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Proc. 632/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. O arguido A. pretendeu recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70° da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Dezembro de 2003 que confirmou o aresto da Relação de Lisboa que o condenara, para além do mais, na pena única de
19 anos de prisão.
Alega que o Supremo Tribunal de Justiça se não pronunciou, na decisão recorrida,
“sobre a possibilidade de o juiz poder discutir a bondade do juízo pericial
(artigo 127° do Código de Processo Penal)” o que, em seu entender, constitui
“violação do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa”. No seu requerimento invoca ainda o seguinte:
Nas várias fases de Recurso (nas peças processuais entregues junto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e do Supremo Tribunal de Justiça) suscitou o requerente a (i)legalidade da decisão da primeira instância que: Pretende contrariar os pareceres técnicos juntos aos autos, designadamente os Relatórios do Laboratório de Polícia Científica junto da Polícia Judiciária e do Instituto de Medicina Legal, sem fundamentar, o que no entender do recorrente estava vedado, por ser ilegal e inconstitucional a interpretação do artigo 127° do CPP no sentido de que a livre apreciação da prova aí consagrada, permite ao julgador discutir a bondade do juízo pericial (previsto no artigo 163° do CPP).
É ilegal a decisão assim proferida justamente porque a tecnicidade inerente ao juízo pericial se presume escapar aos seus conhecimentos. Além de ilegal (em sentido estrito) é ainda inconstitucional por violar o artigo
32° da Constituição da República Portuguesa, pois, se a interpretação for em sentido contrário ao presente recurso, mesmo existindo um parecer técnico de entidade imparcial e idónea (como é o Instituto de Medicina Legal e o Laboratório de Polícia Cientifica) que seja favorável ao arguido(s), qualquer julgador - independentemente dos seus conhecimentos técnicos e científicos - pode ignorar o mesmo ou interpretá-lo em sentido diverso ao das suas conclusões, como foi o caso. Como é sabido e consabido vigora em processo penal a regra que a prova é apreciada livremente pelo tribunal (art.º 127° do CPPenal) mas este princípio não é absoluto, já que a própria lei lhe estabelece excepções. E uma delas é justamente a que se refere à prova pericial (art.º 163° do C. P. Penal). Resulta muito claro do art.º 163° do CPPenal que, diversamente do que sucede com os factos que servem de fundamento ao juízo do perito (cuja realidade compete ao juiz apreciar e julgar), o juiz não pode por regra discutir a bondade do juízo pericial, justamente porque a tecnicidade inerente ao mesmo se presume escapar aos seus conhecimentos. A defesa de alguém que se presume inocente até prova em contrário, necessita de segurança jurídica. Segurança que é trazida pelos pareceres técnicos e peritagens elaborados por entidades imparciais e idóneas. Se a defesa de um arguido apenas pode contrariar uma peritagem ou parecer técnico com outro parecer de entidade habilitada e idónea, a interpretação de que o artigo 127° permite ao julgador discutir a bondade do juízo pericial - mesmo sem conhecimento cientifico para o fazer- é ilegal e inconstitucional por violar o artigo 32° da Constituição da República Portuguesa. Pelo exposto, requer-se a declaração de ilegalidade e inconstitucionalidade - tal como refere o n. 2 do artigo 75º-A da Lei 28/82 de 15 de Novembro - da referida interpretação do artigo 127º do Código de Processo Penal, requerendo-se que, consequentemente sejam remetidos os autos à primeira instância para que a prova pericial seja reapreciada conformidade com a decisão a proferir pelo Venerando Tribunal Constitucional.
O recurso não foi, todavia, admitido por despacho do seguinte teor:
“No acórdão do STJ não se aplicou nem interpretou o falado artigo 127º do Código de Processo Penal, nem qualquer outro normativo cuja inconstitucionalidade haja sido arguida em tempo útil pelo requerente (...), razão pela qual se indefere o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 76º da Lei 28/82.”
É desta decisão que o interessado agora reclama, conforme permite o artigo 76º da LTC, alegando:
(...) vem, ao abrigo do n. 4 do artigo 76° da Lei n. 28/82 de 15 de Novembro, requerer a V.Ex.as que se dignem revogar o douto Despacho e proferir outro que admita o recurso por obedecer aos requisitos do artigo 75º-A (Interposição do recurso) do citado diploma legal. Senão vejamos. O ora requerente recorreu da pena que o condenou na pena de dezanove anos de prisão efectiva e, considerando que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, não se pronunciou sobre a possibilidade de o juiz poder discutir a bondade do juízo pericial, (art.º 127° do C. P. Penal), considerou que essa omissão constitui violação do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa.
(...) referindo expressamente: Da norma constitucional violada: Da ilegalidade: Nas várias fases de Recurso (Nas peças processuais entregues junto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e do Supremo Tribunal de Justiça) suscitou o requerente a (i)legalidade da decisão da primeira instância que: Pretende-se contrariar os pareceres técnicos juntos aos autos, designadamente os Relatórios do Laboratório de Polícia Científica junto da Polícia Judiciária e do Instituto de Medicina Legal, sem fundamentar, o que no entender do recorrente estava vedado, por ser ilegal e inconstitucional a interpretação do artigo 127° do CP.P. no sentido de que, a livre apreciação da prova aí consagrada, permite ao julgador discutir a bondade do juízo pericial (previsto no artigo 163° do C.P.P.).
É ilegal a decisão assim proferida justamente porque a tecnicidade inerente ao juízo pericial se presume escapar aos seus conhecimentos. Além de ilegal (em sentido estrito) é ainda inconstitucional por violar o artigo
32° da Constituição da República Portuguesa, pois, se interpretação for em sentido contrário ao presente recurso, mesmo existindo um parecer técnico de entidade imparcial e idónea (como é o Instituto de Medicina Legal e o Laboratório de Polícia Cientifica) que seja favorável ao arguido(s), qualquer julgador - independentemente dos seus conhecimentos técnicos e científicos - pode ignorar o mesmo ou interpretá-lo em sentido diverso ao das suas conclusões, como foi o caso. Como é sabido e consabido vigora em processo penal a regra que a prova é apreciada livremente pelo tribunal (art.º 127° do C. P. Penal) mas este princípio não é absoluto, já que a própria lei lhe estabelece excepções. E uma delas é justamente a que se refere à prova pericial (art.º 163° do C. P. Penal). Resulta muito claro do art.º 163° do C.P. Penal que, diversamente do que sucede com os factos que servem de fundamento ao juízo do perito (cuja realidade compete ao juiz apreciar e julgar), o juiz não pode por regra discutir a bondade do juízo pericial, justamente porque a tecnicidade inerente ao mesmo se presume escapar aos seus conhecimentos. A defesa de alguém que se presume inocente até prova em contrário, necessita de segurança jurídica. Segurança que é trazida pelos pareceres técnicos e peritagens elaborados por entidades imparciais e idóneas. Se a defesa de um arguido apenas pode contrariar uma peritagem ou parecer técnico com outro parecer de entidade habilitada e idónea, a interpretação de que o artigo 127° permite ao julgador discutir a bondade do juízo pericial - mesmo sem conhecimento cientifico para o fazer - é ilegal e inconstitucional por violar o artigo 32° da Constituição da República Portuguesa. Pelo exposto, requereu a declaração de ilegalidade e inconstitucionalidade - tal como refere o n. 2 do artigo 75º-A da Lei 28/82 de 15 de Novembro - da referida interpretação do artigo 127º do Código de Processo Penal, requerendo que, consequentemente, fossem remetidos os autos à primeira instância para que a prova pericial seja reapreciada em conformidade com a decisão que viesse a ser proferida pelo Venerando Tribunal Constitucional. Pese embora terem sido cumpridos (só agora depois de reformulado, admite-se) todos os requisitos do artigo 75º-A (Interposição do recurso) da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, mesmo assim o Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso. Não assiste, salvo opinião contrária, desta vez, razão ao Supremo Tribunal de Justiça, pelo que se requer, ao abrigo do disposto no n. 4 do artigo 76° da Lei n.o 28/82 de 15 de Novembro, ao Venerando Tribunal Constitucional que revogue a decisão admitindo o presente recurso.
O representante do Ministério Público neste Tribunal entende que a reclamação “é manifestamente infundada, já que o reclamante não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de fundar o recurso de fiscalização concreta interposto com base na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei 28/82.”
2. Cumpre decidir.
O reclamante pretende interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo
70° da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Dezembro de 2003. Nesse tipo de recurso, o respectivo objecto é constituído por norma aplicada na decisão recorrida como sua ratio decidendi, não obstante ter sido anteriormente acusada de inconstitucional - artigos 70º n. 1 alínea b) e 72º n. 2 da LTC.
Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, não lhe cabe apreciar, neste tipo de recurso, a conformidade constitucional da decisão recorrida em si mesmo considerada (v.g., Acórdãos 612/94, 634/94 e 20/96, in DR, II série, de 11 de Janeiro de 1995, de 31 de Janeiro de 1995 e de 16 de Maio de
1996).
Ora o reclamante pretende, através do recurso em análise, questionar a própria decisão recorrida, embora ligada a uma determinada interpretação do artigo 127º do Código de Processo Penal, conforme transparece do respectivo requerimento quando afirma pretender sindicar a não pronúncia do acórdão “sobre a possibilidade de o juiz poder discutir a bondade do juízo pericial, (art.º 127° do C. P. Penal)”, por considerar “que essa omissão constitui violação do artigo
32° da Constituição”.
Esta errada perspectiva do recurso de constitucionalidade previsto na aludida alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC conduziu o recorrente a impugnar decisão que não aplicou a norma alegadamente inconstitucional como, aliás, se detectou no despacho ora reclamado. De resto, na reclamação não se contraria o argumento essencial do despacho em crise, pois nada se alega quanto à não aplicação, na decisão recorrida, da norma alegadamente desconforme. E a verdade é que, não sendo a norma acusada de inconstitucional aplicada na decisão recorrida, nenhum efeito teria a eventual procedência do recurso, uma vez que se mantinha inalterado o verdadeiro fundamento do aresto sob recurso.
3. Deve, pois, concluir-se que não ocorrem os requisitos do recurso interposto, pelo que é de manter a decisão de o não admitir. Improcede, por isso, a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 9 de Junho de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos