ou de aclaração, maxime quando essa questão se não reporta a preceitos directamente atinentes aos regimes jurídicos fundamentadores desses pedidos ou arguição.
Nenhuma censura merece, por isso, a decisão sub specie, pelo que se indefere a presente reclamação.
Custas pela impugnante, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 22 de Junho de 2004
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de almeida