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Processo n.º 40/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A., com os sinais dos autos, deduziu, em 3 de Junho de 1996, embargos de terceiro por apenso aos autos de execução fiscal que a Fazenda Pública, em representação do Fundo de Turismo, moveu a B. no Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto.
O Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, por sentença de 17.01.2001, decidiu julgar improcedentes, por não provados, os embargos de terceiro deduzidos pela ora recorrente (cfr. fls. 96 a 100 dos presentes autos).
Inconformada, a embargante agravou para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. fls. 105), recurso que foi admitido em
5.12.2002 (cfr. fls. 128).
A embargante apresentou as suas alegações, peça processual em que disse a concluir:
“1ª. Deve ser fixado efeito suspensivo ao presente recurso, quer porque o modo e regime de subida fixados assim o impõem, quer ainda pelo facto da execução já estar garantida com penhora efectuada e pela hipoteca constituída, como, finalmente, pelo facto de o prosseguimento da execução com a venda dos bens ser susceptível de provocar à embargante prejuízo irreparável;
2ª. A execução dos autos foi intentada pela Fazenda Pública apenas contra o executado B.;
3ª. A embargante não foi demandada na referida acção executiva nem interveio na diligência de penhora que atingiu os seus bens para a qual não foi citada de modo a poder deduzir oposição;
4ª. Como não consta sequer do título executivo dado à execução – cfr, fls. 2 – o qual apenas refere o executado B.; de resto, a embargante não contraiu nenhuma obrigação de pagamento perante o Fundo de Turismo;
5ª. Por outro lado, a constituição de hipoteca a favor do credor não implica a transmissão da posse a favor do beneficiário do direito real de garantia constituído;
6ª. O beneficiário de uma hipoteca para poder fazer valer aquela garantia contra o terceiro tem que dirigir contra este a demanda – cfr., art. 56º, nº 2 do Cód. Proc. Civil (redacção anterior à reforma de 1995)
7ª Donde, para que a demanda pudesse atingir os bens da embargante objecto da penhora efectuada – bens esses que são propriedade e estão na posse da embargante desde 30 de Outubro de 1961 – era míster que a Fazenda Pública a tivesse demandado;
8ª. Assim sendo, a embargante é estranha ao processo executivo e a todos os seus termos detendo, em face do mesmo, a qualidade de terceiro nos termos do disposto no nº 2 do art. 1037º do Cód. Proc. Civil (redacção anterior à reforma de 1995);
9ª. Interpretado o referido art. 1037º por forma a negar à embargante a qualidade de terceiro nos presentes autos, estamos perante uma violação do princípio do contraditório e dos postulados constitucionais do acesso ao direito e da tutela efectiva – cfr., art. 2º, 3º e 156º do Cód. Proc. Civil, art. 698º do Cód. Civil e arts. 20º e 202º da Constituição da República Portuguesa;
10ª Pelo que decidindo em contrário, o despacho recorrido violou, data venia, as disposições legais acima referidas”.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício no Supremo Tribunal Administrativo emitido o seguinte parecer:
“O julgado não pode manter-se. Vejamos. Tendo em conta a matéria de facto estabelecida, a penhora em questão é incompatível com o direito que a embargante (ora Recorrente) tem, atribuído pelos arts. 55º e 56º nº 2 do CPC, de não ver penhorado um direito seu dado em hipoteca ao exequente mas sem prévia instauração de execução contra si própria, como sucede no caso dos autos. Ora, essa incompatibilidade está prevista no artº 351º nº 1 do CPC, que, como se sabe, tem âmbito bem mais alargado que o do revogado artº. 1037 do C.P.C.. Termos em que sou de parecer que o recurso merece provimento” (cfr. fls. 148vº e
149).
Por acórdão de 5.11.2003, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida, aresto em que se disse, quanto à questão de constitucionalidade suscitada:
“Não houve negação do direito de acesso aos tribunais à recorrente, pois ela teve esse acesso e até chegou ao Supremo. O que acontece é que ela não é
“terceiro”” (cfr. fls. 151 a 153).
De novo inconformada, a embargante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, dizendo pretender a apreciação da constitucionalidade do artigo 1037º n.º 2 do CPC (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro) 'quando interpretado e aplicado no sentido de negar à recorrente a qualidade de terceiro na execução embargada', o que violaria o disposto nos artigos 20º e 202º da CRP.
Nas suas alegações, formulou a seguintes conclusões:
“1ª. A execução dos autos foi intentada pela Fazenda Pública apenas contra o executado B.;
2ª. A recorrente não foi demandada na referida acção executiva nem interveio na diligência de penhora que atingiu os seus bens, para a qual não foi citada de modo a poder deduzir oposição; ou seja, não é parte naquela execução;
3ª. Como não consta sequer do título executivo dado à execução, o qual apenas refere o executado B.; de resto, a recorrente não contraiu nenhuma obrigação de pagamento perante o Fundo de Turismo;
4ª. Por outro lado, é sabido que a constituição de hipoteca a favor do credor não implica a transmissão da posse a favor do beneficiário do direito real de garantia constituído;
5ª. O beneficiário de uma hipoteca para poder fazer valer aquela garantia contra o terceiro tem que dirigir contra este a demanda – cfr., art. 56º, nº 2 do Cód. Proc. Civil (redacção anterior à reforma de 1995);
6ª Donde, para que a demanda pudesse atingir os bens da recorrente objecto da penhora efectuada – bens esses que são propriedade e estão na posse da recorrente desde 30 de Outubro de 1961 – era míster que a Fazenda Pública a tivesse demandado;
7ª. Assim sendo, a recorrente é estranha ao processo executivo e a todos os seus termos detendo, em face do mesmo, a qualidade de terceiro nos termos do disposto no nº 2 do art. 1037º do Cód. Proc. Civil (redacção anterior à reforma de 1995);
8ª. O direito de acesso aos tribunais ou a uma tutela jurisdicional, condensado no artigo 20º, nº 1, da Lei Fundamental, implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva – cfr., Ac Trib. Const. de 20.11.91, BDMJ Proc. nº 90-0184;
9ª. Através do postulado constitucional do direito de acesso à justiça importa assegurar que seja colocado à disposição de todos aqueles que possam ser afectados por uma diligência judicial um meio processual que lhes permita reagir contra a mesma e contra os actos praticados em seu prejuízo;
10ª. Interpretado o referido art. 1037º por forma a negar à recorrente a qualidade de terceiro nos presentes autos, impedindo-a, desse modo, de lançar mão dos embargos de terceiro previstos naquele normativo, único meio de defesa ao seu alcance perante a penhora efectuada sobre o seu património, estamos perante uma violação do princípio do contraditório e dos postulados constitucionais do acesso ao direito e da tutela efectiva – cfr., art. 2º, 3º e
156º do Cód. Proc. Civil, art. 698º do Cód. Civil e arts. 20º e 202º da Constituição da República Portuguesa;
11ª. A norma sub juditio, interpretada no sentido supra exposto, afectou, de forma definitiva e absoluta e por isso, intolerável e inadmissível, o direito da recorrente poder reagir contra aquele acto de penhora proferido no âmbito de uma execução na qual não foi parte – e que, por isso, a ela não se pode opor com base nos mecanismos de defesa previstos para o executado – retirando-se-lhe, efectivamente, qualquer possibilidade de se defender de um acto que atingiu o seu património;
12ª Sendo certo que, não sendo parte na execução, não pode, ao mesmo tempo, negar-se-lhe a posição de terceira perante aquela demanda processual e consequente investida no seu património – única qualidade que lhe permite intervir processualmente para defender a posse dos bens penhorados;
13ª. Acresce que, um dos princípios estruturais do processo civil é o do contraditório, segundo o qual, perante o Tribunal, as partes têm a faculdade de intervir processualmente, fazendo ouvir a sua voz – art. 3º, nº 1, do CPC;
14ª. O direito ao contraditório assume relevância jusconstitucional através dos princípios do estado de direito e da tutela jurisdicional efectiva que implicam a proibição da “indefesa”, assentando o seu núcleo essencial na inadmissibilidade de prolação de qualquer decisão – mesmo interlocutória – sem que seja previamente conferido ao sujeito processual contra quem é dirigida a efectiva possibilidade de a discutir e contestar – arts. 2º, 20º e 202º, nº 2 da Constituição;
15ª. A norma em análise – art. 1037º, nº 2 do Cód. Proc. Civil -, à luz do art.
20º nº 1 da Constituição, tem, pois, de ser interpretada no sentido de que devem ser considerados terceiros todos aqueles que não figurem como partes na execução
– cfr., Prof. Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 1, pg. 401: “As considerações que precedem mostram que os embargos de terceiro não podem deixar de ser postos ao alcance de quem não figura na execução como executado. Quer dizer, o conceito de terceiro contrapõe-se logicamente ao conceito de executado:
é terceiro quem não tem, no processo de execução, a posição de executado”.
16ª. Com a interpretação propugnada na decisão impugnada, foram violadas as disposições citadas e em especial os arts. 20º, nº 1, 202º, nº 2 da Constituição. Termos em que, pelos fundamentos expostos e pelos que V. Exªs. doutamente suprirão, deverá julgar-se inconstitucional o art. 1037º nº 2 do Cód. Proc. Civil (na redacção anterior à reforma de 1995), quando interpretado no sentido de negar a qualidade de terceiro (e a possibilidade de defesa nela implicado) a quem, não sendo parte na execução foi atingido por uma diligência judicial ofensiva da sua posse e, em especial, no sentido de negar à recorrente a qualidade de terceiro nos presentes autos”.
A Fazenda Pública contra-alegou, afirmando:
“Carece de razão a recorrente:
- A especificidade do conceito de terceiro contida no nº 2 do artigo 1037º do CPC encontra plena justificação no conhecimento que, para os intervenientes, advém da outorga contratual.
- Isto é, no caso, se a recorrente, no acto de constituição da dívida – escritura de mútuo – veio dar de hipoteca um bem seu, não pode ser considerada estranha às ocorrências posteriores, designadamente, à execução e diligência de penhora.
- Não poderia por isso a recorrente socorrer-se do meio processual de embargos de terceiro, cabendo, consoante os fundamentos ou razões que pudessem assistir-lhe, usar de meios processuais idóneos em sede de acção declarativa, se fosse caso disso.
- Pelo que o conceito de terceiro do nº 2 do artigo 1037º do CPC não atenta contra os princípios constitucionais de acesso ao direito ou a uma tutela jurisdicional”.
Cumpre apreciar e decidir.
2 – Segundo o entendimento da recorrente, interpretar a norma constante do artigo 1037º n.º 2 do Código de Processo Civil por forma a negar à recorrente a qualidade de terceiro, impedindo-a, desse modo, de lançar mão dos embargos de terceiro previstos naquele normativo, único meio de defesa ao seu alcance perante a penhora efectuada sobre o seu património, viola o princípio do contraditório e dos postulados constitucionais do acesso ao direito e da tutela efectiva, consagrados no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
A questão de constitucionalidade a apreciar por este Tribunal é, desde logo, e com rigor, a de saber se é compatível com a Lei Fundamental, nomeadamente os princípios do contraditório e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, uma interpretação da norma constante do n.º 2 do artigo 1037º do CPC, na redacção anterior à revisão de 1995, no sentido de não considerar terceiro – para efeito de dedução de embargos de terceiro – quem, não sendo devedor/mutuário, nem demandado na execução em que foi penhorado um bem que alega ser de sua propriedade, interveio, contudo, na escritura de constituição de hipoteca, oferecendo ao credor aquele bem para garantia de dívida alheia.
3 – O artigo 1037º relativo à função e aos requisitos dos embargos de terceiro estava inserido no Código de Processo Civil de 1961 no título IV em que se regulavam os “Processos especiais” e no Capítulo VII dedicado aos “meios possessórios”.
Pela própria inserção sistemática do artigo no diploma adjectivo civil pode, desde logo, concluir-se que os embargos de terceiros se configuravam como um mecanismo processual para defesa da posse de um terceiro.
O CPC foi objecto de uma reforma operada pelo Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro e pelo Decreto-Lei nº. 180/96, de 25 de Setembro.
Por força desta reforma, foram revogados os artigos 1033 e 1051º, passando os embargos de terceiro a estar regulados nos artigos 351º e segs. do CPC, no Capítulo III relativo aos incidentes da instância.
De qualquer modo, a diferente inserção sistemática operada pela reforma de
1995/96, não alterou substancialmente a natureza e o regime dos embargos de terceiro. Veja-se, neste sentido, Amâncio Ferreira, Curso de processo de execução, 6ª ed., Almedina, Coimbra, 2004, pág. 256, Lebre de Freitas, Enxertos declarativos no processo executivo, in Aspectos do novo processo civil, Lex, Lisboa, 1997, págs. 318 a 323, Lebre de Freitas, A acção executiva, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, págs. 227 a 240, Miguel Teixeira de Sousa, Apreciação de alguns aspectos da “Revisão do Processo Civil – Projecto”, ROA, 1995, pág. 383 e Miguel Mesquita, Apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 94.
A reforma de 1995/96 veio apenas ampliar os pressupostos de admissibilidade dos embargos de terceiro que podem ser deduzidos para defesa da posse do embargante e contra todos os actos de agressão patrimonial (cfr., neste sentido, os autores já citados e também Carlos Lopes do Rego, ver infra).
Aliás, no preâmbulo do Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro diz-se que
“permite-se, deste modo, que os direitos ‘substanciais’ atingidos ilegalmente pela penhora ou outro acto de apreensão judicial de bens possam ser invocados, desde logo, pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva da posse teve lugar, em vez de o orientar necessariamente para a propositura da acção de reivindicação – por esta via se obstando, no caso de a oposição de embargos se revelar fundada, à própria venda dos bens e prevenindo a possível necessidade de ulterior anulação desta, no caso de procedência da reivindicação”.
O artigo 1037º do Código de Processo Civil - na redacção anterior à reforma ocorrida pelo Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro - tinha a seguinte redacção:
“ Artigo 1037º
(Função e requisitos dos embargos de terceiro)
1. Quando a penhora, o arresto, o arrolamento, a posse judicial, o despejo ou qualquer outra diligência ordenada judicialmente, que não seja apreensão de bens em processo de falência ou de insolvência, ofenda a posse de terceiro, pode o lesado fazer-se restituir à sua posse por meio de embargos.
2. Considera-se terceiro aquele que não tenha intervindo no processo ou no acto jurídico de que emana a diligência judicial, nem represente quem foi condenado no processo ou quem no acto se obrigou. O próprio condenado ou obrigado pode deduzir embargos de terceiro quanto aos bens que, pelo título da sua aquisição ou pela qualidade em que os possuir, não devam ser atingidos pela diligência ordenada.”
4 – Face ao princípio geral (cfr. artigo 821º do CPC e artigo 601º do Código Civil) de apenas estarem sujeitos à execução os bens que integram o património do executado, o ordenamento jurídico português confere ao terceiro um meio processual de defesa dos seus bens contra execuções alheias, a saber: os embargos de terceiro.
Nas palavras de Amâncio Ferreira, “a legitimidade para deduzir embargos de terceiro somente compete ... a terceiro, ou seja, a quem não é parte na causa nem como demandante nem como demandado ou, tratando-se de processo de execução, nem como exequente nem como executado” (cfr. Curso de Processo de Execução, 6ª ed., 2004, pág. 258).
Ou, nas palavras de Lopes Cardoso, “”terceiro”, em relação à penhora, é todo aquele que não é exequente nem executado” (cfr. Manual da acção executiva, IN-CM, 1987, pág. 384).
São abundantes as referências doutrinárias a situações como a dos presentes autos, defendendo-se a dedução de embargos de terceiro para defesa da posse ou do direito ofendido pela penhora pertencente a terceiro.
Assim, Miguel Teixeira de Sousa afirma que “se sobre o bem incide um outro direito real de garantia que não atribui a posse (como, por exemplo, a hipoteca) e se, apesar disso, o terceiro é possuidor com base noutro direito, esse sujeito pode defender a sua posse sobre o bem penhorado através de embargos de terceiro, se, contrariando o disposto no artigo 56º, nº 2, CPC, o exequente não tiver demandado esse possuidor na acção executiva.” (cfr. A penhora de bens na posse de terceiros, ROA, 1991, I, pág. 84).
Lebre de Freitas considera que “nos casos em que um terceiro for proprietário do bem dado em garantia, ..., a não propositura da execução contra ele gerará ilegitimidade passiva, ainda que dela só se venha a ter conhecimento no processo de embargos de terceiro ...” (cfr. A penhora de bens na posse de terceiros, ROA,
1992, II, pág. 338).
Num outro estudo, este autor escreveu que “O conceito de direito incompatível tem de ser apurado tendo em conta a função da diligência que o ofende. Circunscrevendo a análise ao processo executivo, é função da penhora possibilitar a ulterior venda executiva e função da apreensão em acção executiva para entrega de coisa certa a de possibilitar a entrega da coisa ao exequente.
É, pois, incompatível com a apreensão da coisa devida todo o direito de terceiro cuja existência, tido em conta o âmbito com que ela tenha sido feita, impeça a efectivação da entrega. (...) Suponhamos que, em acção executiva movida por A contra B, é penhorado um bem
(prédio, coisa móvel, quota de comproprietário, quinhão hereditário, quota de sociedade por quotas, acção de sociedade anónima) sobre o qual C se arroga ter o direito cuja titularidade é na acção atribuída ao executado. Estando em causa direitos absolutos, das duas uma: ou B é deles titular e a venda executiva é possível; ou o titular é C e o reconhecimento do direito deste impede a venda executiva. A legitimidade de C para embargar de terceiro, com base na afirmação do seu direito (de proprietário, ...), não oferece qualquer dúvida” (cfr. Lebre de Freitas, Enxertos declarativos no processo executivo in Aspectos do novo processo civil, Lex, Lisboa, 1997, pág. 319).
Por seu turno, Carlos Lopes do Rego afirma que “em termos estruturais, o que realmente caracteriza os “embargos de terceiro” – que, recorde-se, no Código de Processo de 1876 apareciam como incidente do processo de execução – não é tanto o carácter “especial” da tramitação do processo através do qual são actuados - que se molda essencialmente pela matriz do processo declaratório, com a particularidade de nele ocorrer uma fase introdutória de apreciação sumária da viabilidade da pretensão do embargante – mas a circunstância de a pretensão do embargante se enxertar num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, juridicamente ordenado no interesse de alguma das partes da causa, e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro embargante” (cfr., Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 262).
No caso dos autos, o Fundo de Turismo concedeu empréstimo ao mutuário marido, tendo aceite, como garantia dessa operação, hipoteca de um bem próprio da ora recorrente, mulher do mutuário, que interveio na respectiva escritura.
Verificado o incumprimento do empréstimo, a Fazenda Pública – em representação do Fundo de Turismo – instaurou execução no Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto apenas contra o marido mutuário, mas fez penhorar, nessa execução, o bem imóvel dado de garantia hipotecária.
A ora recorrente, sentindo-se ofendida na sua posse por aquela diligência ordenada judicialmente – a penhora – deduziu embargos de terceiro.
Como acima se disse, esses embargos foram rejeitados pelo Tribunal Tributário de
1ª Instância do Porto com fundamento em que a embargante, ora recorrente, não era terceiro por ter intervindo no acto em que o bem penhorado foi dado em garantia do pagamento da dívida.
Idêntico entendimento foi perfilhado no acórdão ora recorrido do Supremo Tribunal Administrativo.
Daqui resulta que a ora recorrente não é parte na execução, que apenas foi deduzida contra seu marido, mas não foi admitida a defender o seu direito nessa execução, mediante embargos de terceiro, por ter sido entendido pelas instâncias recorridas que não tem a qualidade de terceiro pelo facto de ter intervindo na escritura de constituição de hipoteca de um bem próprio seu.
Daqui resulta que a ora recorrente, por não ser executada no âmbito dos presentes autos, não pôde socorrer-se dos meios de defesa que o ordenamento jurídico confere aos executados.
E, segundo o entendimento das instâncias, por não ser terceiro – foi vedado à mesma recorrente o exercício do mecanismo processual embargos de terceiro para defesa da posse e do seu direito incompatível com a penhora ordenada judicialmente.
Ora, a proibição de indefesa consiste na privação ou limitação do direito de defesa dos particulares perante os órgãos judiciais, nos quais se dirimem questões cuja resolução pode afectar a sua esfera jurídica. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verifica-se sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses (cfr. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, pág. 164).
É evidente que, no caso, a recorrente se viu privada do seu direito de defesa no processo executivo, por uma circunstância particular: a de ter sido admitida a execução, pretendendo o exequente fazer funcionar a garantia hipotecária constituída sobre bem de terceiro, sem que fosse demandado esse terceiro.
Na medida em que, com a interpretação feita pelo Tribunal recorrido, se não lhe reconheceu, também, a qualidade de terceiro, viu-se a recorrente totalmente impossibilitada de defender o seu direito, o que claramente configura uma situação de indefesa constitucionalmente censurável, face ao disposto no artigo
20º n.º 1 da CRP.
E não infirma esta conclusão o que se diz no acórdão recorrido (“Não houve negação do direito de acesso aos tribunais à recorrente, pois ela teve esse acesso e até chegou ao Supremo”), uma vez que esse 'acesso' acabou por se traduzir na referida impossibilidade de defesa dos direitos da recorrente, quer como executada, quer como terceiro
5 – Reconhece-se que o julgamento sobre a observância do princípio do acesso ao direito e aos tribunais e do direito a uma tutela jurisdicional efectiva deve, em geral, ter em conta a globalidade do ordenamento jurídico-processual.
Obviamente que a inadmissibilidade de um certo meio processual (em princípio apto à defesa do direito que se diz violado) não é, só por si, bastante para se entender violados aqueles princípio e direito.
O que não pode é admitir-se é que o titular do direito (ou que a este se arroga) não disponha de meios jurisdicionais de defesa eficazes desse direito.
Ora, no caso, poderia entender-se que a lei confere ao titular do bem dado de garantia hipotecária a possibilidade de lançar mão de acção de reivindicação
(cfr. artigos 1311º e segs. do Código Civil).
A verdade é que esta acção é autónoma em relação à acção executiva e dela não resultam quaisquer efeitos suspensivos da execução - a execução prossegue os seus termos com a venda e posterior reclamação e graduação de créditos
(posterior, por se tratar, no caso, de execução fiscal).
Sobre a utilização deste meio, escreveu Lebre de Freitas (estudo na ROA cit., pág. 311):
“(...) forçado a recorrer aos meios comuns, não beneficia da suspensão dos actos executivos que os embargos de terceiro proporcionam e a recuperação do bem próprio terá de passar, após o vencimento na acção que proponha, pela anulação da venda executiva entretanto realizada ... Se é certo que o seu direito ficará desde logo acautelado se tiver protestado pela reivindicação, não é menos certo que o terceiro só poderá entrar na posse do bem após, este, por vezes longo, calvário judicial e mediante efectiva perturbação do comprador na acção executiva”
E, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, escreveu-se que a revisão do CPC visou, neste aspecto, conceder uma tutela mais efectiva mediante o alargamento da legitimidade para a dedução dos embargos de terceiro 'em vez de orientar necessariamente para a propositura de acção de reivindicação - por esta via se obstando, no caso de a oposição de embargos se revelar fundada, à própria venda dos bens e prevenindo a possível necessidade de ulterior anulação desta, no caso de procedência da reivindicação”
Do que decorre a excessiva onerosidade desse meio, não só pelas delongas inerentes, como, principalmente, por não evitar o desapossamento temporário do bem.
De todo o modo, e sem prejuízo do que se deixou dito, o que constitucionalmente não pode, também, admitir-se - agora por imperativo de um processo equitativo, com observância do princípio do contraditório - é que na própria acção em que se apreende um determinado bem não seja conferido qualquer meio de defesa a quem se arroga à propriedade ou posse desse bem.
E isso resulta necessariamente da interpretação da norma do artigo 1037º n.º 2 do CPC (na redacção anterior à reforma de 1995) no sentido de não ser reconhecida a qualidade de terceiro, para efeitos de dedução de embargos, a quem, arrogando-se à propriedade do bem penhorado, não foi demandado na acção executiva, muito embora tendo tido intervenção na escritura de hipoteca em que esse bem foi dado como garantia de uma dívida de terceiro.
6 - Tratando-se de uma execução fiscal, poderia, hipoteticamente, invocar-se, ainda, o disposto no artigo 259º n.º 1 alínea a) do Código de Processo Tributário, então em vigor, como meio de que se poderia ter servido a recorrente para defesa dos seus direitos.
A verdade, porém, é que, sendo de conhecimento oficioso a nulidade prevista naquele dispositivo legal - e no pressuposto de que tal meio tem ainda lugar no caso de a execução não ter sido dirigida contra o 'interessado', questão que não compete aqui resolver - , quer o Tribunal Tributário de 1ª Instância, quer o STA, não apelaram a esse dispositivo, não cumprindo, agora, ao Tribunal Constitucional fazê-lo.
7 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigo 20º n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 1037º n.º 2 do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de não considerar terceiro, para efeito de dedução de embargos, quem, arrogando-se à propriedade do bem penhorado, não foi demandada na acção executiva, ainda que tenha tido intervenção na escritura de constituição de hipoteca em que esse bem foi dado como garantia de uma dívida de terceiro; b) conceder provimento ao recurso, ordenando-se a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 13 de Julho de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida