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Proc. n.º 961/03
3ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por decisão do Tribunal de Trabalho do Barreiro, de 14 de Janeiro de 2003, foi julgada improcedente a acção declarativa de condenação que A. (ora recorrente), intentou contra o B. (ora recorrido), no âmbito da qual pedia a condenação do Réu a pagar-lhe determinada quantia, a liquidar em execução de sentença, relativa a uma diferença de subsídio de isenção de horário, calculada sobre o valor de despesas do “Cartão C., de combustível e de telefone”.
2. Inconformado com esta decisão o Autor apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo alegado, nomeadamente, o seguinte:
“[...] Porém, a Meritíssima Juiz a quo não teve dúvidas em concluir que o Acordo celebrado pelas partes e a declaração do Apelante, nele constante, constituem uma remissão nos termos e para os efeitos previstos no art. 863°, n° l, do Código Civil. Salvo o muito respeito por este entendimento, a douta decisão recorrida não teve em consideração que os créditos peticionados pelo Apelante (remunerações salariais) não podem ter o mesmo tratamento de qualquer outra obrigação. No domínio do Direito Laboral e, mais precisamente no que tange à obrigação de pagar o salário a um trabalhador, é imperioso ter em consideração princípios de Ordem Pública e Social que justificam o afastamento dos princípios gerais das Obrigações, designadamente do disposto no art. 863°, do Código Civil. De resto, mesmo no âmbito das Obrigações em Geral, seria violento e inadmissível que o credor ficasse vinculado aos efeitos de um contrato de uma remissão de uma dívida concreta (neste caso: uma dada remuneração), quando a sua declaração foi prestada em abstracto (ou melhor: foi prestada 'às cegas'), sem sequer ter em mente qual era a dívida que estava a ser objecto de remissão! Como ensinaram Jorge Leite e Jorge Coutinho de Almeida, in 'Colectânea de Leis do Trabalho', a pág. 96, em anotações ao art. 94°. da LCT
'As declarações do Trabalhador reduzidas ou não a escrito, feitas, em geral, por ocasião da extinção do contrato de trabalho, de que “nada mais tem a exigir da entidade patronal', 'se considera pago de tudo quanto lhe era devido', 'recebeu todas as importâncias que lhe eram devidas' ou outros equivalentes, não têm o valor de recibo de quitação. E não o têm, desde logo, em atenção à natureza dos direitos em causa. Na verdade, o direito à retribuição é irrenunciável e é indisponível ou, pelo menos, parcialmente indisponível. Parece não poder qualificar-se de modo diferente o crédito que é constitucionalmente garantido (art. 60º., n°.1 da CRP ...'). Por isso, a declaração feita no Acordo celebrado entre o Apelante e a Apelada, através da qual aquele se declarou integralmente pago de todos e quaisquer créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, não pode deixar de ser considerada nula. Acresce que, dentro do raciocínio que acaba de desenvolver-se, deverá concluir-se que o entendimento sufragado na douta sentença em apreço constitui uma clara violação do direito ao salário que tem consagração no art. 59°, n.º l, alínea a) da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, a aplicação do disposto no art. 863°. do Código Civil a créditos resultantes de um contrato de trabalho envolve uma violação a direitos fundamentais (art. 17°. da CRP). Nesta conformidade e sempre com o máximo respeito por diferente opinião, força é que se conclua que, contrariamente ao decidido na douta sentença recorrida a invocada excepção peremptória de remissão deve ter-se por improcedente com as legais consequências. [...]”.
3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 12 de Novembro de 2003, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida. Escudou-se para tanto, designadamente, na seguinte fundamentação:
“[...] Uma primeira questão resultante das conclusões da alegação da Recorrente consiste em saber se “a declaração de quitação geral prestada por um Trabalhador no acto da cessação do seu contrato de trabalho, determinada por uma situação de reforma por invalidez, no sentido de que está integralmente pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, deve ser considerada nula”. Ora, como vimos, vem provado que:
12- Em 9 de Maio de 2001, autor e réu celebraram entre si o acordo escrito que faz fls. 6 a 9 dos autos;
13- E convencionaram na cláusula 4°, n.º 1 que o contrato de trabalho vigente entre as partes caducava com a reforma do autor;
14- Igualmente acordaram que na data da cessação do contrato de trabalho e a título de compensação pecuniária de natureza global o autor receberia do réu a quantia de € 33.419 ,46, líquida de impostos e quaisquer taxas (cláusula 4°, n.º
2);
15- E o autor declarou-se integralmente pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, dando quitação total e plena quanto a tais créditos (cláusula 4°, n.º3);
16- O réu pagou ao autor e este recebeu o valor daquela compensação;
17- Aquando da celebração do referido acordo, bem como da data da cessação do contrato de trabalho, o autor não exigiu ao réu os créditos reclamados na presente acção.
5- Em 1 de Junho de 2001, o autor reformou-se por invalidez, situação que foi reconhecida pelo réu; Assim, verifica-se que o contrato de trabalho mantido pelo demandante e pela demandada cessou em 1 de Junho de 2001, por o primeiro se ter reformado. A forma de cessação do contrato de trabalho foi, pois, a sua caducidade por reforma do trabalhador [art.ºs 3°, n.º 2, alínea a), e 4°, alínea c), da LCCT
(D.L. n. 64-A/89, de 27/2)]. Não se tratou, pois, duma revogação do contrato por mútuo acordo a requerer um documento assinado por ambas as partes, em duplicado, conforme exigência expressa no n.º 1 do artigo 8° da referida LCCT. Foi já quando as partes sabiam que o Autor se iria reformar em 1 de Junho de
2001 como efectivamente veio a suceder - que Autor e Ré acordaram que na data da cessação do contrato de trabalho e a título de compensação pecuniária de natureza global o Autor receberia do réu a quantia de € 33.419,46, líquida de impostos e quaisquer taxas (cláusula 4°, n.º 2) . E o autor declarou-se integralmente pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, dando quitação total e plena quanto a tais créditos cláusula 4°, n.º 3). Ora, ao contrário do que defendido pelo Recorrente, entendemos que esta declaração, no contexto em que foi feita, não pode deixar de ser válida, porquanto muito embora tenha sido emitida ainda durante a vigência do contrato, já estava certa a caducidade do mesmo dentro de poucos dias, já não havendo qualquer temor reverencial do trabalhador em relação à empregadora ou supremacia desta em relação àquele.
É natural a remissão abdicativa que transparece do teor esse documento, já que o montante pago pela Ré ao Autor como compensação pecuniária de natureza global declarando-se o autor 'integralmente pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, dando quitação total e plena quanto a tais créditos', se destinava certamente não só a premiá-lo pelo termo duma relação laboral profícua, mas também a compensá-lo por quaisquer créditos laborais ainda em débito. Créditos esses que o próprio Autor declarou estarem englobados na quantia de
6.700.000$00 que recebeu. Portanto, há que entender que a declaração constante do documento tem plena validade, por ter expressado a vontade real do declarante, o qual, no momento, nenhuma dependência tinha já em relação à entidade patronal, uma vez que estava dada como certa a cessação da relação laboral dentro de poucos dias. Aliás, o recebimento da quantia de 6.700.000$00 tinha mesmo como pressuposto necessário o término da relação empregatícia no dia 1 de Junho de 2001, admitido como seguro por ambas as partes (o qual efectivamente se verificou). A não ser assim, seria incompreensível o pagamento dessa quantia feito pela Ré ao Autor, bem como o recebimento da referida importância por este último. Parafraseando o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de
1999, publicado na C.J., Ac. STJ, Tomo II-1999, Ano VII, a páginas 281/282, diremos também que a declaração constante do documento de folhas 6 a 9 configura, tendo em conta o que consta dos autos, uma proposta do B., e a sua aceitação pela Autor, no sentido de, uma vez paga a quantia de 6.700.000$00, o Autor considerar extintos eventuais direitos de crédito sobre o património d[o] referid[o] B.. Estamos, por isso, perante uma remi[ss]ão abdicativa acordada pelas partes e espelhada no documento, que não pode deixar de produzir os efeitos previstos no artigo 863° do Código Civil. E tal em nada viola o disposto nos arts. 17° e 59°, n° 1, alínea a) da CRP, pois, em nosso entender, é claro não resultar violado o direito do trabalhador à retribuição do trabalho. Não nos merece, pois, qualquer censura a sentença recorrida ao julgar procedente a invocada excepção peremptória da remissão abdicativa, pelo que se impõe a absolvição do réu do pedido, com desnecessidade do conhecimento de quaisquer outras questões.[...]”
4. É deste acórdão que vem interposto, “ao abrigo nos Arts. 70°, n.º.1, alínea b), 71°.,72°., n°.1, alínea b), e 75°.-A, nºs. 1 e 2, todos da Lei do Tribunal Constitucional”, o presente recurso. De acordo com o respectivo requerimento de interposição,
“através do presente recurso, pretende o Recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da douta decisão recorrida, ao considerar válida a declaração de quitação geral prestada pelo Trabalhador no
âmbito de um acordo de rescisão do seu Contrato de Trabalho, celebrado com a sua Entidade Patronal, uma vez que uma tal declaração viola o direito ao salário consagrado nos arts. 17°. e 59°., n.º.1, alínea a) da Constituição da República. Mais concretamente: o Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a questão da inconstitucionalidade do disposto no Art. 863°, do Código Civil
(Remissão), na vertente da sua aplicação às relações jus-laborais, tendo em conta que o direito ao salário está relacionado com interesses de Ordem Pública e Social.”
5. Já no Tribunal Constitucional foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo junto um parecer e apresentado as seguintes conclusões:
“1º. - A declaração de quitação geral prestada por um trabalhador no acto da cessação do seu contrato de trabalho, determinada por uma situação de reforma por invalidez, no sentido de que está integralmente pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e sua cessação, deve ser considerada nula, uma vez que tal declaração, prestada no âmbito da obrigação de pagar as retribuições vencidas na vigência de um contrato de [] trabalho, contende com interesses de Ordem Pública.
2°. - Por isso, o douto Acórdão recorrido, ao ter julgado válida a declaração de quitação geral prestada no Acordo de Cessação do Contrato de Trabalho celebrado entre o Recorrente e a Recorrida, violou o art. 94°. da LCT criada pelo Decreto-Lei n°.49.408, de 24 de Novembro de 1969.
3°. - Além disso, esse douto Acórdão, com o ter considerado válida a mesma declaração e com o ter considerado aplicável o disposto no art. 863°, do Código Civil à obrigação de uma entidade patronal pagar retribuições a um Trabalhador, violou o disposto no art. 59°., n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos e por tudo quanto V. Exas. doutamente se dignarão suprir, deve
1º. – Declara[r]-se, no caso concreto, a inconstitucionalidade do disposto no art. 863°. do Código Civil, em virtude de a remissão de créditos nele prevista não ser aplicável quando estiverem em causa créditos salariais vencidos no
âmbito de um contrato de trabalho;
2°. - Declarar-se que o douto Acórdão da Relação de Lisboa, em recurso, violou o disposto no art. 59°., n°.1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa;
3°. - Decidir-se, em consequência, que aquele douto Acórdão seja reformulado em termos de ser julgada improcedente a excepção peremptória da remissão abdicativa, conhecendo-se da questão de fundo, isto é, conhecendo-se do pedido formulado pelo autor na presente Acção”.
6. Contra-alegou o recorrido, tendo concluído da seguinte forma:
“I – DO NEGÓCIO REMISSIVO
1. O Recorrente funda a sua pretensão na pretenda inconstitucionalidade do artigo 863° do Código Civil - remissão de créditos - quando aplicado aos créditos emergentes do contrato de trabalho da titularidade do trabalhador.
2. A inconstitucionalidade derivaria, in casu, da violação do direito à retribuição do trabalho [Constituição, art.º 59/1, a)], preceito do qual resultaria a consagração constitucional do princípio da irrenunciabilidade do crédito salarial, impeditivo de declarações de renúncia ou de remissão.
3. Não assiste razão ao Recorrente, por duas razões fundamentais - nem a remissão convencionada corresponde à renúncia de quaisquer créditos, nem estes revestem a natureza de créditos salariais quando a remissão produz efeitos.
4. O negócio remissivo em apreço nos autos foi celebrado entre Recorrente e Recorrida em 9 de Maio de 2001 (Acórdão de fls. II- Fundamentação de Facto, §13 e doc. de fls. 6 a 8).
5. Por convenção, a Recorrida obrigou-se a pagar ao Recorrente, na data da cessação do contrato de trabalho (realce nosso) e a título de compensação pecuniária de natureza global, a quantia de € 33.419,46, líquida de impostos e quaisquer taxas (Acórdão de fls., II - Fundamentação de Facto, §14).
6. Após o que o Recorrente se declarou 'integralmente pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, dando quitação total e plena quanto a tais créditos (Acórdão de fls. II- Fundamentação de Facto, §15).
7. Logo, o Recorrente não renunciou a quaisquer créditos; antes formou e declarou a sua vontade negocial no sentido de considerar que estes créditos se mostravam liquidados com o pagamento da quantia que a Recorrida lhe entregou.
8. É que a remissão de créditos não é um negócio necessariamente gratuito, no sentido de que 'apenas gera atribuições patrimoniais para uma das partes (cfr. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, Lisboa, 1983, p.
216). Que assim é resulta claramente do disposto no artigo 863°/2 do Código Civil, que prevê a possibilidade - uma entre outras - de a remissão ter carácter de liberalidade.
9. Assim, encontra-se assente nos autos que a remissão convencionada envolveu, como contrapartida, o pagamento pela Recorrida ao Recorrente de determinada quantia - € 33.419,46 (trinta e três mil quatrocentos e dezanove euros e quarenta e seis cêntimos) - já líquida de impostos e quaisquer taxas, por isso também suportadas pela Recorrida.
10. O Recorrente não renunciou por isso a quaisquer créditos, os quais lhe foram satisfeitos através de pagamento de valor que considerou adequado àquela satisfação. II. DA NATUREZA DOS CRÉDITOS REMITIDOS
11. Acresce ser entendimento pacífico que a proibição de renúncia de créditos salariais apenas subsiste na vigência da relação de trabalho, não fazendo sentido quando os contraentes fazem cessar a relação de trabalho (cfr., por exemplo, Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, Coimbra, 2002, p. 564, bem como jurisprudência aí citada na nota 1).
12. Somente durante a subsistência da relação de trabalho faz sentido impedir a renúncia a créditos salariais, quer como forma de tutela da dimensão de subsistência do trabalhador própria da prestação salarial [Constituição, art.º
59/1, a)], quer para acautelar eventuais perturbações na liberdade de formação da vontade do trabalhador, enquanto inserido numa organização de meios dominada pelo empregador.
13. Ora, cessando o contrato de trabalho quando os contraentes declaram nada mais ter a haver um do outro, não se verifica nenhuma das causas que justifica a especial protecção conferida à prestação salarial e que, designadamente, proíbe a respectiva renúncia.
14. Não colhe o argumento de que a renúncia é convencionada em momento anterior ao da cessação do contrato de trabalho. É que a eficácia da renúncia, a produção dos seus efeitos extintivos, verifica-se no momento da cessação do contrato de trabalho. É o momento da eficácia - em que o direito desaparece da esfera jurídica do seu titular - e não o da convenção que importa considerar para a aferição da validade da extinção dos créditos.
15. De resto, foi aquando da cessação do contrato que a Recorrida pagou ao Recorrente e este recebeu o valor da compensação. E foi ainda nesse momento que o Recorrente não exigiu à Recorrida os créditos que peticionou, o que só demonstra que a vontade subjacente ao acordo celebrado permaneceu intacta no momento da eficácia da declaração extintiva.
16. Acresce que a faculdade legal de revogação unilateral dos acordos de cessação dos contratos de trabalho até ao segundo dia útil seguinte à data art.º
1º; actualmente, Código do Trabalho, art.º 395°) constitui solução normativa que permitiria ao Recorrente afastar os efeitos jurídicos da declaração renunciativa, eventualmente não pretendidos ou não antecipados. Por isso, deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se as decisões recorridas”.
7. Por determinação do relator, foram, entretanto, as partes notificadas do seguinte parecer:
“Dado que, não obstante ter sido determinada a elaboração de alegações, se configura como eventual solução do presente recurso o seu não conhecimento, elabora-se o presente despacho, nos termos dos artigos 69º da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, e 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
1. Como é sabido, o recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, visa submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a constitucionalidade de norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida. É, por isso, jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, estando em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82, e assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na verdade, ao contrário dos sistemas em que é admitido recurso de amparo, nomeadamente na modalidade de amparo dirigido contra decisões jurisdicionais que, alegadamente, violam directamente a Constituição, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal não se destina ao controlo da decisão judicial recorrida, como tal considerada, como sucede quando a discordância se dirige a esta última, mas, pelo contrário, ao controlo normativo de constitucionalidade da norma aplicada. Acresce, que tal recurso pressupõe, igualmente, que o recorrente tenha suscitado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida e de forma processualmente adequada, uma questão de constitucionalidade normativa, e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado - a norma ou a dimensão normativa arguida de inconstitucional -, como ratio decidendi, no julgamento do caso.
2. Ora, segundo resulta dos presentes autos, o recorrente parece pretender que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade da decisão recorrida. De facto, no respectivo requerimento de interposição do recurso refere-se que,
“através do presente recurso, pretende o Recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da douta decisão recorrida, ao considerar válida a declaração de quitação geral prestada pelo Trabalhador no
âmbito de um acordo de rescisão do seu Contrato de Trabalho, celebrado com a sua Entidade Patronal, uma vez que uma tal declaração viola o direito ao salário consagrado nos arts. 17°. e 59°., n.º.1, alínea a) da Constituição da República. Mais concretamente: o Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a questão da inconstitucionalidade do disposto no Art. 863°, do Código Civil
(Remissão), na vertente da sua aplicação às relações jus-laborais, tendo em conta que o direito ao salário está relacionado com interesses de Ordem Pública e Social.” Isto mesmo é corroborado, posteriormente, nas conclusões das alegações para este Tribunal quando se afirma “esse douto Acórdão [recorrido], com o ter considerado válida a mesma declaração e com o ter considerado aplicável o disposto no art.
863°, do Código Civil à obrigação de uma entidade patronal pagar retribuições a um Trabalhador, violou o disposto no art. 59°., n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa.” (Sublinhados aditados). Ora, a ser assim, uma tal pretensão não pode proceder, conforme se demonstrou no n.º 1 supra, pelo que não será possível conhecer do objecto do presente recurso.
3. Acresce que também se afigura que não se pode considerar que uma questão de constitucionalidade normativa tenha sido “suscitada, pelo recorrente, de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida”, conforme exige o n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional. Com efeito, na única referência que à problemática é feita nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente afirma que “[...] acresce que, dentro do raciocínio que acaba de desenvolver-se, deverá concluir-se que o entendimento sufragado na douta sentença em apreço constitui uma clara violação do direito ao salário que tem consagração no art. 59°, n.º l, alínea a) da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, a aplicação do disposto no art. 863°. do Código Civil a créditos resultantes de um contrato de trabalho envolve uma violação a direitos fundamentais (art. 17°. da CRP)”(itálico aditado). Ora, uma tal forma de proceder é manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que impende sobre o recorrente, de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, uma questão de constitucionalidade normativa que por este possa vir a ser apreciada.
4. Nestas circunstâncias, parecem não estar preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso exigidos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não se poderá, com estes fundamentos, conhecer do seu objecto.
5. Por todo o exposto, entendemos ser plausível que não possa conhecer-se do objecto do recurso. Nestes termos, em cumprimento do disposto no artigo 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil, (aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional), notifiquem-se as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a questão prévia suscitada, no prazo de 10 (dez) dias.”
8. Notificadas as partes, veio o recorrente responder, sustentando que se encontram preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso e que o mesmo deverá ser conhecido. Invoca, nomeadamente, o seguinte:
“[...] 1. Através do presente recurso, o que o recorrente pretende é que se esclareça se o disposto no art. .863°. do Código Civil (Remissão), na vertente da sua aplicação às relações jus-laborais, é, ou não, constitucional. Concretamente, o que o recorrente pretende é que se esclareça se essa norma
(art. 863°. do Código Civil) é, ou não, conforme à Constituição, designadamente sobre se tal norma viola, ou não, o direito ao salário consagrado nos arts. 17°, e 59°, nº. 1 alínea a) da Constituição da República.
2. Salvo o muito respeito por diferente opinião, crê o recorrente que esta sua pretensão ficou claramente expressa nas alegações que apresentou perante o Tribunal da Relação, que proferiu a douta decisão recorrida, e bem assim naqueles que produziu perante este Tribunal.”
9. O recorrido, por seu turno, veio sustentar a impossibilidade de conhecimento do recurso.
Cumpre decidir.
II - Fundamentação
10. Admitido o recurso no Tribunal da Relação de Lisboa e não obstante ter sido determinada a produção de alegações, cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76º, n.º 3, da LTC).
Emitido o parecer do relator, veio o recorrente propugnar pelo conhecimento do recurso, nos termos supra transcritos, alegando fundamentalmente que “pretende é que se esclareça se o disposto no art. .863°. do Código Civil (Remissão), na vertente da sua aplicação às relações jus-laborais, é, ou não, constitucional” e que crê “que esta sua pretensão ficou claramente expressa nas alegações que apresentou perante o Tribunal da Relação, que proferiu a douta decisão recorrida.”
Não tem, porém, razão o recorrente. E não tem razão, em rigor, não só porque, por um lado, confirma que pretende ver apreciada o artigo 863º, “na vertente da sua aplicação às relações jus-laborais” (itálico aditado), mas também porque, como se demonstrou no despacho que supra integralmente se transcreveu, não suscitou, previamente, perante o tribunal recorrido, uma questão de constitucionalidade normativa que pelo Tribunal Constitucional possa vir a ser apreciada.
Assim sendo, em face do exposto e pelas razões constantes do despacho do relator notificado às partes, que em nada são infirmadas pela resposta do recorrente e, por isso, aqui se reiteram, não pode efectivamente o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso, por se verificar que o recorrente não suscitou, durante o processo e de forma processualmente adequada, uma questão de constitucionalidade normativa.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Maio de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida