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Processo n.º 557/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Notificada do Acórdão n.º 473/2004, que indeferiu reclamação para a conferência de decisão sumária de não conhecimento de recurso de constitucionalidade, reclamação essa para que o relator oficiosamente convolara pedido de reforma da mesma decisão sumária, apresentou a recorrente A., requerimento de arguição de nulidade, do seguinte teor:
“1. Violação do princípio legal e constitucional do dispositivo.
1.1. É doutrina corrente e pacífica que o princípio dispositivo stricto sensu se traduz na liberdade de decisão sobre a instauração do processo, sobre a conformação do seu objecto e das partes na causa, e sobre o termo do processo (cf., por todos, Prof. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais, à Luz do Código Revisto, p. 122). O que vale também para as sucessivas fases processuais do mesmo. Tal princípio, além de expressamente consagrado nos artigos 264.°, 660.°, n.º 2, 2.ª parte, e 664.° do Código de Processo Civil (CPC, doravante) como tal, encontra-se implícito nas normas do artigo 3.°, do mesmo diploma legal, ao proibirem que o tribunal:
a) resolva o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida;
b) decida questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
1.2. O princípio invocado tem assento constitucional: decorre dos fundamentos da República baseada na dignidade da pessoa humana, e empenhada na construção de uma sociedade livre, do princípio do Estado de direito democrático baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, e na delimitação constitucional da função jurisdicional (cf. artigos 1.º, 2.° e 202.° da Constituição). Neste sentido, o voto do Ilustre Conselheiro Messias Bento, in Acórdão n.º 934/96, DR, II Série, de 10 de Dezembro de 1996, que, com a devida vénia, se transcreve: «Num Estado baseado na dignidade da pessoa humana (cf. artigo 1.º da Constituição) o direito de acção processual civil há-de, é certo, continuar a ter raiz vincadamente subjectiva, a ser personalista – que o mesmo é dizer que os seus alicerces devem continuar assentes no princípio dispositivo. De facto, numa ordem jurídica que deve estar ao serviço do homem e numa área em que o titular do direito pode, em regra, dispor dele, a iniciativa e o impulso processual hão-de continuar a pertencer às partes. E isso, não apenas para efeito de serem elas a desencadear a intervenção do Tribunal mas também para o de serem elas igualmente a modelar o thema decidendum com o pedido e a defesa, e bem assim com os factos que carrearam para o processo.»
Ora,
1.3. Constitui acto objectivo, inequívoco e insofismável, que o requerimento da reclamante sobre que foram prolatados o acórdão reclamado e o despacho que o integra, não consubstancia, nem na forma nem no conteúdo, uma reclamação para a conferência. Muito menos no seu impulso.
Objectivamente,
a) quanto à forma, trata-se de um requerimento dirigido ao Ex.mo Juiz Conselheiro Relator, expressamente deduzido ao abrigo do artigo 669.°, n.°
2, alínea b), do CPC, com evidente exclusão da invocação da faculdade prevista no artigo 78.°-A, n.º 3, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro;
b) quanto ao conteúdo, nele se refere apenas o facto de a decisão sumária reclamada não ter tomado em consideração a questão de inconstitucionalidade, suscitada na reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, da norma por este depois aplicada na decisão recorrida, do artigo 679.° do CPC segundo a qual não existe qualquer obrigação vinculada do juiz de 1.ª instância no envio dos autos com vista ao Ministério Público para efeito do disposto no artigo 242.º, n.º 1, alínea b), do Código do Processo Penal (CPP), requerido pela parte, e que tal norma – extraída do artigo 679.° do CPC – confere ao juiz um poder discricionário para decidir sobre tal requerimento.
1.4. É óbvio que se a reclamante tivesse querido reclamar para a conferência, teria dirigido a sua pretensão aos Ex.mos Juízes Conselheiros, teria expressamente dito que o fazia para essa instância, e teria invocado a faculdade prevista no artigo 78.°-A, n.° 3, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro; e o conteúdo do seu requerimento teria sido necessariamente outro: teria incluído referência, designadamente, às questões que o acórdão reclamado considerou terem sido suprimidas e omitidas.
Em requerimento em que se alega lapso manifesto na não tomada em consideração de elementos que constam do processo, e que, só por si, implicam necessariamente decisão diversa da proferida, não tem cabimento legal a invocação de outros vícios de que a decisão reclamada enferme.
Em reclamação para a conferência, sim.
1.5. Não tendo a reclamante deduzido nem formal nem substancialmente reclamação para a conferência, e tendo expressado intenção em contrário, afigura-se evidente que não podia esta conhecer de peça processual juridicamente inexistente, por absoluta falta de objecto, e por falta do impulso processual legítimo.
2. Violação da norma do artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.° 28/82, de
15 de Novembro.
2.1. O preceito em causa não prescreve que, da decisão sumária do relator, só pode reclamar-se para a conferência. Nem a reconstituição do pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que ele foi elaborado, e as condições específicas do tempo em que foi aplicado, impõe que dele se extraia tal norma. Com efeito,
2.2. A unidade do sistema jurídico impõe que se admita reclamação para o próprio autor da decisão sumária por ambiguidade e/ou obscuridade, e reforma quanto a custas, ao abrigo do mesmo artigo 669.° do CPC, e que se argua a sua nulidade por violação, designadamente, das normas do artigo 660.°, n.° 2, e 704.°, n.º 1, do mesmo diploma legal.
Também a isso conduz a norma do artigo 69.° da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro.
2.3. Por outro lado, o intérprete tem de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Se o legislador tivesse querido restringir à reclamação para a conferência toda e qualquer forma de sindicar a decisão sumária do relator, tê-lo-ia dito expressamente ou mediante utilização de qualquer outra forma linguística apropriada.
2.4. O preceito legal em causa foi introduzido na Lei n.° 28/82, de
15 de Novembro, na reforma da Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro. Já a esse tempo vigorava a invocada norma do artigo 669.°, n.º 2, alínea b), do CPC. Se o legislador tivesse querido afastar a sua aplicabilidade ao processo de apreciação concreta de constitucionalidade, ter-se-ia exprimido de outro modo.
2.5. Por outro lado, ainda, a ratio da invocada norma do artigo
669.°, n.º 2, alínea b), do CPC, proclamada para o processo civil, no preâmbulo do Decreto-Lei n.° 329-A/95, de 12 de Dezembro, afigura-se ser, do ponto de vista da justiça constitucional, ainda mais pertinente. É que os efeitos de uma não tomada em consideração de elementos que constam dos autos de recurso para o Tribunal Constitucional, integrante da suscitada questão de constitucionalidade projectam-se sempre, negativamente, sobre um direito fundamental constitucionalmente assumido: o direito à constitucionalidade das normas aplicadas em decisões jurisdicionais (cf. artigos 20.°, n.º 1, 202.°, n.° 2, e
204.° da Constituição).
2.6. A norma do artigo 78.°-A, n.º 3, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, só é conforme à Constituição quando interpretada no sentido de outorgar um direito sem prejuízo de outros vigentes na ordem jurídica para garantia do acesso ao direito constante de preceito constitucional directamente aplicável.
A interpretação e aplicação feitas de tal preceito, no acórdão reclamado, não é conforme às normas e princípios constitucionais supra referidos.
2.7. A norma ínsita no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.° 28/82, de
15.11, conforme à Constituição, foi, pois, violada, com a submissão à conferência, sem o impulso da recorrente, da reclamação deduzida ao abrigo e nos termos do artigo 669.°, n.º 2, alínea b), do CPC.
3. Violação das normas dos artigos 70.°, n.º 3, da Lei n.° 28/82, de
15 de Novembro, e 10.° do Código Civil.
3.1. No despacho integrante do acórdão ora reclamado, invoca-se o artigo 70.°, n.º 3, supra, para legitimar a substituição do impulso processual da recorrente, pelo do Ex.mo Relator. O que se faz por via da equiparação com o que se encontra consignado no dito artigo 70.°.
3.2. Salvo o devido respeito, a lei não consente tal equiparação. Esta só seria legalmente possível por via de integração de eventual lacuna da lei. Mas tal lacuna não existe. Com efeito, por um lado, a lei estabelece expressamente que o pedido de reforma da sentença/despacho só pode fazer-se na própria alegação quando ela/ele admita recurso (cf. artigo 669.°, n.° 3, do CPC) – não no requerimento de interposição do recurso: é na alegação subsequente deduzida perante o tribunal superior; por outro lado, «recurso», «alegação» e
«reclamação» são realidades dogmáticas bem distintas, que o legislador bem conhece. Pelo que tem de presumir-se que, quando este os usou, soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
A reclamação efectivamente deduzida é caso previsto na lei e nela expressamente regulado.
3.3. Mas ainda que o não fosse, é evidente inexistir analogia entre reclamação para a conferência e reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, nos casos de não admissão ou de retenção do recurso. Esta equiparação legal é feita com a finalidade específica de permitir o recurso de apreciação concreta de constitucionalidade. Razão que não existe na reclamação para a conferência nas secções do Tribunal Constitucional. Pelo que, ainda que o caso fosse omisso, sempre se teria de reconhecer não procederem as razões justificativas da regulamentação prevista no dito artigo 70.°, n.º 3.
3.4. E também inexiste analogia entre as reclamações dos despachos dos juízes relatores para a conferência, para efeito de posterior recurso para o Tribunal Constitucional, e as reclamações dos juízes relatores neste Alto Tribunal, para a respectiva conferência, pois que, também aí, não procedem as razões justificativas da regulamentação prevista no invocado artigo 70.°, n.º
3. A reclamação para a conferência no Tribunal Constitucional não visa assegurar a interposição de recurso de constitucionalidade.
3.5. Assim, face às normas do artigo 10.° do Código Civil, a equiparação feita mediante invocação das normas do artigo 70.°, n.º 3, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, viola aquelas, e estas por terem sido aplicadas com uma dimensão normativa que a unidade do sistema jurídico exclui.
4. Violação das normas dos artigos 688.°, n.º 5, do CPC, e 10.° e
11.° do Código Civil.
4.1 No despacho integrante do acórdão ora reclamado faz-se aplicação da norma do artigo 688.°, n.º 5, do CPC, para legitimar a substituição do impulso processual da recorrente, pelo do Ex.mo Relator. Para o efeito, invoca-se «semelhança» com a regulamentação do citado artigo 688.°. Mais uma vez, parte-se do princípio que existe lacuna da lei a impor integração. Mas, salvo o devido respeito, tal lacuna não existe, como se afigura evidente e já ter ficado demonstrado.
4.2. Por outro lado, ainda que lacuna houvesse, ela não poderia ser integrada nos termos do n.º 1 do artigo 10.° do Código Civil, por analogia com a norma do artigo 688.°, n.º 5. É que esta tem natureza excepcional, por contrariar os princípios gerais da responsabilidade processual (sibi imputet) e da preclusão. Atento o disposto no artigo 11.° do Código Civil, sempre estaria vedada aplicação da norma do invocado artigo 688.°, por «semelhança».
4.3. A aplicação do artigo 688.°, n.° 5, do CPC, com sentido e alcance que ele não tem nem pode ter, implica, pois, a violação da respectiva norma, e das supra referidas do Código Civil.
5. Violação das normas dos artigos 700.°, n.° 3, do CPC, e 10.° do Código Civil.
5.1. No despacho integrante do acórdão ora reclamado, é também invocado o artigo 700.°, n.º 3, do CPC, para legitimar a substituição do impulso processual da recorrente pelo do Ex.mo Relator.
Salvo o devido respeito, a invocada norma do referido artigo 700.° não é aplicável ao caso.
Com efeito,
5.2. Inexiste lacuna a integrar. A não consideração de elementos constantes do processo relativos à suscitada questão de inconstitucionalidade da norma havida como contida no artigo 679.° do CPC encontra-se expressamente regulada no artigo 669.°, n.ºs 2, alínea b), e 3, do CPC.
5.3. Mas, ainda que ela existisse, não poderia ser integrada nos termos previstos no artigo 10.°, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, pois que a regulamentação do artigo 700.°, n.º 3, do CPC visa assegurar a obtenção de uma decisão passível de recurso para tribunal superior, em virtude de a decisão do relator o não ser, enquanto na reclamação para a conferência de decisão sumária proferida ao abrigo do artigo 78.°-A, n.º 1, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, tal finalidade inexiste. Não procedem, pois, as razões justificativas da regulamentação prevista no artigo 700.°, n.º 3, do CPC, no caso em que a reclamação visa o suprimento de uma omissão de consideração de elementos constantes do processo, que, só por si, implicam necessariamente decisão diversa da proferida.
6. Violação das normas do artigo 660.°, n.° 2, do CPC.
6.1.O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Ora, a questão posta ao Ex.mo Relator não foi por ele resolvida: foi remetida para a conferência.
6.2. Impede a lei dizer-se que a «decisão oficiosa» de submeter à conferência a questão posta ao Ex.mo Relator a resolve, porque, por falta do indispensável impulso processual legítimo, a conferência não podia dela ocupar-se, ex vi artigo 660.°, n.º 2, 2.ª parte, do CPC.
7. Violação da norma do artigo 78.°-A, n.º 1, da Lei n.° 28/82, de
15 de Novembro, interpretada em conjugação com as dos artigos 3.°, n.° 3, e
704.°, n.º 1, do CPC.
7.1. Segundo o n.° 1 do artigo 78.°-A supra, se o relator entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso, profere decisão sumária. Mas – é evidente – o entendimento constante da previsão de tal preceito, não pode ser consumado com violação do princípio legal e constitucional do contraditório prévio consignado nos artigos 3.°, n.º 3, e 704.°, n.º 1, do CPC.
7.2. Do facto de aquele preceito não o dizer expressamente, não pode extrair-se prescrição normativa em contrário. É que, aqui também, a interpretação jurídica não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico. Ora, face ao disposto nos citados artigos 3.°, n.º 3, e
704.°, n.° 1, e no artigo 69.° da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, e a natureza fundamental/constitucional do direito/garantia do contraditório, não carecia o legislador de inserir no dito artigo 78.°-A qualquer preceito que visasse assegurar a sua concretização.
7.3. Na redacção dada ao mesmo artigo 78.°-A pela Lei n.° 85/89, de
7 de Setembro, prescrevia-se, expressamente, que o relator tinha de mandar ouvir cada uma das partes se entendesse que não podia conhecer-se do objecto do recurso. A justificação para a inserção de tal norma no referido preceito, era apenas a concessão de um prazo mais dilatado do que o consignado no artigo
704.°, n.° 1, do CPC, na redacção de então (cinco dias em vez das avaras quarenta e oito horas deste). Tendo estas sido ampliadas para 10 dias, e não fazendo sentido que a relevância axiológica das questões constitucionais merecesse uma ponderação menos extensa, deixou de ser necessário constar do artigo 78.°-A da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, a norma/garantia do contraditório prévio: ela vigora em toda a ordem jurídica em situações paralelas.
7.4. A reclamação deduzida ao abrigo do artigo 669.°, n.° 2, alínea b), do CPC, consome a arguição de nulidade processual incorrida por violação da garantia legal e constitucional do contraditório prévio de que enferma a decisão sumária reclamada: suprido o lapso manifesto – como então se entendeu ter ocorrido na decisão sumária – ficaria, eventualmente, suprida a nulidade processual cometida com a omissão do contraditório prévio.
7.5. O acórdão ora sindicado, ferido dos vícios referidos nos números anteriores, encontra-se também contaminado pelo não suprimento prévio da violação do contraditório prévio imposto pela ordem jurídico-constitucional vigente.
8. Violação da norma do artigo 669.°, n.º 2, alínea b), do CPC.
8.1. A submissão à conferência, da reclamação deduzida perante o Ex.mo Juiz Relator, ao abrigo e nos termos do artigo 669.°, n.º 2, alínea b), do CPC, consubstancia violação da respectiva norma: é que a não tomada em consideração dos elementos constantes do processo sobre a adequadamente suscitada questão da inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 679.° do CPC, aplicada na decisão recorrida, tinha, por imposição legal, e salvo o devido respeito por opinião em contrário, de ser suprida por aquele Ilustre Magistrado. Mas,
8.2. Também, o ora sindicado acórdão não tomou em consideração a violação de tal dever, nem os alegados elementos constantes do processo que, só por si, implicam necessariamente decisão diversa da nele proferida: os relativos à norma aplicada na decisão recorrida extraída do artigo 679.° do CPC, já devidamente identificada na reclamação para o Ex.mo Juiz Relator.
O que acarreta tripla violação do direito fundamental de efectivo acesso à justiça constitucional.
9. Violação das normas conjugadas dos artigos 20.°, n.º 1, 202.°, n.º 2, e 221.° da Constituição.
9.1 A questão posta na reclamação deduzida ao abrigo e nos termos do artigo 669.°, n.° 2, alínea b), do CPC, só passível de resolução pelo Ex.mo Relator, pelas razões de facto e de direito acima expostas, é, num primeiro plano, uma questão processual: o direito à consideração dos elementos constantes do processo, relativos à questão de inconstitucionalidade adequadamente suscitada da norma do artigo 679.° do CPC, integrante do direito de acesso ao Tribunal Constitucional.
9.2. Como questão processual, ela não foi resolvida por aquele Ilustre Magistrado, nem essa omissão foi apreciada pela Conferência.
9.3. Em segundo plano, a questão posta ao abrigo e nos termos da referida norma do artigo 669.° do CPC é uma questão de mérito a conhecer após reforma da decisão sumária reclamada. Apesar de não ter sido requerido que a Conferência sobre esta se pronunciasse, bem podia ter acontecido que tal conhecimento tivesse ocorrido, atenta a invocada, a fls. 12 do acórdão sindicado, «preferência por decisões de mérito em detrimento das de mera forma». Acontece, porém, que também a questão de mérito não foi apreciada no acórdão sindicado, em que se voltou a não considerar os elementos que a integram, constantes do processo.
9.4. A incumbência constitucional de os tribunais, na administração da justiça, assegurarem a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, extensiva, na administração da justiça em matérias de natureza jurídico-constituciona1, ao Tribunal Constitucional, impõe que o Ex.mo Juiz Relator e a Conferência tomem em consideração os elementos constantes do processo relativos à inconstitucionalidade da norma do artigo 679.° do CPC, com o sentido aplicado na decisão recorrida, e, posteriormente, após alegações, conheçam do respectivo mérito.
Não se efectiva tal direito e interesse legalmente protegido, se tais omissões subsistirem – antes se violam as normas legais e constitucionais supra referidas.
10. Consequências legais das infracções supra referidas.
10.1. Inexiste, juridicamente, reclamação para a conferência.
10.2. Nenhuma das normas legais invocadas no despacho que integra o acórdão reclamado, acima apreciadas, legitima a submissão da reclamação deduzida ao abrigo e nos termos do artigo 669.°, n.º 2, alínea b), do CPC, à conferência. O impulso processual legítimo é insuprível oficiosamente.
Pelo que,
10.3. Não podia a conferência ter conhecido das questões sobre que se pronunciou. Tendo-o feito, o respectivo acórdão ficou ferido da nulidade do artigo 668.°, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do CPC.
10.4. O acórdão reclamado, tendo confirmado a decisão sumária proferida com violação da garantia legal e constitucional da audição prévia consignada nos artigos 3.°, n.º 3, e 704.°, n.º 1, do CPC, e implícita na norma do n.º 1 do artigo 78.°-A da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, impeditiva da sua prolação, encontra-se ferido da nulidade da supra referida norma do artigo 668.° do CPC.
10.5. Tendo-se a conferência assumido como habilitada a conhecer de requerimento que não lhe foi dirigido, não é, nem na sua forma nem no seu conteúdo, nem sua origem, reclamação para a conferência, mas deixado de apreciar, oficiosamente, a questão processual suscitada perante o Ex.mo Relator, de não consideração de elementos constantes do processo relativos à questão adequadamente suscitada da inconstitucionalidade da norma do artigo
679.° do CPC, efectivamente aplicada na decisão recorrida, cujo conhecimento implica, só por si, necessariamente, decisão diversa da proferida, e a questão de mérito respectiva, encontra-se ferido da nulidade da 1.ª parte da alínea d) do n.° 1 do artigo 668.° do CPC.
11. Suprimento da nulidade arguida.
11.1. O suprimento da(s) nulidade(s) arguida(s) implica, necessariamente, a consideração, pelo Ex.mo Relator, dos elementos constantes do processo relativos à norma havida como contida no artigo 679.° do CPC, cuja invocação se encontra feita na reclamação deduzida ao abrigo e nos termos do artigo 669.°, n.º 2, alínea b), do CPC, e se pede, com a devida vénia, seja aqui havida por reproduzida.
11.2. O mesmo suprimento implica, também, necessariamente, notificação da recorrente para efeito do disposto no artigo 79.° da Lei n.°
28/82, de 15 de Novembro.
11.3. É o que, com a devida vénia, se requer para que se cumpram as disposições legais e constitucionais supra referidas, e se assegure, efectivamente, os direitos e interesses legalmente protegidos da recorrente, ora reclamante.”
Notificados os recorridos desta arguição de nulidade, responderam o B., sustentando a sua improcedência por através dela a recorrente pretender, na realidade, impugnar o decidido no acórdão reclamado, que não padece de qualquer nulidade, e C., e D., propugnando igualmente o seu indeferimento, atenta a inexistência de qualquer nulidade no acórdão reclamado e a correcção da convolação operada pelo relator de um inadmissível pedido autónomo de reforma da decisão sumária para uma reclamação para a conferência.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Nos n.ºs 1 a 6 do seu requerimento, a recorrente questiona a correcção do despacho do relator que determinou a convolação de pedido de reforma de decisão sumária em reclamação para a conferência dessa mesma decisão, convolação essa que foi implicitamente aceite pelo Acórdão n.º
473/2004, ora arguido de nulo. O referido despacho tem o seguinte teor:
“O sentido da norma do n.º 3 do artigo 669.º do Código de Processo Civil (CPC), embora aí apenas se mencione expressamente a hipótese de recurso da decisão sobre que incide o pedido de reforma, é o de, cabendo impugnação dessa decisão, ser no seu âmbito que deve ser formulado o pedido de reforma, o que não impede o autor da decisão de conhecer imediatamente desse pedido (cf. remissão para o n.º 4 do artigo 668.º). Só perante decisões insusceptíveis de qualquer forma de impugnação, é que o pedido de reforma da decisão deve ser formulado em requerimento autónomo dirigido ao autor da decisão.
No presente caso, do despacho do relator cabe reclamação para a conferência, figura que, para este efeito – tal como para o previsto no n.º 3 do artigo 70.º da LTC –, é equiparada a recurso ordinário.
Assim, é inadmissível pedido autónomo de reforma da decisão sumária em causa.
No entanto, por respeito pelo princípio pro actione e da preferência pelas decisões de mérito em detrimento das de mera forma, e à semelhança do previsto no artigo 688.º, n.º 5, do CPC, entende-se justificar-se a «convolação» do pedido de reforma da decisão sumária em reclamação para a conferência dessa mesma decisão, determinando-se, para esse efeito, a submissão dos autos à conferência (artigo 700.º, n.º 3, do CPC).”
Uma das características da reforma do processo civil de
1995/1996 foi a atenuação da rigidez do princípio do esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa logo que proferisse sentença, constante do artigo 666.º, n.º 1, do CPC. Essas alterações manifestaram-se em dois níveis: na possibilidade de o juiz suprir nulidades da sentença arguidas em recurso dela interposto (artigo 668.º, n.º 4) e de proceder à sua reforma
(artigo 669.º, n.º 2), mesmo que tal implicasse modificação da decisão de mérito. Por óbvias razões de celeridade e economia processuais, a formulação da arguição de nulidade e do pedido de reforma varia consoante a sentença (ou despacho – cf. artigo 666.º, n.º 3, que manda aplicar o disposto nos artigos subsequentes aos próprios despachos, até onde seja possível) em causa seja, ou não, susceptível de “recurso” (expressão que deve ser interpretada em sentido amplo, abarcando todas as formas de impugnação das decisões judiciais, seja para tribunal hierarquicamente superior, seja para formação alargada do mesmo tribunal, com exclusão apenas das reclamações para o próprio autor da decisão). Se a decisão não admite “recurso” (no aludido sentido), a arguição de nulidade e o pedido de reforma são feitos em requerimento autónomo perante o próprio autor da decisão; se admite essa forma de impugnação, a arguição de nulidade e o pedido de reforma são feitos no recurso da decisão, servindo a mesma peça processual (recorde-se que actualmente, em processo civil, todas as alegações são apresentadas no tribunal recorrido, mesmo que se trate de recursos de apelação ou de revista) a dupla finalidade de confrontar o autor da decisão com essas críticas, com a possibilidade de as reparar imediatamente, e de argumentar perante o órgão ad quem no sentido da alteração ou revogação da decisão impugnada. Esta solução é a única que se compatibiliza com o disposto no artigo
686.º, n.º 1, do CPC, que só nos casos de pedido de rectificação de erros materiais (artigo 667.º, n.º 1) ou de pedido de esclarecimento de obscuridade ou ambiguidade ou de reforma quanto a custas (artigo 669.º, n.º 1), é que determina que o prazo para o recurso começa a correr apenas depois de notificada a decisão sobre esses pedidos (artigo 686.º, n.º 1). No caso de pedido de reforma de sentença (artigo 669.º, n.º 2) ainda susceptível de impugnação, a apresentação desse pedido em requerimento autónomo dirigido ao autor da sentença não faz interromper o prazo do recurso. Similarmente, perante despacho de relator de tribunal superior, impugnável através de reclamação para a conferência, o pedido de reforma desse despacho, nos termos do artigo 669.º, n.º
2, há-de ser feito na própria reclamação, com possibilidade de imediato suprimento pelo relator. Na verdade, nada justifica que as razões de economia e celeridade processuais que estão na base das regras dos artigos 668.º, n.º 4, e
669.º, n.º 3, não valham para impor idêntica solução quanto à impugnação de despachos dos relatores nos tribunais superiores, como decorre do artigo 666.º, n.º 3, todos do CPC.
Estas considerações são inteiramente aplicáveis, por força do artigo 69.º da LTC, às reclamações para a conferência das decisões dos relatores do Tribunal Constitucional, quer se trate de “decisões sumárias” previstas no artigo 78.º-A, quer da generalidade das decisões do relator (cfr. artigo 78.º-B).
Assente, assim, que o pedido de reforma da decisão sumária, formulado autonomamente pela recorrente, era processualmente inadmissível, a opção do relator de convolar esse pedido em reclamação para a conferência, em homenagem aos princípios da cooperação e da promoção processuais, não apenas foi favorável à recorrente (a alternativa seria rejeitar, sem mais, o pedido de reforma, por inadmissível), como não incorreu em nenhuma das ilegalidades que lhe são imputadas no requerimento ora em apreço.
Não ocorre violação do princípio do dispositivo, pois ele é compatível com intervenções oficiosas do tribunal visando a ultrapassagem de obstáculos formais à apreciação das pretensões das partes.
A concepção adoptada não restringe nem nega nenhum direito processual da recorrente, apenas considerando que o pedido de reforma da decisão há-de ser feito no âmbito da reclamação para a conferência. São figuras distintas o pedido de aclaração e o pedido de reforma: se a parte tem dúvidas ou não sabe o que se decidiu, devido a ambiguidade ou obscuridade da decisão, aceita-se que só depois de esclarecido o verdadeiro alcance da mesma é que a parte fica em condições de a impugnar, e, por isso, o pedido de aclaração pode ser feito em requerimento autónomo, com interrupção do prazo de impugnação. Interrupção que não está prevista – como se viu – como consequência da apresentação do pedido de reforma, pois, quanto a este, a parte está desde logo em condições de o formular no contexto do recurso (em sentido amplo) da decisão.
As referências feitas às normas dos artigos 70.º, n.º 3, da LTC e 688.º, n.º 5, e 700.º, n.º 3, do CPC, não têm obviamente o sentido de proceder à aplicação do aí regulado ao caso dos autos, já que de facto não havia nenhuma lacuna de regulamentação a preencher. Essas referências visaram apenas demonstrar, por um lado, a amplitude da noção de “recurso” e, por outro lado, a legitimidade de o tribunal proceder a convolações visando a efectividade do princípio da promoção processual.
Não ocorre, por último, violação do artigo 660.º, n.º 2, do CPC. Considerando o relator ser inadmissível o pedido autónomo de reforma da decisão sumária, a não apreciação, por ele, do mérito desse pedido é consequência lógica desse entendimento. Não viola o dever de decisão imposto por aquela disposição legal a não apreciação pelo relator, isoladamente, do mérito do pedido de reforma se anteriormente julgara que essa apreciação cabia à conferência.
Improcedem, assim, na totalidade, as considerações tecidas nos pontos 1 a 6 do requerimento da recorrente, relativamente à questionada convolação do pedido de reforma em convolação para a conferência.
2.2. A parte restante desse requerimento prende-se já com a própria decisão sumária de não conhecimento e com o acórdão que a confirmou.
A recorrente questiona a possibilidade de prolação de decisão sumária do relator, nos termos do artigo 78.º-A da LTC, sem sua prévia audição, o que representaria violação do princípio do contraditório.
Este Tribunal Constitucional tem reiteradamente rejeitado tal crítica. Como se referiu no Acórdão n.º 26/2004:
“3 – É certo que, nos termos do artigo 69.º da LTC, as normas do Código de Processo Civil, em especial as que regulam o recurso de apelação são subsidiariamente aplicáveis à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional.
Isto não significa que aos meios processuais típicos do recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, regulados na LTC, devam ser aplicáveis as regras do CPC que disciplinem meios que revelem algum paralelismo com aqueles.
Há, de facto, esse paralelismo entre a decisão sumária, regulada no artigo 78.º-A da LTC, que permite o julgamento pelo relator de recursos manifestamente infundados e o não conhecimento do objecto do recurso quando este careça dos devidos pressupostos e os julgamentos previstos no artigo 700.º, n.º 1, alíneas e) e g), do CPC.
Quanto a estes últimos, verifica-se que, enquanto o julgamento de não conhecimento do objecto do recurso deve ser precedido de audição das partes nos termos do artigo 704.º, n.º 1, do CPC, já quanto ao julgamento previsto no artigo 705.º não é exigível essa audição.
A decisão sumária prevista na LTC tem porém um tratamento unitário para as duas situações, não se impondo, em qualquer caso, a audição prévia das partes.
E nada obsta a que o legislador, no âmbito da sua liberdade de conformação, regule de modo diverso meios processuais paralelos, desde que assegurados os direitos fundamentais das partes, particularmente os direitos ao contraditório e a um processo equitativo.
Não mais do que isso visa, no CPC, a audição prévia das partes, em caso de não conhecimento do objecto do recurso.
É outra a forma de visar o mesmo fim que ficou estabelecida na LTC. E ela é a de proporcionar ao recorrente a reclamação para a conferência nos termos do n.º 3 do citado artigo 78.º-A, permitindo a exposição de razões que, no entendimento do recorrente, deveriam conduzir ao conhecimento do objecto do recurso ou contrariam a decisão de considerar a questão controvertida como simples ou manifestamente infundada.
É esta a jurisprudência firmada por este Tribunal quando confrontado com a questão da suposta violação do contraditório pela específica tramitação da decisão sumária na LTC, como se vê, entre outros, nos Acórdãos n.ºs 80/99,
550/99, 567/99, 223/2001 e 265/2002.”
Improcede, pois, o aduzido sob o n.º 7 do requerimento em apreciação.
2.3. O aludido Acórdão n.º 473/2000, ora arguido de nulo, indeferiu a reclamação de decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade com a seguinte fundamentação:
“A reclamante não questiona a decisão sumária reclamada na parte em que aí se entendeu não ser possível conhecer da questão da constitucionalidade da “segunda norma” referida pelos recorrentes, a saber: «a extraída do artigo
678.º, n.º 1, do CPC, segundo a qual é irrecorrível a decisão proferida em processo de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, que julga irrelevantes documentos oferecidos para impugnação de documentos juntos pela parte contrária ao abrigo do disposto no artigo 512.º do CPC, e para prova da arguida falsidade dos mesmos, e falsificação do artigo 256.º, n.º 3, com referência ao n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal, julga tardio e injustificado o oferecimento de tais documentos, sem decidir se são ou não admitidos nos autos, e recusa vista destes ao Ministério Público para efeito do disposto no artigo 241.º do CPP», decisão essa que se fundou na constatação de que, quanto a essa segunda «norma», «não se contém na mesma decisão qualquer pronúncia relativa à irrelevância de determinados documentos nem quanto ao carácter tardio da sua junção, pois, de novo, o despacho impugnado se limitou a apreciar a questão da recorribilidade de uma decisão que se entendeu ter representado para os recorrentes apenas o “prejuízo” do pagamento de uma multa
(uma vez que os documentos por eles apresentados foram efectivamente juntos aos autos), de valor inferior ao correspondente a metade da alçada do tribunal».
A reclamante apenas questiona a decisão de não conhecimento da questão da inconstitucionalidade da «primeira norma», mas fá-lo com supressão de partes significativas do seu requerimento de interposição de recurso. Na verdade, nesse requerimento, os recorrentes identificaram a norma em causa nos seguintes termos:
«a extraída dos artigos 156.º, n.º 4, e 679.º do CPC, segundo a qual o envio dos autos com vista ao Ministério Público, requerida pelas partes ao abrigo do artigo 242.º, n.º 1, alínea b), do CPP, para apreciação de actos e documentos impugnados nos mesmos, arguidos de falsidade e de consubstanciarem os ilícitos do artigo 256.º, n.º 3, com referência ao n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal, não constitui qualquer obrigação vinculada do juiz da 1.ª instância, antes configura uma situação de poder discricionário neles previstas, cujo exercício dispensa a fundamentação legal do artigo 158.º, n.º
1, do CPC, decorrente da norma do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição»
e consideraram que a mesma
«viola as garantias constitucionais consignadas nos artigos 202.º, n.º 2, no segmento relativo à incumbência de os tribunais reprimirem a violação da legalidade democrática, e 205.º, n.º 5 [aliás, n.º 1], da Constituição, e o correspondente direito fundamental do cidadão de obter a efectivação de tais garantias, directamente aplicável ex vi seu artigo 18.º, n.º 1.»
Na presente reclamação, a reclamante significativamente omitiu as passagens sublinhadas («cujo exercício dispensa a fundamentação legal do artigo
158.º, n.º 1, do CPC, decorrente da norma do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição» e viola o artigo «205.º, n.º 5 [aliás, n.º 1], da Constituição, e o correspondente direito fundamental do cidadão de obter a efectivação de tais garantias, directamente aplicável ex vi seu artigo 18.º, n.º 1»). Ora, foi justamente atendendo às formulações agora suprimidas pela reclamante que na decisão sumária reclamada se entendeu que a dimensão normativa impugnada se reportava «à dispensa de fundamentação da não comunicação ao Ministério Público de determinados factos» (o n.º 1 do artigo 205.º da CRP, tido por violado, determina que «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei»), e que essa dimensão não fora aplicada pelo despacho recorrido, pois que este «se limitou a apreciar a questão da recorribilidade dessa “não comunicação'». Na parte em que se refere a essa dimensão normativa, a decisão sumária reclamada não merece qualquer reparo. Aliás, mesmo que houvesse de dela conhecer, tal questão de inconstitucionalidade seria de considerar manifestamente infundada, por o despacho do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa ter expressamente reconhecido que, nesse aspecto, o despacho do juiz de 1.ª instância estava fundamentado, por nele se justificar a não comunicação ao Ministério Público por não existirem «quaisquer indícios de ilicitude criminal naqueles documentos».
Mesmo, porém, que se entenda que, a par dessa dimensão, os recorrentes também haviam impugnado a que se reporta à qualificação como discricionária da obrigação de o juiz comunicar ao Ministério Público factos arguidos de falsidade e de consubstanciarem ilícitos criminais (obrigação que decorreria do artigo 242.º, n.º 1, alínea b), do CPP: «1. A denúncia é obrigatória, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos: (...) b) Para os funcionários, na acepção do artigo 386.º do Código Penal, quanto aos crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas»), com a consequência de o despacho que consubstancie a decisão de não comunicação ser irrecorrível, nos termos dos artigos 679.º («Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário») e 156.º, n.º 4, 2.ª parte («...; consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador»), ambos do CPC, sempre a questão de inconstitucionalidade assim formulada seria de considerar manifestamente infundada.
Com efeito, é obviamente insusceptível de configurar incumprimento da função dos tribunais de reprimirem a violação da legalidade democrática
(artigo 202.º, n.º 2, da CRP) uma interpretação normativa que não considere os tribunais vinculados a comunicarem ao Ministério Público factos a que não reconheçam relevância criminal, sendo certo que sempre aos interessados assiste a faculdade de denunciarem eles mesmos esses factos e de utilizarem todos os mecanismos legalmente disponíveis de promoção do procedimento criminal e de controlo da actividade do Ministério Público.”
Contra este acórdão, a recorrente limita-se a referir não ter o mesmo tomado em consideração todos os elementos constantes do processo, mas sem qualquer substanciação dessa crítica.
Tendo-se concluído, em primeira linha, nesse acórdão, tal como na decisão sumária por ele confirmada, que o despacho do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de que foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional não aplicara, como ratio decidendi, as dimensões normativas arguidas de inconstitucionais, pelo que esse recurso era inadmissível, não havendo que conhecer do seu objecto, é evidente que em nenhuma nulidade por omissão de pronúncia incorre tal acórdão ao não apreciar o mérito do recurso de constitucionalidade.
Mas o mesmo acórdão foi mais longe e admitindo, por mera hipótese, que a recorrente arguira a inconstitucionalidade de determinada dimensão normativa susceptível de ser entendida como aplicada pelo despacho recorrido, logo adiantou que, então, tal questão de inconstitucionalidade seria de considerar como manifestamente infundada, o que envolve um juízo de mérito sobre tal questão.
Surge, assim, como incompreensível a arguição de nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos em que é assacada pela recorrente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir, na sua totalidade, o requerimento de fls. 106 a 118.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Outubro de 2004
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos