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Proc. n.º 54/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - A., com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 257 e segs., pretendendo a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 81º-A do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (diploma a que se referem todos os preceitos que vierem a ser citados, sem indicação contrária), na interpretação segundo a qual 'a simples comunicação do senhorio ao arrendatário da actualização obrigatória da renda, conjugada com a resposta extemporânea do inquilino à dita comunicação, legitima por si só a realização do dito aumento, mesmo que não se verifiquem os restantes requisitos legalmente estipulados no n.º 1 do supra citado artigo 81º-A para que a dita actualização de renda possa ter lugar'
Nas alegações do recurso, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
“I - O poder atribuído ao senhorio no artº 81º-A do DL 321-B/90 de
15 de Outubro, para proceder à actualização extraordinária da renda apenas nasce na sua esfera jurídica desde que se verifiquem, cumulativamente, os requisitos previstos naquela norma legal, a saber:
a) que o arrendatário resida na área metropolitana de Lisboa ou do Porto e tenha outra residência ou for proprietário de imóvel nas respectivas
áreas metropolitanas, ou resida no resto do País e tenha outra residência ou seja proprietário nessa mesma comarca;
b) que os imóveis possam satisfazer as respectivas necessidades habitacionais.
II - Só será aplicável o regime previsto nos artºs 33º, n.º 2 e 35º, ambos do DL 321-B/90 de 15 de Outubro, caso se verifiquem os requisitos previstos no n.º 1 do artº 81º-A, do mesmo Decreto-Lei.
III - Caso o inquilino não reconheça a verificação dos requisitos enumerados no artº 81º-A n.º 1 do DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro é ao tribunal que cabe comprovar, ou não, a verificação dos mesmos.
IV - O entendimento de que a simples comunicação do senhorio ao arrendatário da actualização obrigatória da renda, conjugada com a resposta extemporânea do inquilino à dita comunicação - ou mesmo com a falta dela - legitima, por si só a realização do dito aumento, ainda que não se verifiquem os restantes requisitos legalmente estipulados no n.º 1 do supra citado artº 81º-A para que a dita actualização de renda possa ter lugar, viola os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.'
Em contra-alegações, o recorrido particular B. suscitou a questão da tempestividade do recurso, com o fundamento de que, expedido o aviso para notificação da decisão recorrida em 18 de Junho e considerando-se feita a notificação em 23 do mesmo mês, em 10 de Julho seguinte, data da interposição do recurso, há muito expirara o prazo para o efeito.
Quanto ao mérito do recurso, sustentou o mesmo recorrido que não ocorreu violação do disposto no artigo 2º da CRP.
Por despacho do relator, a recorrente foi convidada a pronunciar-se sobre a questão prévia suscitada pelo recorrido e, ainda, tendo em conta a data do registo postal do ofício para notificação do acórdão recorrido que consta do carimbo respectivo (26/6/03), a fls. 272 v.
A recorrente respondeu, defendendo a tempestividade do recurso, com a alegação de que fora notificada através de carta registada em 26/06/03 e no dia 10/07/02 (data em que expirava o prazo de interposição do recurso) enviou para o tribunal, via fax, o pertinente requerimento.
Cumpre decidir.
2 – O pressuposto em que assenta o recorrido para sustentar a intempestividade do recurso não se verifica.
Com efeito, resulta dos autos que a carta registada para notificação
à recorrente do acórdão impugnado só foi expedida em 26/06/03 (carimbo a fls.
272 v.).
E, assim sendo, deve a recorrente considerar-se notificada em
30/06/03 (o 3º dia seguinte, 29/06, recaiu num Domingo).
Logo, o prazo do recurso (10 dias) só expirava em 10/07/03.
Tendo o requerimento de interposição de recurso dado entrada, no tribunal “a quo”, via fax, nesse mesmo dia (fls. 276), o recurso é, pois, tempestivo.
3 - Como se deixou relatado, a questão de constitucionalidade que constitui o objecto do presente recurso é a de saber se a norma do artigo 81º-A que prevê a actualização da renda até ao limite da renda condicionada, interpretada em termos de a ausência de resposta, no prazo de 15 dias contados da recepção da comunicação feita pelo senhorio para efeitos daquela actualização
(artigos 33º n.º 2 e 35º n.º 2), viola os princípios constitucionais da confiança e da segurança jurídicas.
A apreciação desta questão convoca, assim, a conjugação dos preceitos citados, não obstante a recorrente se limitar à indicação do artigo
81º-A (que contém três números, dos quais, para o caso, importa, especialmente, o disposto no n.º 3 enquanto remete para o artigo 33º o procedimento respectivo).
4 - O artigo 81-A prevê, na parte que interessa ao caso, que o senhorio possa suscitar uma actualização obrigatória da renda até ao seu valor em regime de renda condicionada “quando o arrendatário resida na área metropolitana de Lisboa ou do Porto e tenha outra residência ou for proprietário de imóvel nas respectivas áreas metropolitanas (...) desde que os mesmos possam satisfazer as respectivas necessidades habitacionais imediatas”.
Este direito do senhorio deve ser exercido através de comunicação feita ao arrendatário até 90 dias em relação ao termo do prazo do contrato ou da sua renovação, devendo a comunicação identificar com rigor as residências ou imóveis que satisfaçam as aludidas exigências (n.ºs 2 e 3 alínea a) do artigo
81.º-A).
Nos termos do n.º 3 do artigo 81.º-A a actualização da renda rege-se pelo disposto no artigo 33.º.
Por força do n.º 2 deste último artigo, a nova renda considera-se aceite quando o arrendatário não discorde nos termos do artigo 35.º e no prazo nele fixado.
Por último, nos termos do artigo 35.º, o arrendatário pode recusar a nova renda 'com base em erro nos factos relevantes ou na aplicação da lei' (n.º
1), devendo a recusa ser comunicada ao senhorio, no prazo de 15 dias contados da recepção da comunicação do aumento.
A alegação de inconstitucionalidade feita pela recorrente parte da sua interpretação do regime que se acabou de enunciar.
E essa interpretação é a de que a actualização de renda prevista no artigo 81.º-A depende da verificação cumulativa do que a recorrente considera serem requisitos do direito.
E, assim, se se não verificarem os requisitos enunciados no n.º 1 do artigo 81.º-A – o que só os tribunais podem decidir – é irrelevante a comunicação feita pelo senhorio, mesmo que o arrendatário se não oponha ao aumento na forma e no prazo legalmente estabelecidos,
Decidindo em contrário o acórdão recorrido teria errado na interpretação da lei, fazendo a interpretação acolhida incorrer a norma em causa em inconstitucionalidade por violação dos referidos princípios constitucionais.
A esta violação dedica a recorrente três parágrafos das suas alegações, nos seguintes termos:
“Viola os ditos princípios porque apesar de a lei, no artº 81º-A nº
1 do DL 321-B/90, de 15 de Outubro, enumerar e concretizar os requisitos que são necessários para que possa ter lugar um aumento extraordinário de renda ao abrigo do disposto no citado artigo, a verdade é que o julgador não fez depender da verificação desses requisitos a aplicabilidade da norma, extrapolando o sentido da mesma.
Viola também os ditos princípios por que, sabendo o cidadão – inquilino – que, se não se verificarem os requisitos previstos no art.º 81.º-A n.º 1, está protegido pela lei relativamente a aumentos extraordinários de renda ao abrigo da mesma, acaba por ser obrigado pelo julgador a praticar um acto de defesa contra um direito inexistente, pois, se não o fizer, o direito do senhorio, que legalmente não existe, passa a ter a sua existência reconhecida pelo julgador.
Com efeito, enquanto que o legislador foi claro ao reconhecer apenas ao senhorio o poder de aumentar extraordinariamente a renda, ao abrigo do disposto no art.º 81.º-A n.º 1, naqueles casos em que se verifiquem as circunstâncias previstas na lei, o julgador foi mais longe, considerando possível que tal aumento tenha lugar independentemente de se verificarem ou não os requisitos legais, fazendo depender o direito do senhorio não da verificação dos requisitos legais, mas sim da falta da resposta em tempo útil do inquilino.”
4 - Não compete ao Tribunal Constitucional sindicar, no estrito plano do direito infraconstitucional, a interpretação feita na decisão recorrida do regime estabelecido nos artigos 81.º-A , 33.º e 35.º. A sua competência cinge-se ao conhecimento da conformidade constitucional das normas contidas nesses preceitos legais, com a interpretação que lhes foi dada.
Não se deixará, no entanto, de anotar que, no caso, a interpretação feita se ajusta linearmente à letra da lei e vem sendo acolhida na jurisprudência dos nossos tribunais (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de
22/2/2000, in Col. Jur. XXV, 1, 27)
E é também aquela que Aragão Seia, em anotação ao artigo 81.º-A, adopta (“Arrendamento Urbano, 7ª ed., pág. 560), reproduzida, ipsis verbis, no acórdão impugnado, mal se compreendendo, por isso, que a recorrente a cite em suposto apoio da sua tese.
Também a referência feita ao que escreveu Januário Gomes, in
“Arrendamentos para Habitação”, 2ª ed., pág. 1459, em nada conforta o entendimento da recorrente, pois a exigência de ser o tribunal a dirimir o litígio sobre a divergência acerca dos pressupostos estabelecidos no artigo 81-A nº 1 é questão que se coloca apenas se não houver acordo das partes.
5 – Sobre os princípios que a recorrente elegeu como parâmetros de constitucionalidade tem este Tribunal firmado uma longa e pacífica jurisprudência.
A título de exemplo, transcreve-se o que, a propósito, se disse nos Acórdãos nºs 156/95, 331/00 e 550/03, o primeiro publicado in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 30º vol., págs. 753 e segs., o segundo, inédito e o terceiro publicado in DR, II Série, de 18/02/04.
Assim, no Acórdão nº 156/95:
“3.1. Tem este Tribunal, aliás na esteira de uma jurisprudência já perfilhada pela Comissão Constitucional (tornando-se fastidioso enunciar aqui os arestos ou pareceres que, nestes particular e sentido, foram tirados), defendido que o princípio do Estado de direito democrático (proclamado no preâmbulo da Constituição e, após a Revisão Constitucional de 1982, consagrado no seu artigo
2º) postula 'uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas', razão pela qual 'a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica' (palavras do Acórdão nº 303/90, publicado na 1ª Série do Diário da República de 26 de Dezembro de 1990). Sequentemente (e ainda para se usar terminologia desse Acórdão), o princípio do Estado de direito democrático há-de conduzir a que 'os cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor'. Todavia, isso não leva a que seja vedada por tal princípio a estatuição jurídica que tenha implicações quanto ao conteúdo de anteriores relações ou situações criadas pela lei antiga, ou quando tal estatuição venha dispor com um verdadeiro sentido retroactivo. Seguir entendimento contrário representaria, ao fim e ao resto, coartar a 'liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade' do legislador, características que são 'típicas', 'ainda que limitadas', da função legislativa
(cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, 309). Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrente do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a licitude (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam «tocadas» relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será alcançado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o sub-princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos têm de respeitar. Como reverso desta proposição, resulta que, sempre que as expectativas não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo enfraquecidas 'que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique sacrifício incomportável'
(cfr. Acórdão nº 365/91 no Diário da República, 2ª Série, de 27 de Agosto de
1991), ou se não perspectivem como consistentes, não se justifica a cabida protecção em nome do primado do Estado de direito democrático.
No Acórdão nº 331/00 escreveu-se:
“O princípio da protecção da confiança exige um mínimo de previsibilidade das pessoas em relação aos actos do poder, de forma que o cidadão possa ver garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus actos. Assim, um indivíduo tem o direito de poder confiar que as decisões sobre os seus direitos ou relações jurídicas tenham os efeitos previstos nas normas que os regulam.”
Finalmente, no recente Acórdão nº 550/03:
“É que, como é óbvio, estes princípios não protegem contra a frustração de toda e qualquer expectativa ou confiança que se forme com base na vigência de uma norma, mas contra a afectação intolerável da expectativa ou confiança legítima. E, em princípio, e sem considerações adicionais, não pode qualificar-se como tal a confiança ou expectativa que é depositada na vigência de uma norma inconstitucional, ou que vem a ser declarada inconstitucional, com força obrigatória geral.”
Desta jurisprudência resulta, antes do mais, que o Tribunal aceita como sub-princípios constitucionais, os da confiança e da segurança jurídicas, postulados pelo princípio do Estado de Direito Democrático ínsito no artigo 2º da Constituição.
A protecção da confiança e da segurança jurídicas têm como referência a ordem jurídica e a actuação do Estado e justifica-se pela exigência de um mínimo de certeza e de segurança no direito e nas expectativas que esse direito criou nos seus destinatários.
As expectativas protegidas na manutenção das situações criadas em consequência do direito em vigor têm, assim, que ser consistentemente fundadas.
Ora, no caso, desde logo se não está perante qualquer modificação do ordenamento jurídico, nem a interpretação que o acórdão recorrido fez se traduz numa leitura insólita do regime jurídico em causa (a entender-se que ela pudesse justificar a invocação da violação daqueles princípios por uma norma jurídica ).
Muito simplesmente – e como já se acentuou – a alegada frustração de expectativas decorre da interpretação que a recorrente fazia, e faz, do regime de actualização extraordinária de rendas.
Tais expectativas, fundadas num “direito hipotético”, não são aquelas que a Constituição protege – elas não radicam no direito constituído e são inconsistentes.
De outro modo, chegar-se-ia ao absurdo: toda e qualquer interpretação normativa feita em decisões judiciais ofenderia os princípios da confiança e da segurança jurídicas, desde que ela fosse contrária à que uma das partes em conflito tivesse sustentado.
Por outro lado, a circunstância de a recorrente entender que se não verificavam os requisitos previstos no artigo 81.º-A – questão que, aliás, e em contrário do que vem alegado, as instâncias não conheceram – não legitimava qualquer expectativa de ela ficar imune ao aumento extraordinário de renda previsto naquele preceito.
Com efeito, tendo a lei criado um regime segundo o qual o arrendatário deve, sob pena de se dar como aceite a renda indicada pelo senhorio, comunicar o seu desacordo, em determinado prazo, não poderia a recorrente confiar fundadamente naquela circunstância para obviar ao aumento da renda (a não ser, e uma vez mais, com base numa interpretação pessoal desse regime, que a Constituição não tutela).
De resto, o regime, tal como o acórdão recorrido o definiu, possibilita ao arrendatário - em prazo que se tem como razoável, e tendo em conta as exigências formais que, relativamente ao teor da comunicação do senhorio, a lei estabelece - expressar o seu desacordo quanto ao fundamento legal do pretendido aumento de renda; o ónus imposto ao arrendatário nada, aliás, tem de desmesurado.
Em suma, pois, e sem necessidade de outras considerações, não se mostram infringidos os princípios constitucionais da confiança e da segurança jurídicas.
6 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 Ucs.
Lisboa, 18 de Maio de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida