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Proc. n.º 700/03
1.ª Secção Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
I – A Causa
1. A. e outros, todos Tenentes-Coronéis, pertencentes ao Quadro Especial de Oficiais (QEO) do Exército, impugnaram contenciosamente, junto do Tribunal Central Administrativo (TCA), o Despacho nº 5413/2000 (2ª série) do Chefe do Estado-Maior do Exército, de 17/02/2000, que aprovou os efectivos dos quadros especiais do Exército, para vigorar durante o ano de 2000. Tal Despacho não incluiu, para esse ano e relativamente aos militares oriundos do QEO, qualquer efectivo para o posto de Coronel.
A este Despacho apontaram, desde logo, os recorrentes o vício de violação de lei, apoiando tal entendimento, entre outros, no seguinte argumento:
“(…) se o artigo 10º do DL nº 296/84 não tivesse sido revogado tacitamente pelo DL nº 34-A/90, seria o mesmo materialmente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, pelo que, face à proibição de aplicação de normas violadoras da lei fundamental, sempre a autoridade recorrida estaria vinculada a cumprir o disposto no artigo 166º, do actual EMFAR, e, consequentemente, a preencher as oitos vagas existentes no QEO para o posto de Coronel.”
Decidindo este recurso, o TCA concedeu-lhe provimento, anulando o Despacho impugnado. Para tal efeito entendeu o Tribunal que o artigo 10º do Decreto-Lei nº296/84, de 31 de Agosto, fora – tal como defendiam os recorrentes – objecto de revogação tácita, pelo nº1 do artigo 30º do Decreto-Lei nº34-A/90, de 24 de Janeiro, que aprovou o Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR/90), daí decorrendo a obrigatoriedade do preenchimento das oito vagas previstas no artigo
2º do DL nº 296/84, para o posto de Coronel do QEO.
Desta decisão recorreu o Chefe do Estado-Maior do Exército para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), que concedeu provimento ao recurso revogando o Acórdão do TCA.
Para alcançar esta conclusão o STA começou por sufragar o entendimento adoptado pelo TCA na decisão aí recorrida, isto no que tange à revogação tácita do artigo
10º do Decreto-Lei nº296/84. Porém, desenvolvendo uma outra linha argumentativa, consignou o seguinte:
“Tal conclusão [a de que o artigo 10º do Decreto-Lei nº296/84 estaria revogado] não implica, porém, que os recorrentes tivessem que ser promovidos, como pretendem, pois que a promoção depende da existência de vagas (artigo 166º, nº3 do EMFAR, aprovado pelo Decreto-Lei nº 236/99, em vigor à data da prática do acto impugnado). E, no ano de 2000, o ano a que se reportam as pretendidas promoções, não existiam vagas na medida em que o acto impugnado não atribuiu qualquer efectivo ao posto de Coronel do QEO, dessa forma impedindo as promoções. O Acórdão recorrido considerou verificado o vício de violação de lei, em virtude do acto impugnado não ter aprovado qualquer efectivo para o ano de 2000 para o posto de Coronel do QEO, apesar da existência de 8 vagas, existência essa que fundou no quadro aprovado pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 296/84. A primeira questão que se coloca é, assim, se esse quadro se manteve em vigor ou se foi revogado pelo despacho impugnado e, caso se decida pela revogação, a legalidade desta. Ora, no que respeita à revogação, a mesma é indiscutível, na medida em que, constando desse despacho o QEO, sem qualquer efectivo para o posto de Coronel, é inequívoco que foi essa a intenção do legislador (artigo 7º, nº3 do Código Civil). Impõe-se por isso, apesar da sua legalidade, ou melhor, tendo em conta o objecto do recurso, apurar se esse despacho violou os preceitos legais invocados pelos recorrentes. Vejamos. O EMFAR (aprovado pelo Decreto-Lei nº 34-A/90) estabeleceu, no seu artigo 179ª, nº 4, que a distribuição dos efectivos pelos quadros especiais e, dentro destes, por cada posto, passaria a ser efectuada mediante despacho do Chefe de Estado-Maior de cada ramo. Por sua vez, o EMFAR em vigor à data da prática do acto impugnado, aprovado pelo Decreto-Lei nº 236/99, de 25 de Junho, estabeleceu que «os quadros especiais são criados e extintos por decreto-lei, sob proposta do CEM do respectivo ramo, sendo os seus efectivos distribuídos por categorias e postos, aprovados por despacho do CEM de cada ramo, ouvido o respectivo conselho superior» (artigo 165º, nº 3), tendo este diploma consagrado uma disposição idêntica à do artigo 30º do DL nº 34-A/90, precisamente também o artigo 30º, que estatui que “São revogadas todas as disposições legais e regulamentares que contrariem o presente diploma». Donde resulta que essa revogação foi efectuada a coberto de uma lei que a permitia. Por outro lado, os preceitos invocados pelos recorrentes são os artigos 3º do DL nº 296/84, 3º do DL nº 202/93, e 25º, alínea a), 116º, 127º, nº 1 e 166º, nºs. 3 e 4 do EMFAR aprovado pelo DL nº 236/99, que se referem todos eles ao direito à promoção. Esse direito não aparece, contudo, como um direito absoluto, antes resultando da globalidade do EMFAR como sendo um direito dependente das necessidades estruturais das Forças Armadas e da consequente existência de vagas (cf., entre outros, os invocados artigos 116º, 127º, nº 1 e 166º, nos. 3 e 4). Donde resulta que não são de considerar violados esses preceitos e, consequentemente, que o Acórdão recorrido, ao assim não decidir, incorreu em erro de julgamento. Procedem, assim, as conclusões 4ª, 5ª e 6ª, primeira parte, das alegações de recurso. (...)”
Para cabal compreensão do sentido desta decisão do STA – que revogou o anterior Acórdão do TCA -, é útil transcrever o teor das conclusões 4ª, 5ª e 6ª das alegações respeitantes ao recurso do Chefe do Estado-Maior do Exército, relativo
à decisão do TCA recorrida nesse trecho processual (fl. 104):
“(...)
4. De acordo com o disposto nos artigos 179º e 180º do EMFAR aprovado pelo DL nº
34-A/90, de 24 de Janeiro, a distribuição dos efectivos pelos quadros especiais e, dentro destes, por cada posto, passou a ser efectuada por despacho do Chefe do Estado-Maior de cada ramo, pelo que, atento o disposto no artigo 30º daquele diploma preambular, deixou, desde então, de ser aplicável o disposto no artigo
2º do DL nº 296/84, de 31 de Agosto, que definiria a constituição do quadro do QEO e incluía 8 lugares no posto de Coronel;
5. Os efectivos do QEO deixaram desde então de ter um quadro pré-definido e passaram a ser distribuídos, todos os anos, conforme as necessidades do Exército, por despacho do CEME;
6. O aresto impugnado [referia-se ao Acórdão do TCA de fls. 82/88] fez, pois, incorrecta interpretação e aplicação daquelas disposições legais, ao considerar que existiam oito vagas no posto de Coronal do QEO (...)”.
À decisão do STA, reagiram os ora recorrentes, na parte que apresenta relevância para o presente recurso de constitucionalidade, com o pedido de aclaração de fls. 129/131. Neste referem:
“(...) queiram os Senhores Conselheiros esclarecer se o despacho impugnado – um acto administrativo – pode revogar um diploma legal – o DL 296/84 – e, em caso afirmativo, qual a norma legal que justifica e legitima que um acto administrativo (ainda que geral) possa revogar um diploma legal, designadamente um decreto-lei? Acresce que,
(...) O douto Acórdão em aclaração não deixa de mencionar que, de acordo com o artigo 165º, nº 3 do EMFAR/99, «os quadros especiais são criados e extintos, por decreto-lei, sob proposta do CEM do respectivo ramo, sendo os seus efectivos distribuídos por categorias e postos, aprovados por despacho do CEM de cada ramo, ouvido o respectivo conselho superior». Ora, não tendo havido qualquer diploma legal a extinguir o QEO e se o mesmo não puder ser revogado por um acto administrativo – o acto impugnado -, mas apenas por outro Decreto-Lei, julga-se ser contraditório e merecedor de aclaração como se pode afirmar que o quadro do QEO – criado por um diploma legal – foi revogado e deixaram de existir as vagas ali previstas para o posto de coronel?
(...) Para além disso, deve igualmente ser esclarecido como é que o simples facto de uma norma permitir a distribuição de efectivos, conduz à extinção de um quadro aprovado por diploma legal, sobretudo quando a mesma norma prescreve que a extinção do quadro e das respectivas vagas só se poderá processar através de um outro diploma legal?
(...)”.
Decidindo esta aclaração entendeu o STA não se verificar qualquer obscuridade no Acórdão de fls. 110/117, referindo a este respeito o seguinte:
“(...) Os requerentes pretendem a aclaração do Acórdão no que respeita a duas questões,
(...): i) revogação do QEO pelo acto impugnado, de que resulta a inexistência de vagas; ii) o direito à promoção não ser um direito absoluto, do que resulta a promoção apenas em função das necessidades estruturais das Forças Armadas.
(...)”.
E, mais adiante, explicitando o porquê da inexistência de ambiguidades ou obscuridades no Acórdão e que a argumentação dos recorrentes mais não expressava que divergência quanto ao decidido, afirmou o STA:
“(...) Com efeito, perante a afirmação no Acórdão recorrido (clara e inequívoca) de que o QEO foi revogado pelo despacho impugnado (...), a que se acrescenta, assinala-se, que essa revogação foi efectuada a coberto de uma lei que a permitia (...). o que os requerentes questionam é que a lei justifica e legitima que um acto administrativo revogue um Decreto-Lei, que leve a que os efectivos constantes de Decreto-Lei sejam eliminados por acto administrativo. Finalmente, no que respeita à promoção, foi também dito, clara e inequivocamente, que a promoção não é obrigatória, por esse direito não ser um direito absoluto, prevalecendo os artigos 116º, 127, nº 1 e 166º, nos. 3 e 4 do EMFAR sobre os preceitos legais invocados pelos requerentes como determinantes das promoções obrigatórias.
(...)”.
Surge então o recurso de constitucionalidade (fls.142/145), indicando os recorrentes o respectivo objecto nos seguintes termos:
“(...), ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, interpõe-se o presente recurso, exercendo o Venerando Tribunal Constitucional a sua actividade cognitiva sobre os seguintes preceitos:
- sobre a parte final do artigo 10º do DL 296/84, no segmento em que dispõe que as vagas previstas no quadro do QEO para o posto de Coronel não têm de ser obrigatoriamente preenchidas, o que representa uma violação do direito fundamental à igualdade consagrado nos artigos 13º e 47º, nº 2 da CRP;
- sobre os artigos 30º e 179º, nº 4 do EMFAR, aprovado pelo DL 34-A/90, e sobre os artigos 30º e 165º, nº 3 do EMFAR, aprovado pelo DL 236/99, quando interpretados no sentido de permitirem que um acto administrativo – o Despacho do Chefe do Estado-Maior do Exército que procede à distribuição anual de efectivos – revogue um quadro de pessoal – aprovado por um diploma legal, o que representa uma violação da reserva de função legislativa enunciada na alínea t) do nº 1 do artigo 165º e no artigo 198º da CRP e do princípio da separação de poderes enunciado no artigo 2º da Lei Fundamental.
(...)”.
Neste Tribunal foi proferido pelo ora relator o seguinte despacho (fls. 151):
“O processo prossegue para alegações, reduzindo-se, porém o seu objecto aos artigos 30º e 179º, nº 4 do DL nº 34-A/90, de 24 de Janeiro (EMFAR/90), e 30º e
165º, nº 3 do DL nº 236/99, de 25 de Junho (EMFAR/99). Fica, assim, excluída deste processo, por a decisão recorrida a ter considerado revogada e não a ter aplicado, a questão da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 10º do DL nº 296/84, de 31 de Agosto.”
Apresentaram então os recorrentes a fls. 167/176 as respectivas alegações, aceitando expressamente a delimitação do objecto operada pelo despacho de fls.
151, formulando as seguintes conclusões:
“1ª O objecto do presente recurso é restrito à apreciação da conformidade constitucional dos artigos 30º e 179º, nº 4 do EMFAR/90, e dos artigos 30º e
165º, nº 3 do EMFAR/99, quando interpretados no sentido de permitirem que um acto administrativo revogue um quadro pessoal aprovado por um diploma legal.
2ª Depois de afirmar que, face ao regime legal, “...a promoção ao posto de coronel do QEO passou a ser obrigatória, no caso de existência de vagas, a partir de 1/6/90, com o interregno de 1/1/93 a 31/12/95, imposto pelo artigo 3º, nº2 do Dec.-Lei nº 202/93, de 3/6”, o Supremo Tribunal Administrativo considerou que o despacho impugnado – o despacho do chefe do Estado Maior do exército que não aprovou qualquer efectivo em 2000 para o posto de Coronel do QEO – procedeu a uma revogação do quadro de efectivos do QEO, tendo essa revogação sido efectuada a coberto das normas cuja inconstitucionalidade se suscita no presente recurso. Ora,
3ª Em caso algum os preceitos legais em análise no presente recurso legitimam que um quadro de efectivos – no caso do QEO – criado por um diploma legal possa ser revogado através de um acto administrativo, tanto mais que o artº 179º/4 do EMFAR de 90 e o artº 165/3 do EMFAR de 1999 são inequívocos ao determinarem que
“Os quadros especiais são criados e extintos por decreto-lei...”, pelo que é verdadeiramente incompreensível como se pode sustentar que a revogação do quadro criado pelo diploma legal de 84 pode ser efectuada por um acto administrativo. Acresce que,
4ª O legislador criou o Quadro Especial de Oficiais , considerou que o mesmo compreendia 8 vagas no posto de coronel e determinou que, desde 1990, era obrigatório que o Exército deveria preencher a totalidade das vagas ali existentes, pelo que não é minimamente credível ou sustentável que o mesmo legislador, nos mesmos preceitos, tivesse autorizado que, por acto administrativo, se revogasse o quadro que ele próprio criara e assim se possibilitasse à Administração deixar de cumprir a imposição que lhe fora ordenada por via legislativa. Para além disso,
5ª A interpretação perfilhada no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo conduz à inconstitucionalidade dos citados preceitos do EMFAR por violação da reserva de lei enunciada na alínea t) do artº 165º da Constituição. Na verdade,
6ª A definição dos quadros e dos respectivos lugares é matéria que integra indiscutivelmente as bases do regime e âmbito da Função Pública, que estão subordinados à reserva de lei formal enunciada na alínea t) do nº 1 do artº 165º da Constituição (v. Liberal Fernandes, Autonomia Colectiva dos Trabalhadores da Administração. Crise do Modelo Clássico de Emprego Público, Coimbra, 1995, pág.
133, Carvalho Jordão, Caracterização Jurídico-Administrativa dos Funcionários e Agentes da Administração Regional e Autónoma, Revista de Direito Público, Ano I,
1986, nº 2 pág. 103). Ora,
7ª A imposição constitucional de uma reserva de lei veda que o legislador delegue a sua competência ou descarregue sobre a Administração as respectivas tarefas de normação, obrigando-o, em consequência, a disciplinar as matérias abrangidas na reserva com um determinado grau de intensidade (v., neste sentido, Vieira de Andrade, Autonomia regulamentar e reserva de lei, Estudos em Homenagem ao Profº Doutor Afonso Queiró, BFDUC, 1984, Vol. I pág. 8), pelo que os diplomas legais que disciplinem matéria incluída nas bases do regime e âmbito da Função Pública e não contenham uma determinação material suficiente, remetendo para o poder administrativo a disciplina fundamental dessas matérias, hão-de ser tidos por inconstitucionais. Consequentemente,
8ª Ao considerar que os preceitos do EMFAR legitimam que por acto administrativo se revogue um quadro de pessoal legalmente instituído, o Supremo Tribunal Administrativo interpretou tais preceitos num sentido que contende claramente com a reserva de lei enunciada no artº 165º/1/t) da Constituição. Por fim,
9ª Sustentar-se que a revogação do QEO pelo acto administrativo impugnado nos autos foi efectuada a coberto de uma lei que o permitia, é legitimar que uma lei autorize um acto de outra natureza a revogar as suas disposições, pelo que a interpretação perfilhada pelo Supremo Tribunal Administrativo sempre conduziria
à inconstitucionalidade dos preceitos do EMFAR em análise por violação do nº 6º do artº 112º da Lei Fundamental.”
1.3. Concluso o processo para acórdão, entendeu o ora relator, na previsão do não conhecimento do recurso, também quanto às normas que subsistiram após o despacho de fls. 151, notificar as partes dessa eventualidade, o que fez nos seguintes termos:
“1 – Através do despacho de fls. 151, em que se determinou o prosseguimento do processo com a fase de alegações, reduziu-se o respectivo objecto – a questão de constitucionalidade – ao disposto nos artigos 30º. e 179º., nº. 4, do DL nº.
34-A/90, de 24 de Janeiro (EMFAR/90), e 30º. e 165º., nº. 3, do DL nº. 236/99, de 25 de Junho (EMFAR/99). Significou isto que, segundo o entendimento do ora relator, a questão, suscitada pelos recorrentes, da inconstitucionalidade do artigo 10º., do DL nº. 296/84, de
31 de Agosto, não poderia constituir objecto do presente recurso, sendo certo que a decisão recorrida, o Acórdão do STA de 3/04/2003, de fls. 110/117, considerara (sufragando expressamente a posição do TCA, onde os aqui recorrentes haviam obtido vencimento) este mesmo artigo 10º. como tacitamente revogado.
Note-se que os recorrentes, nas respectivas alegações de fls.
165/176 (concretamente a fls. 167), aceitaram esta delimitação do objecto do recurso, produzindo alegações apenas quanto à questão de inconstitucionalidade que o despacho de fls. 151 considerou poder subsistir.
2. Assim sendo, restringido o objecto do recurso às normas dos artigos 30º. e
179º., nº. 4, do EMFAR/90 e 30º. e 165º., nº. 3, do EMFAR/99, verifica-se, através das respectivas alegações, que os recorrentes fazem assentar a inconstitucionalidade destes preceitos numa determinada interpretação, que atribuem à decisão recorrida, a saber: aquela que os interpreta “no sentido de permitirem que um acto administrativo – o Despacho do Chefe do Estado-Maior do Exército que procede à distribuição anual dos efectivos – revogue um quadro de pessoal aprovado por um diploma legal” (citação extraída de fls. 167, com correspondência na 1ª. Conclusão a fls. 172). Vistas as coisas nesta perspectiva – e é esta a perspectiva com base na qual os recorrentes suscitam a questão de inconstitucionalidade normativa – haverá que verificar se foi esta, efectivamente, a interpretação seguida pela decisão impugnada, pois só neste caso tal questão poderá conduzir a uma decisão sobre o respectivo mérito. Com efeito, a entender-se não ter sido esta a interpretação dos preceitos em causa seguida pela decisão recorrida, o resultado será o de não tomar conhecimento do recurso. Importa pois, para que uma decisão que vá neste sentido não constitua para os recorrentes «decisão surpresa», que lhes seja dada a possibilidade (cfr. artigo 3º., nº. 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 69º., da LTC) de tomarem posição sobre os argumentos em que se funda o provável não conhecimento do recurso, relativamente às normas que subsistiram após o despacho de fls. 151.
3 – Assenta o entendimento dos recorrentes no pressuposto de que o Acórdão recorrido considera que as normas em causa, designadamente o artigo 165º., nº.
3, do EMFAR/99 (o Estatuto em vigor ao tempo da prática do acto impugnado, o Despacho junto a fls. 12 e vº., datado de 1/01/2000), permitem que um acto administrativo, no caso um Despacho do Chefe do Estado-Maior do Exército, revogue uma disposição legal, que seria, neste caso, o artigo 2º., do DL nº.
296/84, de 31 de Agosto (de que resultaria, a existência, estabelecida previamente, através de um diploma legal, de determinado número de vagas para os postos de oficiais do QEO). Porém, lendo a decisão recorrida, designadamente (enquanto elemento interpretativo dela) à luz dos esclarecimentos que o STA acabou por prestar no Acórdão de fls. 137/139, que negou a aclaração pedida, o sentido que dela se colhe não é o indicado pelos recorrentes. Com efeito, o sentido da decisão (da interpretação normativa) do STA que sobressai é o seguinte: o artigo 30º., do DL nº. 236/99, de 25 de Junho (diploma preambular do EMFAR/99), ao estabelecer a revogação “(de) todas as disposições legais e regulamentares que contrariem o presente diploma (...)”, revogou o disposto no artigo 2º., do DL nº. 296/84, pois o EMFAR/99 contém uma disposição contraditória com este preceito, que é o artigo 165º., nº. 3 (“Os quadros especiais são criados e extintos por decreto-lei, sob proposta do CEM do respectivo ramo, sendo os seus efectivos distribuídos por categorias e postos, aprovados por despacho do CEM de cada ramo, ouvido o respectivo conselho superior”). A confirmação de ser esta a interpretação adoptada pela decisão recorrida, e não a pressuposta pelos recorrentes, reside na circunstância de a mesma decisão indicar como procedentes as Conclusões 4ª., 5º. e 6ª. das alegações do Chefe do Estado-Maior do Exército (v. fls. 104), onde a interpretação proposta é precisamente a que antes se indicou. Sendo este último o sentido interpretativo adoptado pela decisão recorrida e sendo ele notoriamente diverso daquele com base no qual os recorrentes construíram a sua questão de inconstitucionalidade, não se poderá, por falta de pressupostos, conhecer do objecto de recurso, também nesta parte (a que subsistiu após o despacho de fls. 151).
4. Assim, para o efeito do disposto no artigo 704º., nº. 1, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 69º., da LTC, ficam as partes notificadas de que o entendimento do ora relator é o de que não pode conhecer-se do objecto do recurso, por as normas em causa não terem sido aplicadas com o sentido indicado pelos aqui recorrentes.”
A este respeito apenas os recorrentes entenderam tomar posição, fazendo-o nos termos constantes de fls. 186/189, defendendo, tal como já resultava das respectivas alegações de fls. 165/176, que à decisão do STA aqui recorrida subjaz um entendimento dos preceitos citados dos EMFAR de 1990 e 1999 que permite que um acto administrativo (o Despacho do Chefe do Estado-Maior do Exército) revogue um quadro de pessoal aprovado por um diploma legal.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Reporta-se o presente recurso, tal qual decorre do respectivo requerimento de interposição de fls. 142/145, a dois referenciais normativos : o constituído pelo artigo 10º, do DL nº 296/84, de 31 de Agosto; e o que os recorrentes designam como integrado pelos artigos 30º e 179º, nº 4, do EMFAR/90, e pelos artigos 30º e 165º; nº 3, do EMFAR/99.
Como se viu ambas as situações colocam problemas de conhecimento do objecto do recurso, que originaram os despachos interlocutórios de fls. 151 e 180/183, questões essas que importará tratar, agora, em termos decisórios.
2.1. Como se decidiu no despacho de fls. 151, transitado em julgado, a norma do artigo 10º do DL nº 296/94, não foi aplicada pela decisão recorrida, o Acórdão do STA de fls. 110/117, proferido na sequência do recurso interposto pelo Chefe do Estado- Maior do Exército.
2.2. Subsiste, assim, a questão subsequentemente tratada no despacho de fls.
180/183, relativamente à qual os recorrentes expressam, a fls. 186/189, um entendimento divergente daquele que lhes foi adiantado como passível de ser adoptado nesta decisão.
Tomando como ponto de partida o artigo 2º do DL nº 296/84 (que prevê oito vagas no posto de Coronel, na “constituição do QEO”) e constatando que o Despacho do Chefe do Estado-Maior do Exército, contenciosamente impugnado neste processo, não fixou qualquer vaga, para o ano de 2000, nesse posto (ou seja excluiu, nesse ano, qualquer promoção de Tenentes-Coronéis ao posto de Coronel), constatando estes dados, dizíamos, emergem duas possibilidades de enquadramento normativo-interpretativo desta consequência. A primeira, que é a indicada pelos recorrentes como objecto do recurso, parte do princípio que a referência da decisão aos artigos 30º e 179º, nº 4 do EMFAR/90, e 30º e 165º, nº 3 do EMFAR/99, pressupõe uma interpretação destes que aceita que um acto administrativo possa revogar, não a preenchendo, a parcela correspondente a determinado posto, de um quadro de oficiais constante de um diploma legal. Contrariamente, a outra possibilidade de enquadramento da decisão recorrida, assenta no entendimento de que as normas citadas dos dois EMFAR (designadamente as do EMFAR/99, em vigor ao tempo da prática do acto impugnado) conduziram à revogação implícita do artigo 2º do DL nº 296/84, e, por isso, à possibilidade de o Chefe do Estado-Maior de determinado ramo, ao abrigo do nº 3 do artigo 165º do EMFAR/99, estabelecer, ou não, vagas num determinado posto de um quadro especial, como é o QEO (note-se que esse artigo 165º, nº 3, prescreve que: “Os quadros especiais são criados e extintos por decreto-lei, sob proposta do CEM do respectivo ramo, sendo os seus efectivos distribuídos por categorias e postos, aprovados por despacho do CEM de cada ramo, ouvido o respectivo conselho superior”).
Os recorrentes, na sequência do Acórdão de fls. 110/117, configuraram como questão de inconstitucionalidade normativa o primeiro enquadramento interpretativo acima referido. Não obstante, como já se afirmou no despacho de fls. 180/183, lendo a decisão recorrida, designadamente à luz do esclarecimento que sobre o sentido dela acabou por prestar o Acórdão de fls. 137/139, torna-se claro que, não obstante existirem trechos dessa decisão que, isoladamente, podem parecer equívocos (será, eventualmente, esse o caso de alguma citação extraída do Acórdão pelos recorrentes, quando lida fora do seu contexto), o que verdadeiramente resulta dessa decisão é que se considerou que o quadro, com vagas pré-fixadas para os diversos postos do QEO, constante do artigo 2º do DL nº 296/84, fora revogado pelo EMFAR/99 (note-se que este entendimento era o defendido pelo Chefe do Estado-Maior do Exército nas respectivas alegações de recurso a fls. 104, entendimento este ao qual o Acórdão recorrido aderiu expressamente, como se vê a fls. 117).
Significa isto, enfim, que a decisão recorrida, não tendo considerado que as normas que aplicou do EMFAR/99 autorizassem que um Despacho do Chefe do Estado-Maior do Exército revogasse um quadro constante de um diploma legal (o que conduziria, no entendimento dos recorrentes, a que essas normas adquirissem um sentido ofensivo do actual artigo 112º, nº 6 da CRP, anterior artigo 115º, nº
5), significa isto, dizíamos, que tal decisão não aplicou essas normas com o sentido interpretativo pressuposto pelos recorrentes. A consequência daqui decorrente para o presente recurso é, obviamente, a impossibilidade do seu conhecimento.
III – DECISÃO
3. Termos em que se decide não tomar conhecimento do presente recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze) unidades de conta.
Lisboa, 1 de Junho de 2004
Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida