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Processo n.º 736/04
3.ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 1687 foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A. e B. foram condenados por sentença do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Oleiros, o primeiro, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 75 dias de multa à taxa diária de € 4, perfazendo a multa global de € 300, a que poderão vir a corresponder, subsidiariamente, 50 dias de prisão, e a segunda, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 3,50, perfazendo a multa global de € 175, a que poderão vir a corresponder, subsidiariamente, 33 dias de prisão. Inconformados, os arguidos recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo concluído a sua motivação do seguinte modo:
“1. A condenação alicerçou-se exclusivamente no ‘teor do despacho de fls. 24, da conta de fls. 25, no AR de fls. 28, na cota de fls. 29, no despacho de fls. 57, na cota de fls. 57 e no AR de fls. 78, todos da acção especial de falência n.º
58/98, dos quais resulta terem os arguidos sido devidamente notificados para procederem à junção desses elementos ao processo de falência, tendo sido advertidos pelo mencionado despacho de fls. 57 que caso não juntassem tais documentos incorreriam num crime de desobediência, não tendo os arguidos cumprido tal ordem legal’.
2. Em sede de julgamento os arguidos declararam não ter recebido qualquer ordem
‘para entregar elementos da contabilidade ou de qualquer outra natureza, sob pena de cometer um crime de desobediência’.
3. Face ao facto objectivo, assinatura pelos arguidos do AR com a notificação em causa, não se pode concluir que os arguidos tiveram conhecimento da notificação que constava de tal carta, pois, há que perguntar se a abriu, leu ou percebeu o respectivo conteúdo, sendo certo que o arguido diz que não recebeu tal ordem.
4. O tribunal a quo ao proferir a douta decisão recorrida teve de alicerçar a decisão numa presunção, de que o arguido pelo facto de ter assinado o AR recebeu a notificação, o que é inadmissível, tanto mais, que está em causa um crime só punível a título de dolo, que nem tão pouco resultou provado, pelo que a douta sentença recorrida viola o princípio in dubio pro reo e enferma de erro notório na apreciação da prova.
5. Em suma, a douta decisão recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova e viola de forma clara e inequívoca o disposto nos artigos 1º, 14º e 348º do CP e 410º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPP, face ao qual deverá ser revogada e proferido douto acórdão que absolva os arguidos dos crimes porque foram condenados .”
Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3 de Março de 2004, constante de fls. 1.631 e seguintes, o recurso foi rejeitado, por ser manifestamente improcedente, ao abrigo do disposto no artigo 420º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Vieram então os recorrentes arguir a nulidade deste acórdão, nos termos do artigo 379º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, sustentando que se não teria pronunciado “sobre as questões em que se verificou impugnação da decisão quanto à matéria de facto, com reapreciação da prova, plasmada na douta sentença da 1ª Instância aqui recorrida e, expressamente impugnada em todas as conclusões dos Recursos de ambos os Recorrentes”. E, para o que agora interessa, os recorrentes afirmaram que
“são manifestamente inconstitucionais as normas dos artigos 410º, n.º 2, alíneas a) e c), interpretadas no sentido que se verifica no douto Acórdão aqui em causa, concretamente, ‘qualquer um dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P., como decorre da letra da lei só se poderá ter por verificado se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo, pelo que a actividade de fiscalização e de controlo do Tribunal Superior neste particular, conquanto incida sobre toda a decisão, com destaque para a proferida em matéria de facto, não constitui actividade de apreciação e julgamento da prova, sendo que ao exercê-la se limita a verificar se a mesma contém algum ou alguns dos mencionados vícios”, pois, tais normas assim interpretadas, violam o disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e, a aceitar-se tal entendimento, não existiria recurso quanto à decisão proferida em sede de matéria de facto em todos os casos em que a decisão recorrida fosse formalmente inatacável, o que é inaceitável.” Por acórdão de 5 de Maio de 2004, constante de fls. 1.656 e seguintes, o Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu a pretensão dos recorrentes.
2. Novamente inconformados, os recorrentes vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, invocando no seu requerimento de interposição que
“o presente Recurso é interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, face à circunstância de o Tribunal Recorrido, Tribunal da Relação, ter aplicado a norma do artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido que ‘qualquer um dos vícios previstos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P., como decorre da letra da lei que se poderá ter por verificado se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo, pelo que a actividade de fiscalização e controlo do Tribunal Superior neste particular, conquanto incida sobre toda a decisão, com destaque para a proferida em matéria de facto, não constitui actividade de apreciação e julgamento de prova, sendo que ao exercê-la se limita a verificar se a mesma contém algum ou alguns dos mencionados vícios’, pois, tais normas assim interpretadas, violam o disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, tendo a inconstitucionalidade sido suscitada, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, pelos Arguidos – Requerentes em sede de arguição de nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, como se pode constatar quer pela análise de tal articulado quer pelo douto Acórdão que o decidiu proferido por este tribunal da Relação de Coimbra.”
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. O Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso, por não ter sido oportunamente alegada a inconstitucionalidade que se pretende o Tribunal aprecie. Com efeito, é pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, como é o caso, que a inconstitucionalidade haja sido
“suscitada durante o processo” (artigo 70º, n.º 1, alínea b)), ou seja, colocada
“de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo
72º da Lei n.º 28/82). Ora o recorrente apenas alegou a inconstitucionalidade quando veio arguir a nulidade do acórdão recorrido, quanto às normas das alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 420º do Código de Processo Penal, e no próprio requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, quanto à norma do n.º 1 do mesmo preceito. Ora, o requerimento de arguição de nulidade da decisão recorrida não é, em princípio – e não é, seguramente, neste caso –, o momento idóneo para que o recorrente coloque perante o tribunal recorrido a questão da inconstitucionalidade. Com efeito, “a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui, obviamente, um erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua”, de forma a permitir ao tribunal a quo dela conhecer, “por aplicação do disposto no nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil” (Acórdão nº 62/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, pág. 497).
É certo que, como o Tribunal tem repetidamente afirmado, o recorrente pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, o cit. Acórdão n.º 62/85 e os Acórdãos n.º 90/85 e n.º
160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, pág. 663 e no Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1994). Todavia, não é esse, manifestamente, o caso dos autos, pois ao interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra o recorrente não podia razoavelmente desconhecer a possibilidade de o recurso vir a ser decidido nos termos em que efectivamente o foi, não só porque os preceitos em causa foram interpretados literalmente, mas também porque o Ministério Público, no parecer de fls. 1622, ao qual tiveram a oportunidade de responder, se pronunciou expressamente sobre as consequências resultantes da sua aplicação ao recurso então interposto.
4. Estão, portanto, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Assim, decide-se não conhecer do recurso. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs. por cada recorrente.»
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão sumária. Em primeiro lugar, afirmam que antes de proferido o acórdão recorrido lhes “não era exigível” que tivessem suscitado a inconstitucionalidade, pois que “não se lhes afigurava possível que aquele Tribunal tomasse tal decisão”; que invocaram a inconstitucionalidade logo que arguiram a nulidade do acórdão recorrido; e que a resposta ao parecer do Ministério Público referido na decisão reclamada é facultativa. Concluem este primeiro argumento observando que pretender que tinham que invocar a inconstitucionalidade antes de ter sido proferido o acórdão recorrido “é evidente que (...)l seria obrigar as partes a elaborar todos os seus articulados com todos os cenários possíveis de interpretação e qualificação jurídica o que é inaceitável”. Em segundo lugar, reiteram que se verificou nos autos “erro notório na apreciação da prova”; e concluem que as limitações ao recurso e as condenações em custas que são impostas às partes os fazem interrogar-se “seriamente sobre o Direito ao recurso”. Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da manifesta improcedência da reclamação, por ser “inquestionável” que os reclamantes tiveram “plena oportunidade para suscitar, durante o processo, a questão de constitucionalidade”.
3. Com efeito, a reclamação é claramente improcedente, não apontando nenhum argumento que justifique a revogação da decisão reclamada. Apenas cumpre esclarecer que a exigência de que a inconstitucionalidade seja
“suscitada durante o processo” feita pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, e que os reclamantes manifestamente não cumpriram, resulta da necessidade de se obter, por parte do tribunal recorrido, uma decisão sobre a questão de constitucionalidade, da qual possa ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional; e não obriga os recorrentes a colocarem todos os
“cenários possíveis de interpretação e qualificação jurídica”, como afirmam. No caso, sendo manifesto que o preceito legal em causa ia ser aplicado, e que o foi com o seu sentido literal, era naturalmente exigível que, a entenderem que tal norma era inconstitucional, tivessem colocado a questão da inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido nos termos exigidos pela lei, referidos na decisão reclamada. A circunstância de ser facultativa a resposta ao Ministério Público em nada altera o regime aplicável, nem constitui qualquer objecção ao que se decide na decisão reclamada.
4. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos Reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs por cada um.
Lisboa, 3 de Novembro de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Artur Maurício