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Processo n.º 243/99
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. e B. intentaram, no Tribunal do Trabalho do Funchal, acção emergente de contrato de trabalho contra C., pedindo a condenação desta a pagar-lhes as indemnizações devidas pela rescisão unilateral dos contratos de trabalho a que os autores procederam, com justa causa, na sequência de transferência do respectivo local de trabalho, do Funchal para Câmara de Lobos. Fundaram a pretensão deduzida, em primeira linha, na cláusula 32.ª, n.º 2, do Contrato Colectivo de Trabalho Vertical (CCTV) celebrado entre associação D. e o Sindicato E. (publicado no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, II Série, Suplemento ao n.º 4, de 1 de Fevereiro de 1980), com Portaria de Extensão publicada no mesmo Jornal Oficial, II Série, Suplemento ao n.º 12, de 10 de Abril de 1980, e, subsidiariamente, no artigo 24.º, n.º 2, do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969 (doravante designado por LCT).
Por sentença de 12 de Julho de 1997 foi a acção julgada improcedente, por se entender: (i) por um lado, que o n.º 2 da aludida cláusula
32.ª (que atribui ao trabalhador que haja optado pela rescisão do contrato, na sequência de transferência de estabelecimento para outro local, direito a uma indemnização igual à respeitante ao despedimento colectivo), na medida em que contraria o regime prescrito pelo artigo 36.º do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro
(doravante designado por LCCT), que apenas atribui o direito a uma indemnização no caso de a rescisão se fundamentar em conduta culposa do empregador (o que no caso não se verificava), deve considerar-se revogado, nos termos do n.º 2 do artigo 2.º da LCCT; e (ii) por outro lado, que não há direito à indemnização prevista no artigo 24.º da LCT, por o empregador ter logrado provar que a transferência do local de trabalho dos autores não era idónea a causar-lhes
“prejuízo sério”.
Os autores apelaram para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando, nas respectivas alegações, além do mais, que “se a revogação das normas convencionais estabelecida pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 64-A/89 abrangesse também situações como a da transferência do trabalhador para outro local de trabalho, deveria, nesse caso, ser julgada inconstitucional, por ofensa ao artigo 56.º, n.º 3, da CRP”, mas, por acórdão de 18 de Março de
1998, foi negado provimento ao recurso.
Os autores interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando a mesma questão de constitucionalidade, tendo, por acórdão de 3 de Março de 1999, sido negado provimento ao recurso, com base na seguinte fundamentação:
“Entendeu-se no acórdão recorrido que o direito dos recorrentes à indemnização pedida pela rescisão dos contratos devia ser apreciado em face do regime estabelecido pelo artigo 24.° da LCT e não de qualquer CCT, designadamente da cláusula 32.ª do CCT invocado pelos autores. Assim e considerando que os factos apurados levam a concluir que da transferência do estabelecimento e da consequente deslocação para o novo local de trabalho não resultavam prejuízos sérios para os autores, concluiu-se pela inexistência do direito às indemnizações reclamadas. Alegando que o Contrato Colectivo de Trabalho de que consta a invocada cláusula
32.ª foi objecto de Portaria de Extensão publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, II Série, n.º 12, de 10 de Abril de 1980, sendo por isso indiscutível a sua aplicação à ré, pretendem os recorrentes que, podendo o regime previsto no artigo 24.° da LCT ser modificado por convenção colectiva em sentido mais favorável ao trabalhador, regulando aquela cláusula, que autores e ré aceitam ser aplicável às respectivas relações laborais, a transferência do trabalhador para outro local de trabalho em termos mais favoráveis, não colidindo com o regime do referido artigo 24.° e sendo certo que aquele regime não foi revogado peto Decreto-Lei n° 64-A/89, também não se pode considerar esta cláusula abrangida por esta revogação. Os recorrentes não se insurgem contra a denegação do seu direito às indemnizações com fundamento na aplicação do regime previsto no artigo 24.° da LCT. Entendem, porém, que não é esse o regime aplicável, mas sim o estabelecido pela cláusula 32.ª do CCTV, cujo âmbito foi alargado pela Portaria de Extensão publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, II Série, n.° 12, de
10 de Abril de 1980. Efectivamente, esta Portaria de Extensão alargou o âmbito de aplicação das disposições constantes daquele CCTV, na Região Autónoma da Madeira, a todas as empresas que tenham ao seu serviço trabalhadores das categorias profissionais previstas nessa convenção não abrangidos por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho específico, bem como a estes trabalhadores, filiados ou não nos Sindicatos signatários.
A cláusula 32.ª desse CCTV dispõe:
«1 – Em caso de transferência do estabelecimento para novo local de trabalho, o trabalhador poderá, em alternativa, optar por rescindir o contrato ou aceitar a mudança.
2 – No caso de o trabalhador optar pela rescisão, terá direito a uma indemnização igual à resultante do despedimento colectivo.”
Reafirma-se, assim, a possibilidade, que já se encontrava prevista no n.° 2 do artigo 24.° da LCT, de o trabalhador, no caso de transferência para outro local de trabalho, resultante da mudança, total ou parcial, do estabelecimento onde presta serviço, rescindir o contrato de trabalho. Mas, diversamente do que nesse artigo 24.° se dispõe, confere-se ao trabalhador o direito a uma indemnização igual à do despedimento colectivo, ou seja, a uma indemnização de acordo com a respectiva antiguidade e correspondente a um mês de retribuição por cada ano ou fracção, nos termos do n.° 1 do artigo 20.° do Decreto-Lei n° 372-A/75, então vigente, não se ressalvando a possibilidade de a entidade patronal se eximir a esse pagamento fazendo prova de que da mudança não resulta prejuízo sério para o trabalhador. A cessação do contrato por iniciativa do trabalhador passou a ser regulada pelos artigos 34.º e seguintes do regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º
64-A/89, de 27 de Fevereiro. O artigo 36.º desse diploma legal só confere ao trabalhador direito a uma indemnização calculada nos termos do n.º 3 do artigo 13.º se a rescisão do contrato tiver fundamento nos factos previstos no n.º 1 do artigo anterior, ou seja, se se verificar um comportamento da entidade empregadora constitutivo de justa causa, que, como é doutrina dominante e jurisprudência pacífica e desde há muito fixada, se há-de aferir pelo conceito geral de justa causa consagrado pelo artigo 9.º do mesmo regime jurídico. Esse regime, salvo disposição legal em contrário, não pode ser afastado ou modificado por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho ou por contrato individual de trabalho, consoante expressamente prescreve o n.º 1 do artigo 2.º do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89. E o n.º 2 do mesmo artigo revogou, de modo bem explícito, todas as disposições dos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho então em vigor, que contrariassem o disposto naquele diploma. Contrariamente ao que pretendem os recorrentes, esta revogação não prejudica o direito à contratação colectiva, conferido pelo artigo 56.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, e aí garantido nos termos da lei e que pode ser exercido pelas associações sindicais. Nos termos do artigo 59.º do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, a regulação por instrumento de regulamentação colectiva de natureza convencional dos valores e critérios de definição de indemnizações continua a ser possível mas só relativamente a convenções colectivas de trabalho celebradas após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 64-A/89, em 28 de Junho de 1989. Assim, e porque o referido CCT foi publicado no Jornal Oficial de 1 de Fevereiro de 1980, a sua cláusula 32.ª, na parte em que modifica e contraria o regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, designadamente na medida em que confere ao trabalhador o direito a uma indemnização pela rescisão do contrato independentemente da existência de justa causa, tem de considerar-se revogada pelo n.º 2 do artigo 2.º do dito regime, como, esclarecidamente, se decidiu na sentença proferida. A possibilidade, invocada pelos recorrentes, de uma convenção colectiva de trabalho estabelecer um regime mais favorável para o trabalhador do que o previsto no artigo 24.º da LCT só pode concretizar-se por via de convenções colectivas de trabalho celebradas posteriormente a 28 de Junho de 1989 e mesmo assim tão-somente quanto aos valores e critérios de definição da indemnização, o que não acontece no caso em apreço.
O direito dos recorrentes ao pagamento das indemnizações peticionadas só poderia, por conseguinte, ter como fundamento o disposto no n.°
2 do artigo 24.° da LCT, que dispõe:
«No caso previsto na segunda parte do número anterior [ou seja, se a transferência resultar da mudança, total ou parcial, do estabelecimento onde presta serviço], o trabalhador, querendo rescindir o contrato, tem direito à indemnização fixada nos artigos 109.° e 110.°, salvo se a entidade patronal provar que da mudança não resulta prejuízo sério para o trabalhador.»
Ora, como decidiram as instâncias e conforme resulta da matéria de facto que foi julgada provada e que este Tribunal tem de acatar, dado o que dispõem os artigos 29.° da Lei n.° 38/87, de 23 de Dezembro, 85.° do Código de Processo do Trabalho e n.° 1 do artigo 729.° do Código de Processo Civil, a transferência dos recorrentes para outro local de trabalho, resultante da mudança das instalações da recorrida, não lhes ocasionaria prejuízo sério, pelo que não lhes assiste o direito ao pagamento das indemnizações que pedem pela rescisão do contrato.”
Deste acórdão interpuseram os autores, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(doravante designada por LTC), recurso para o Tribunal Constitucional, terminando as respectivas alegações com a formulação das seguintes conclusões:
“1 – A decisão recorrida recusou-se a aplicar o regime previsto na cláusula
32.ª do Contrato Colectivo de Trabalho que regulava as relações de trabalho entre autores e ré, porque entendia que o disposto nessa cláusula estava irremediavelmente afastado do âmbito da contratação colectiva por força do disposto no artigo 2.°, n.° 2, conjugado com o capítulo VI, Secção I, do Decreto-Lei n.° 64-A/89.
2 – Abordando esse capítulo a rescisão do contrato de trabalho, com justa causa, por iniciativa do trabalhador, é facilmente constatável que a autorização legislativa constante da Lei n.° 107/88, de 17/9, não abrange essa área.
3 – Sendo incontestável que o Governo não estava autorizado a legislar sobre essa matéria.
4 – O que torna organicamente inconstitucionais os artigos 34.° a 36.° desse decreto-lei, por violação do actual artigo 165.º, n.° 2, ou artigo 168.º, n.° 2, relativamente ao texto constitucional então em vigor.
5 – Concomitantemente, o artigo 2.°, n.° 2, quando manda aplicar aqueles artigos
34.° a 36.°, padece de igual inconstitucionalidade.
6 – Independentemente desse aspecto, o aludido artigo 2.°, n.° 2, ao regular matéria atinente à transferência do local de trabalho, atinge, num grau constitucionalmente insuportável, o direito à contratação colectiva.
7 – Com efeito, e segundo este Venerando Tribunal já expressou, o Decreto-Lei n.° 64-A/89 só será constitucional se este artigo apenas contendesse com um sector da vida das relações de trabalho, que seria o da cessação do contrato por iniciativa da entidade patronal ou por motivos objectivos a ela ligados.
8 – Extravasando largamente esse âmbito, o referido artigo 2.°, n.°
2, atinge o espaço irredutível necessário à afirmação de uma competência de negociação colectiva.
9 – E, por outro lado, não existe qualquer explicação para que o legislador se pretenda sobrepor à vontade dos sujeitos do direito à negociação colectiva no que diz respeito à regulamentação da transferência do local de trabalho.
10 – Surgindo o artigo 2.°, n.° 2, neste caso, como impondo uma disciplina totalmente gratuita e arbitrária.
11 – Por isso, a aludida norma, na medida em que regulamenta a transferência do local de trabalho, é inconstitucional por violação do comando constitucional constante do actual artigo 56.°, n.° 3, e anterior artigo 57.°, n.° 3, na versão de 1982 da Constituição da República Portuguesa.”
A ré, ora recorrida, contra-alegou, concluindo:
“1.º – O n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 64-A/89 não se encontra ferido de qualquer inconstitucionalidade.
2.º – Esta disposição legal em nada ofende direitos eventualmente adquiridos.
3.º – A rescisão do contrato individual de trabalho por parte do trabalhador obedece a requisitos taxativamente regulados.
4.º – Consequentemente, o n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 64-A/89 não ofende a Constituição.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. O artigo 24.º da LCT dispunha, sob a epígrafe Transferência do trabalhador para outro local de trabalho:
“1. A entidade patronal, salva estipulação em contrário, só pode transferir o trabalhador para outro local de trabalho se essa transferência não causar prejuízo sério ao trabalhador ou se resultar da mudança, total ou parcial, do estabelecimento onde aquele presta serviço.
2. No caso previsto na segunda parte do número anterior, o trabalhador, querendo rescindir o contrato, tem direito à indemnização fixada nos artigos 109.º e 110.º, salvo se a entidade patronal provar que da mudança não resulta prejuízo sério para o trabalhador.
3. A entidade patronal custeará sempre as despesas feitas pelo trabalhador directamente impostas pela transferência.”
A cláusula 32.ª, n.º 2, do Contrato Colectivo de Trabalho Vertical (CCTV) celebrado entre a D. e o Sindicato E. (publicado no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, II Série, Suplemento ao n.º 4, de
1 de Fevereiro de 1980), aplicável às partes neste processo por força da Portaria de Extensão publicada no mesmo Jornal Oficial, II Série, Suplemento ao n.º 12, de 10 de Abril de 1980, dispõe:
“1 – Em caso de transferência do estabelecimento para novo local de trabalho, o trabalhador poderá, em alternativa, optar por rescindir o contrato ou aceitar a mudança.
2 – No caso de o trabalhador optar pela rescisão, terá direito a uma indemnização igual à resultante do despedimento colectivo.”
Do confronto das duas disposições resulta que a cláusula convencional é mais favorável aos trabalhadores porquanto, no caso de optarem por rescindir o contrato de trabalho na sequência de transferência do estabelecimento para novo local, lhes confere sempre direito a uma indemnização
(igual à resultante do despedimento colectivo), mesmo que a entidade patronal prove que aquela mudança não lhes acarretava prejuízo sério, hipótese em que, segundo o artigo 24.º, n.º 2, da LCT, não havia lugar a indemnização.
Por força do artigo 2.º, n.º 2, da LCCT (“São revogadas as disposições dos actuais instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho que contrariem o disposto no presente diploma”), aquela disposição convencional foi tida por revogada, já que o artigo 37.º do mesmo diploma só atribui direito a indemnização (calculada nos termos do n.º 3 do artigo 13.º, isto é, a chamada
“indemnização de antiguidade” devida, no caso de despedimento individual ilícito, em substituição da reintegração) ao trabalhador que haja rescindido o contrato de trabalho com fundamento nos factos previstos no n.º 1 do artigo
36.º, isto é, em comportamentos culposos da entidade empregadora (falta culposa de pagamento pontual da retribuição na forma devida, violação culposa das garantias legais ou convencionais do trabalhador, aplicação de sanção abusiva, lesão culposa de condições de higiene e segurança no trabalho, lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador, ofensas à integridade física, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, puníveis por lei, praticadas pela entidade empregadora ou seus representantes legítimos), o que no presente caso não ocorria.
Os recorrentes imputam à norma ao artigo 2.º, n.º 2, da LCCT vícios de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 56.º, n.º
3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), derivada da invasão do “espaço irredutível necessário à afirmação de uma competência de negociação colectiva”, e de inconstitucionalidade orgânica, por o Governo não estar autorizado, pela Lei n.º 107/88, de 17 de Setembro, a legislar sobre a matéria da rescisão do contrato de trabalho, com justa causa, por iniciativa do trabalhador, sendo, por isso, organicamente inconstitucionais os artigos 34.º a 36.º da LCCT “e concomitantemente o artigo 2.º, n.º 2, quando manda aplicar aqueles artigos
34.º a 36.º”.
2.2. Quanto à inconstitucionalidade material, o Tribunal Constitucional tem entendido, para usar a formulação utilizada no Acórdão n.º
517/98 (Diário da República, II Série, n.º 260, de 10 de Novembro de 1998, pág.
15 978; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 479, pág. 173; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 40.º, pág. 573), que o direito à contratação colectiva é um direito que se acha colocado sob reserva da lei: a Constituição garante-o, de facto, “nos termos da lei”. Isto, porém, não significa que a lei possa esvaziar de conteúdo um tal direito, como sucederia se regulamentasse, ela própria, integralmente as relações de trabalho, em termos inderrogáveis pelas convenções colectivas. Significa apenas que a lei pode regular o direito de negociação e contratação colectiva – delimitando-o ou restringindo-o –, mas deixando sempre um conjunto minimamente significativo de matérias aberto a essa negociação. Ou seja: pelo menos, a lei há-de garantir uma reserva de convenção colectiva.
A norma que constitui objecto do presente recurso já foi alvo de controlo de constitucionalidade por este Tribunal, que recaiu quer sobre a norma do n.º 2 do artigo 2.º da LCCT, quer sobre a do n.º 1 (“Salvo disposição em contrário, não pode o presente regime ser afastado ou modificado por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho ou por contrato individual de trabalho”). Disse-se, a propósito desta norma, no Acórdão n.º 581/95 (Diário da República, I Série-A, n.º 18, de 22 de Janeiro de 1996, pág. 96; Boletim do Ministério da Justiça, Suplemento ao n.º 451, pág. 497; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 32.º, pág. 43):
“XI (...)
1. «Disposição em contrário» é, desde logo, a do artigo 59.º, n.º 1, também do diploma anexo ao Decreto-Lei n.º 64-A/89, que abre às competências privadas de contratação colectiva a regulação dos «valores e critérios de definição de indemnizações consagrados neste regime, os prazos do processo disciplinar, do período experimental e de aviso prévio, bem como os critérios de preferência na manutenção de emprego nos casos de despedimento colectivo».
No pedido, a norma do artigo 2.º é confrontada com o artigo 57.º, n.º 3, da Constituição [agora, artigo 56.º, n.º 3], sobre o direito das associações sindicais à contratação colectiva. Diz-se, ali, que a atribuição de carácter imperativo ao regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89 põe em causa esse direito.
Mas não é assim. A norma do artigo 2.º não atinge o espaço irredutível necessário à afirmação de uma competência de negociação colectiva das associações sindicais constitucionalmente afirmada. Lembremos, a propósito desta temática da «convivência» de normas legais imperativas com a competência colectiva de conformação autónoma das relações de trabalho, a fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 94/92 [Diário da República, II Série, de
18 de Agosto de 1992]:
«A Constituição atribui às associações sindicais a competência para o exercício do direito de contratação colectiva, mas devolve ao legislador a tarefa de delimitação do mesmo direito, aqui lhe reconhecendo uma ampla liberdade constitutiva. A interpretação do alcance desta devolução para a Lei
(CRP, artigo 56.º, n.º 3, in fine, e n.º 4) não pode contudo deixar de entrever na norma atributiva de uma competência às organizações sindicais de exercerem o direito de contratação colectiva (CRP, artigo 56.º, n.º 3) a própria afirmação constitucional deste direito e a garantia da sua realização.
(...)
Não está em causa a admissibilidade, em Direito do Trabalho, de normas legais imperativas, maxime de normas imperativas de condições fixas, ou seja “aquelas que exprimem uma ingerência absoluta e inelutável da lei na conformação da relação jurídica de trabalho, por forma tal que nem os sujeitos do contrato podem substituir-lhes a sua vontade, nem os instrumentos regulamentares hierarquicamente inferiores aos que as contêm podem fazer prevalecer preceitos opostos ou conflituantes com elas” (Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 6.ª edição, Coimbra, 1987, pág. 233).
Na verdade, “há no direito do trabalho normas imperativas cujo comando é totalmente imodificável em qualquer sentido” (Barros Moura, A Convenção Colectiva entre as Fontes de Direito do Trabalho, pág. 152). “São normas inderrogáveis, quer no sentido do mais, quer no sentido do menos” (José Acácio Lourenço, “O princípio do tratamento mais favorável”, in Estudos Sobre Temas de Direito do Trabalho, pág. 29), normas com uma “assumida intenção de aplicação absoluta” (Menezes Cordeiro, “O princípio do tratamento mais favorável no Direito do Trabalho actual”, Direito e Justiça, vol. III,
1987-1988, págs. 110-139).
(...)
O que, aliás, não significa que a imperatividade das normas laborais não seja instituída quantas vezes (senão mesmo a maior parte das vezes) no interesse do próprio trabalhador. Como afirma Carlos Santiago Nino,
“há medidas aparentemente paternalistas que, no entanto, estão dirigidas a tornar efectiva a vontade dos indivíduos. É este o caso da regulação legal dos contratos de trabalho” (...) (Etica y Derechos Humanos, Buenos Aires, 1984, pág. 178) (...).
No mesmo sentido, afirmam Messias de Carvalho e Vítor Nunes de Almeida: “o direito do trabalho é, como se sabe e por nós vem sendo afirmado, um domínio do direito em que a autonomia privada aparece como extremamente comprimida e, por vezes, mesmo eliminada. Em tais hipóteses, a paridade de tratamento foi já recuperada pelo próprio legislador que, perante um grave desequilíbrio das partes, limita a autonomia contratual pondo os sujeitos em situação de igualdade real” (Direito do Trabalho e Nulidade do Despedimento, Almedina, Coimbra, 1984, pág. 85).
É por isso que a abertura à contratação a que se refere o artigo
56.º da Constituição se apresenta, pela própria letra do preceito, como uma abertura legislativamente conformada.
Além disso, no âmbito do Direito do Trabalho, a protecção do trabalhador não é o único interesse digno de ser tutelado. A inderrogabilidade de certos regimes legais surge também associada a razões de ordem pública que ultrapassam os interesses particulares do trabalhador.
Como refere Bernardo Xavier: “o direito do trabalho está agora mais aberto aos interesses gerais, à economia, e particularmente ao emprego. Ele não presta atenção apenas à justiça e equilíbrio das possíveis relações entre os sujeitos individuais do contrato de trabalho, nem se preocupa tão-somente com o sistema conflitual dos protagonistas dos interesses de classe” (“A crise e alguns institutos de direito do trabalho”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXVIII, n.º 4, 1986, pág. 561). E Barros Moura: “Os princípios fundamentais que formam a ordem pública podem adquirir expressão positiva: na Constituição e nas normas legais imperativas. A inderrogabilidade destas
últimas só pode derivar do facto de constituírem uma concretização ou explicitação da ordem pública. Contra essa «barreira intransponível» erguida pelo Estado não podem prevalecer os interesses individuais ou os interesses particularizados de certas classes através da autoregulamentação privada, individual ou colectiva” (obra citada, págs. 170-171).
A imbricação entre a inderrogabilidade da norma legal e o princípio da ordem pública é também sustentada por Aldo Aranguren: “como princípio geral, pode afirmar-se que a inderrogabilidade vem atribuída ao legislador sempre que a norma prossiga um fim de tutela de um interesse geral ou de ordem pública”
(Aldo Aranguren, “La tutela dei diritti dei lavoratori”, in Enciclopedia Giuridica del Lavoro, vol. 7, 1981, pág. 21) (...).»
Lembremos a formulação contida no artigo 56.º, n.º 3, da Constituição: «Compete às associações sindicais exercer o direito de contratação colectiva, o qual é garantido nos termos da lei».
Não se trata aí de uma ingerência autorizada do legislador, configurando uma limitação do direito de contratação colectiva. O que se estabelece é uma reserva de conformação (Ausgestaltungsvorbehalt): o legislador não intervém para impor limites ao direito, mas o direito só tem existência completa na modulação que o legislador lhe confere.
Este âmbito de conformação do legislador é particularmente relevante, como explana Alexy (Theorie der Grundrechte, Suhrkamp Taschenbuch
Wissenschaft, pág. 300), em matéria de competências privadas. E é este o caso. A dogmática jurídico-constitucional distingue a noção de conformação em sentido verdadeiro e próprio da noção de restrição, precisamente em relação às normas de competência. Na doutrina portuguesa, Vieira de Andrade dá conta de que «essa necessidade prática [de introduzir e acomodar os direitos na vida jurídica] é particularmente notória quando se trata de efectivar direitos em que predomina o aspecto institucional...» (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, Coimbra, 1983, pág. 227).
É, pois, evidente que, neste domínio, a lei adquire uma função constitutiva do próprio Tatbestand do direito. Então, criada que está pelo próprio figurino constitucional a abertura para uma ampla liberdade constitutiva do legislador, cabe perguntar se a norma do artigo 2.º, ao retirar
à regulamentação colectiva certas matérias do regime jurídico do Decreto-Lei n.º 64-A/89 – aquelas que aí são determinadas pela exclusão das matérias do artigo 59.º – vem reduzir de tal modo aquele espaço de autoregulação constitucionalmente garantido que põe em causa a possibilidade de realização do direito de contratação colectiva.
Também aqui o método de controlo faz apelo ao critério da proporcionalidade. Interesses públicos relevantes como os da segurança jurídica e da igualdade – postulando uniformização de procedimentos – podem ditar que as normas sejam imperativas e não dispositivas. Além disso, o «espaço virtual» da contratação colectiva não se esgota no âmbito de realidade sobre que incide o Decreto-Lei n.º 64-A/89: o regime jurídico deste Decreto-Lei [que, aliás, se abre em momentos relevantes à autonomia colectiva (artigo 59.º)] tem incidência apenas num sector da vida das relações de trabalho e o papel central da regulamentação colectiva está por via de regra na «contratualização» de prestações, que não é posta em causa.
Não é pois constitucionalmente ilegítima a determinação que se contém na norma do artigo 2.º do diploma anexo ao Decreto-Lei n.º 64-A/89, visto que por ela o legislador concretiza uma ampla competência de conformação sem negar a existência de um «objecto possível» da contratação colectiva.”
No seguimento desta orientação jurisprudencial, conclui-se pela insubsistência da questão de inconstitucionalidade material suscitada, sendo de realçar que, no presente caso, somente está em causa a norma do n.º 2 do artigo 2.º, na parte em que derroga regulamentação convencional preexistente, por razões de igualização das situações e de clarificação do ordenamento jurídico, sem obstar a que contratação colectiva superveniente introduza regulação diversa nas matérias elencadas no n.º 1 do artigo 59.º, entre as quais se insere a relativa aos “valores e critérios de definição de indemnizações consagrados neste regime”, designadamente as indemnizações devidas ao trabalhador nos casos de rescisão do contrato de trabalho, com justa causa, por sua iniciativa.
2.3. Quanto à questão da inconstitucionalidade orgânica, afirmou-se, subsequentemente, no mesmo Acórdão n.º 581/95:
“2. O pedido confronta a mesma norma também com o artigo 168.º, n.º
2, da Constituição. Considera que da Lei n.º 107/88 não resultava uma qualquer directiva para a instituição de um regime imperativo.
Ora, a escolha das determinantes do decreto-lei a produzir pelo Governo não tem que ser, quanto a esta temática da força jurídica, desde logo prefigurada na lei de autorização. Essa escolha surge neste plano tão-só materialmente vinculada às normas constitucionais sobre a contratação colectiva. Do que, atenta a anterior ordem de considerações, se deriva uma conclusão de não inconstitucionalidade daquela norma.”
Na verdade, a autorização concedida ao Governo pela Lei n.º 107/88 para “legislar em matéria de cessação do contrato individual de trabalho” (artigo 1.º, n.º 1) engloba naturalmente a possibilidade de determinação dos aspectos a que, no regime a instituir, o legislador entende dever atribuir carácter imperativo, inderrogável por contratação colectiva, por tal ser imposto por razões de “interesse e ordem pública”, daqueles em que consente a intervenção dessa negociação, “funcionando em relação a elas o regime legal em termos de supletividade” (alínea l) do artigo 2.º).
Aliás, os recorrentes não assacam, em rigor, o vício de inconstitucionalidade orgânica à norma do artigo 2.º, n.º 2, da LCCT, mas antes aos seus artigos 34.º a 36.º; da inconstitucionalidade orgânica destas normas é que derivaria, reflexamente, a daquele artigo 2.º, n.º 2, na medida em que imporia a aplicação imperativa do regime contido naqueles artigos, com derrogação das cláusulas convencionais preexistentes com ele desconformes. Acontece que nem o anterior regime da LCT (artigo 24.º) nem o novo regime da LCCT (artigos 34.º a 36.º) atribuem direito a qualquer indemnização ao trabalhador que toma a iniciativa de rescindir o contrato de trabalho por a entidade empregadora ter procedido a transferência do local do estabelecimento onde ele exercia funções, nos casos em que dessa mudança não lhe adveio prejuízo sério, como ocorria no caso dos presentes autos; isto é, neste aspecto, a LCCT carece de natureza inovatória, o que sempre afastaria a existência do vício de inconstitucionalidade orgânica.
Improcedem, assim, na totalidade, os fundamentos do presente recurso.
3. Decisão
Em, face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 2.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta, para cada um. Lisboa, 2 de Junho de 2004. Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto Votei vencida por entender que a norma do artigo 2º, nº 2, do Regime Jurídico da Cessação do Contrato de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a termo ao restringir os pressupostos de direitos de indemnização, por força de transferência para novo local de trabalho constante de uma Convenção Colectiva de Trabalho anteriormente vigente, veio restringir, sem qualquer explícita razão de interesse público nem de protecção do trabalhador ou de um seu tratamento mais favorável, um espaço de competência da negociação colectiva. O conteúdo do artigo 56º da Constituição não é, assim, o de uma pura remissão para os termos da lei do direito à contratação colectiva, mas, sob pena de esvaziamento deste, o de uma protecção em face da lei do núcleo essencial desse direito, o que há-de implicar que os seus limites se deverão situar na esfera da ordem pública e da protecção de limites mínimos de protecção do trabalhador e que a lei não poderá invadir, sem qualquer manifesta justificação, o espaço dos conteúdos acordados na negociação colectiva. É essa perspectiva que me parece coerente com a orientação que exprimi no Acórdão nº 306/2003, D.R., II Série, de
18 de Julho de 2003. Maria Fernanda Palma