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Processo n.º 400/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. Relatório
A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), da decisão sumária do relator, de 13 de Abril de 2004, que, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não julgou inconstitucional – na sequência dos Acórdãos n.ºs 741/98 e 403/2002 – a norma do § único do artigo
67.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º 41 234, de 20 de Agosto de 1957), enquanto determina que a falta de apresentação de alegações no recurso contencioso acarreta a sua deserção, e, consequentemente, negou provimento ao recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A. interpôs, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), recurso do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 5 de Fevereiro de 2004, que negou provimento a recurso jurisdicional do despacho de 27 de Maio de 2002 do Juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que julgara deserto, por falta de alegações, recurso contencioso por ela interposto. Pretende ver apreciada a inconstitucionalidade – “por ofensa aos princípios do Estado de direito democrático (artigo 2.º), de acesso ao direito, a uma decisão e à tutela jurisdicional efectiva (artigos 20.º, n.º 4, e 268.º, n.º 4), da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2) e do princípio da igualdade e do acesso ao direito e aos tribunais (artigos 13.º e 20.º, n.º 1), todos da Constituição da República Portuguesa (CRP)” – da norma do § único do artigo 67.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (RSTA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 41 234, de 20 de Agosto de 1957, “quando interpretado no sentido em que o foi no acórdão recorrido, ou seja, com a cominação de deserção na falta de alegações no recurso contencioso”.
A questão que constitui objecto do presente recurso é de qualificar como “simples”, por já ter sido objecto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, o que possibilita a prolação de decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
2. Com efeito, o Tribunal Constitucional apreciou especificamente, nos Acórdãos n.ºs 741/98 (Diário da República, II Série, n.º 57, de 9 de Março de 1999, pág. 3486; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41.º vol., pág. 639) e 403/2002 (Diário da República, II Série, n.º 290, de 16 de Dezembro de 2002, pág. 20 511), a constitucionalidade da questionada norma do § único do artigo
67.º do RSTA, enquanto determina, por remissão para os artigos 292.º e 690.º do CPC, a deserção do recurso contencioso por falta de apresentação das respectivas alegações, tendo, em ambos os casos, concluído pela sua não inconstitucionalidade.
No Acórdão n.º 741/98 foi especialmente analisada a invocada violação do princípio da igualdade, quer face à inexistência, para a falta de alegações do recorrido, de consequências jurídicas equiparáveis às ligadas à falta de alegações do recorrente, quer atenta a diversidade das situações da falta de alegações em recurso jurisdicional cível e da falta de alegações em recurso contencioso administrativo (no qual os fundamentos do pedido de anulação do acto impugnado já constam da petição inicial desse recurso) – sendo este último o argumento central utilizado pela ora recorrente na suscitação da questão de inconstitucionalidade. O citado Acórdão n.º 741/98 deu por não verificada a alegada inconstitucionalidade, desenvolvendo, para tanto, a seguinte fundamentação:
«II. Fundamentos:
5. Objecto do presente recurso de constitucionalidade é a norma do § único do artigo 67.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, enquanto determina, por remissão para os artigos 292.º e 690.º do Código de Processo Civil, que na falta de alegações do recorrente o recurso é julgado deserto. O recorrente sustenta que o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado, é violado pelo facto de apenas uma das partes no recurso – o recorrente – estar sujeita à deserção do recurso por falta da sua alegação.
É a seguinte a redacção do artigo 67.º do Regulamento do STA:
“Artigo 67.º
(Vista para alegações) O relator, logo que se encontre nos autos a resposta referida no artigo 62.º ou haja decorrido o prazo em que deveria ter sido apresentada, mandará dar vista para alegações, primeiro ao advogado do recorrente e depois ao do recorrido, se o houver, e em seguida irão os autos com vista ao Ministério Público.
§ único. À alegação e à sua falta é aplicável o disposto nos artigos 292.º e
690.º do Código de Processo Civil.”
Por sua vez, e para o que para o caso releva, era a seguinte a redacção das disposições do Código de Processo Civil referidas neste § único, antes da reforma da legislação processual civil operada pelos Decretos-Leis n.ºs
329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro (hoje correspondente à redacção dos artigos 291.º, n.º 2, e 690.º, n.ºs 1 e 3):
«Artigo 292.º
(Deserção dos recursos)
1. Os recursos são julgados desertos (...) pela falta de alegação do recorrente.
(...)
Artigo 690.º
(Ónus de alegar e formular conclusões)
1. O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual concluirá pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2. Na falta de alegação, o recurso é logo julgado deserto.
(...).»
A transcrita redacção do artigo 690.º (e, mesmo, a do actual) louva-se na que o Decreto n.º 38 387, de 8 de Agosto de 1951, deu ao correspondente artigo do Código de Processo Civil de 1939.
É, assim, ainda inteiramente pertinente a lição de Alberto dos Reis, lembrando
(no seu Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra,
1984, pp. 352 e ss.) que no Código de Processo Civil de 1876 se discutia se o conhecimento do recurso dependia da produção de alegações e que tal questão foi resolvida, no sentido afirmativo, pelo Decreto n.º 2, de 15 de Setembro de 1892, solução que se manteve até à primeira versão do Projecto de Código de Processo Civil elaborado pelo Autor (artigo 679.º). Na segunda versão, porém, o correspondente artigo (622.º) determinava que o recorrente minutasse o recurso e concluísse a minuta com a indicação resumida dos fundamentos por que pedia a alteração ou anulação da sentença ou despacho, sob pena de o tribunal não conhecer do recurso. Na Comissão Revisora discutiram-se, a este propósito, dois pontos: se devia ser obrigatória a minuta, sob pena de não conhecimento do recurso, e se deviam exigir-se conclusões, acabando o texto final por estabelecer que o tribunal superior não conheceria do recurso na falta de alegação e que a falta de conclusões na alegação seria suprida a convite do juiz, sob pena de não conhecimento do recurso. Dando conta do espírito da norma, escrevia o ilustre Processualista: «... o artigo teve em vista obrigar o recorrente a submeter expressamente à consideração do tribunal superior as razões da sua discordância para com o julgado, ou melhor, os fundamentos por que o recorrente acha que a decisão deve ser anulada ou alterada, para que o tribunal tome conhecimento delas e as aprecie» (pág. 357).
6. Pretende o recorrente que recorrente e recorrido ficam, assim, em posição de desigualdade: «o recorrido pode deixar de produzir alegações sem sofrer com a sua inacção nenhuma espécie de consequência processual enquanto idêntica atitude por parte do recorrente leva a que o processo ‘morra’, deixando o Tribunal, pura e simplesmente, de apreciar a sua pretensão». Evidentemente que uma tal desigualdade é ela própria resultante da diferente posição que as partes, recorrente e recorrido, assumem no recurso: nenhum sentido faria dar por findo o recurso se o recorrido não produzisse alegações. Num certo sentido, aliás, pode dizer-se que a possibilidade de o recorrido ver proferida uma decisão em que não foram ouvidas as suas razões (porque deixou de cumprir o ónus de produzir alegações) encontra contrapartida no encerramento do processo, caso o recorrente não cumpra o ónus de alegar. Porque em ambos os casos se trata de «imperativos do próprio interesse», de ónus jurídicos, segue-se que as consequências da não produção de alegações são, ao menos potencialmente, desvantajosas para quem as omite. O que não podem é, evidentemente, ser as mesmas consequências, porque a posição das partes no processo não é idêntica. A alegada desigualdade revela-se, pois, fundada de forma bastante – e, dir-se-á mesmo, necessária –, na diferente posição que recorrente e recorrido assumem no recurso.
7. Sustenta, porém, o recorrente que uma tal desigualdade, que «existe no próprio processo civil», é de natureza diferente da que ocorre no contencioso administrativo: «aquilo de que o artigo 690.º trata é bem diferente do que é regulado no artigo 67.º do RSTA. É que, enquanto no CPC se cura das consequências da falta de alegação de recurso jurisdicional (da decisão de um Tribunal para outro tribunal), o RSTA ocupa-se da alegação soit disant final do recurso contencioso.» E adiante concretiza a diferença: «Com efeito, a peça que em processo civil antecede as alegações a que alude o artigo 690.º é um simples requerimento (não fundamentado) de recurso. Lógico é que, se o recorrente não apresentar a sua alegação, o tribunal ad quem fica absolutamente impedido de conhecer as suas razões contra a decisão impugnada. Ao contrário, no contencioso administrativo necessariamente que o recorrente já expôs todos os fundamentos demonstrativos da ilegalidade do acto recorrido, pois, por via do artigo 36.º, n.º 1, alínea d), da LPTA, teve de, logo na petição: “Expor com clareza os factos e as razões de direito que fundamentam o recurso, indicando precisamente os preceitos ou princípios de direito que considere infringidos”». Note-se, todavia, que, segundo o artigo 690.º, n.º 4 (na actual redacção), do Código de Processo Civil, a mera ausência de conclusões – que não de alegações
– também pode bastar para que se não conheça do recurso, se o recorrente não der resposta ao convite do relator – ou dos juízes adjuntos – para apresentar conclusões, as completar ou esclarecer. Bem se vê, assim, que o que funda o
ónus de apresentar alegações e de incluir nestas conclusões não é apenas a circunstância de, na falta de alegações ou conclusões, o tribunal de recurso ficar impossibilitado de conhecer as razões do recorrente. É, sobretudo, o intuito de, por um lado, sujeitar as partes a uma disciplina processual que leve ao decaimento de acções irrelevantes ou só emotivamente iniciadas e, de, por outro lado, delimitar os poderes de conhecimento e, consequentemente, de decisão, dos tribunais: vejam-se os n.ºs 2 (primeiro parágrafo) e 3 do artigo
684.º do CPC (antes e depois da última reforma processual civil) e o novo artigo
684.º-A do CPC. O n.º 3 do artigo 684.º do Código de Processo Civil permite mesmo o estreitamento do objecto do recurso após as alegações, designadamente, aquando da produção das conclusões a convite do relator, e o próprio acórdão recorrido reconhece a possibilidade de as conclusões das alegações poderem «ir além do peticionado se da instrução do processo resultarem elementos atendíveis que o recorrente não pudesse inicialmente conhecer». O que, de todo o modo, resulta com clareza é que, mesmo que o Tribunal já possa conhecer em momento anterior as razões do recorrente contra a decisão impugnada, é nas alegações, e, mais precipuamente, nas suas conclusões, que se delimita o objecto do recurso, quer em processo civil, quer no recurso contencioso de anulação. Não pode, assim, afirmar-se qualquer diferença essencial, para o efeito cominatório da falta de alegações, entre o recurso em processo civil e o recurso contencioso de anulação, resultante do facto de o recorrente já ter exposto na petição de recurso os fundamentos pelos quais impugna a legalidade do acto recorrido. Ora, a recorrente foi notificada para produzir alegações finais no prazo de 20 dias. E, ao omiti-las, inviabilizou tanto o conhecimento da sua pretensão e a definição do objecto do recurso como se, tendo produzido alegações, tivesse enjeitado o convite do relator para juntar conclusões: não de facto, mas sim de direito.»
Por seu turno, no Acórdão n.º 403/2002, que tinha por objecto a norma que se extraía das disposições conjugadas dos artigos 178.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, 1.º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho), 67.º, § único, do RSTA, e 291.º, n.º 2, e 690.º, n.º 3, do CPC, segundo a qual a falta de alegações do recorrente no recurso das deliberações do Conselho Superior da Magistratura para o Supremo Tribunal de Justiça determina a deserção do recurso, e em que o recorrente sustentava que tal norma violava os artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição, ponderou-se o seguinte:
«Ora o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de julgar não inconstitucional o § único do artigo 67.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (no Acórdão n.º 741/98, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Março de 1999, bem como na Decisão Sumária n.º 20/2001, inédita), “enquanto determina, por remissão para os artigos 292.º e 690.º do Código de Processo Civil, que na falta de alegações do recorrente o recurso é julgado deserto” (Acórdão n.º 741/98). A circunstância de, no caso presente, tal norma ter de ser conjugada com as normas constantes dos artigos 178.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e do artigo 1.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos em nada altera a questão de constitucionalidade de que agora se trata. A verdade, todavia, é que a questão de constitucionalidade foi colocada e analisada pelo referido Acórdão n.º 741/98 à luz do princípio da igualdade, razão pela qual se torna agora necessário colocá-la em confronto com as regras constitucionais apontadas pelo recorrente, os artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição, que consagram o princípio do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, respectivamente, em geral e em particular no âmbito do contencioso administrativo. De todo o modo, e em primeiro lugar, têm pleno cabimento as considerações feitas no Acórdão n.º 741/98 para justificar a imposição do ónus de apresentar alegações nos recursos contenciosos de anulação, que são as seguintes:
[segue-se reprodução do n.º 7 do Acórdão n.º 741/98, já atrás transcrito] Em segundo lugar, e no que toca à garantia constitucional de acesso ao direito e
à justiça, o Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve a ocasião de explicitar quais são as suas exigências, para o efeito de com elas confrontar normas que impõem ónus processuais. Dessa jurisprudência resulta que não é incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de
ónus processuais às partes; necessário é que não sejam, nem arbitrários, nem desproporcionados, quando confrontada a conduta imposta com a consequência desfavorável atribuída à correspondente omissão. Assim, no Acórdão n.º 122/2002 (Diário da República, II Série, de 29 de Maio de
2002) escreveu-se:
“O direito processual constitui um encadeamento de actos com vista à consecução de um determinado objectivo, qual seja o de se obter uma decisão judicial que componha determinado litígio, o que, consequentemente, impõe, por um lado, que as ‘partes’ assumam posições equiparadas para desfrutarem de igualdade processual para discretear sobre as razões de facto e de direito apresentadas por uma e outra (cf., sobre o ponto, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, tomo I, págs. 364 e 365, e Acórdão n.º 223/95, deste Tribunal, publicado no Diário da República, II série, de 27 de Junho de 1995), e, por outro, para se alcançar uma justa e equitativa decisão, mister é que haja determinada disciplina, para, além do mais, se conseguir que a composição do litígio se não ‘perca’ por razões ligadas a livre alvedrio das mesmas ‘partes’, alvedrio esse que, no limite, poderia conduzir a uma ‘eternização’ de actos com repercussão na não razoabilidade da tomada de decisão em tempo útil. Daí que o processo, todo o processo – aqui se incluindo, obviamente o processo civil –, para além de dever ser um due process of law (v., de entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 249/97 e 514/98, publicados no jornal oficial, II série, de 17 de Maio de 1997 e de 10 de Novembro de 1998, respectivamente), tenha de obedecer a determinadas formalidades que, elas mesmas, não podem deixar de ser consideradas, numa certa perspectiva, como constituindo, inclusivamente, factores ou meios de segurança, quer para as ‘partes’, quer para o próprio tribunal. As formalidades processuais ou, se se quiser, os formalismos, os ritualismos, os estabelecimentos de prazos, os requisitos de apresentação das peças processuais e os efeitos cominatórios são, pois, algo de inerente ao próprio processo. Ponto é, porém, que a exigência desses formalismos se não antolhe como algo que, mercê da extrema dificuldade que apresenta, vai representar um excesso ou uma intolerável desproporção, que, ao fim e ao resto, apenas serve para acentuadamente dificultar o acesso aos tribunais, assim deixando, na prática, sem conteúdo útil a garantia postulada pelo n.º 1 do artigo 20.º da Constituição. Afora casos como esses, a exigência das formalidades processuais não poderá, destarte, ser vista como a prescrição de obstáculos à livre e desmedida actuação processual das ‘partes’.”
Ora, nos recursos de que agora nos ocupamos, o recorrente é notificado para apresentar alegações, não se podendo ver nesta exigência, em si mesma, um encargo particularmente gravoso. Para além disso, resulta expressamente da lei qual é a consequência da falta de apresentação: o facto de ser estabelecida mediante remissão não significa, naturalmente, que a cominação não esteja expressamente definida. Finalmente, não é materialmente injustificada a exigência da apresentação de alegações. Com efeito, embora o recorrente tenha de definir com rigor a sua pretensão na petição de recurso, não deve o legislador ficar impedido de lhe impor o ónus de, depois de conhecer a resposta da autoridade recorrida e as razões de eventuais contra-interessados, vir ao processo revelar se ainda mantém interesse no recurso e se o respectivo objecto continua ou não nos mesmos termos. Ora, sendo legalmente imposta a sua notificação para alegar e figurando expressamente na lei a consequência da falta de alegação, não viola seguramente o princípio do acesso ao direito e à tutela judicial efectiva que a lei ligue à abstenção do recorrente o significado da deserção do recurso.»
Nada mais se justifica acrescentar para se concluir pela não inconstitucionalidade da norma questionada.
3. Termos em que, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, se decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do § único do artigo 67.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º 41 234, de 20 de Agosto de 1957), enquanto determina que a falta de apresentação de alegações no recurso contencioso acarreta a sua deserção; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, na parte impugnada.”
1.2. A reclamação deduzida desenvolve a seguinte argumentação:
“1. Na douta Decisão Sumária, depois de se considerar que a questão, objecto do recurso, é de qualificar como «simples», por já ter sido objecto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, decidiu-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LCT, «a) Não julgar inconstitucional a norma do § único do artigo 67.° do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.°
41 234, de 20 de Agosto de 1957), enquanto determina que a falta de apresentação de alegações no recurso contencioso acarreta a sua deserção; e consequentemente, b) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, na parte impugnada».
Para tanto, a Decisão Sumária foi tomada com os fundamentos constantes dos Acórdãos n.ºs 741/98 e 403/2002, publicados no Diário da República, II Série, n.º 57, de 9 de Março de 1999, pág. 3486, e n.º 290, de 16 de Dezembro de 2002, pág. 20 511, respectivamente.
Salvo, porém, o devido respeito, que é muito, afigura-se à reclamante que aqueles doutos Acórdãos não consagram a melhor interpretação das normas em que se fundamentam, como se tentará demonstrar na análise de cada um dos referidos Acórdãos.
2. No Acórdão n.º 741/98, diz-se na Decisão Sumária, «foi especialmente analisada a invocada violação do princípio da igualdade, quer face à inexistência, para a falta de alegações do recorrido, de consequências jurídicas equiparáveis às ligadas à falta de alegações do recorrente, quer atenta a diversidade das situações da falta de alegações em recurso jurisdicional civil e da falta de alegações em recurso contencioso (no qual os fundamentos do pedido de anulação do acto impugnado já constam de petição inicial desse recurso) – sendo este último o argumento central utilizado pela recorrente na suscitação da questão de inconstitucionalidade».
2.1. Indicam-se, seguidamente, os fundamentos do Acórdão para dar como não verificada a alegada inconstitucionalidade.
E louva-se na lição de Alberto dos Reis.
Aqui, sem dúvida, que o recorrente deve levar à consideração do Tribunal superior as razões da sua discordância para com o julgado, porque o requerimento de recurso não contém os fundamentos por que o recorrente acha que a decisão deve ser anulada ou alterada.
Porém, no recurso contencioso as razões da discordância com a decisão administrativa impugnada têm de constar da petição de recurso.
E mais, o recorrente tem de aduzir na petição de recurso todos os vícios que imputa ao acto administrativo, só podendo posteriormente invocar novos vícios se tiverem chegado ao seu conhecimento depois da interposição de recurso.
Ou seja, a petição de recurso contencioso tem de especificar o pedido e a causa de pedir.
Por isso, não parece curial afirmar-se, como se faz na Decisão Sumária, que «... é nas alegações, e mais precisamente, nas suas conclusões, que se delimita o objecto do recurso, quer em processo civil, quer no recurso contencioso de anulação».
Com efeito, no recurso contencioso o pedido e a causa de pedir têm de constar da petição do recurso, enquanto no recurso jurisdicional cível o pedido e a causa de pedir constam das respectivas alegações – até porque não há outra peça processual anterior da qual possam constar.
Como consequência lógica, o objecto do recurso contencioso fica delimitado na petição de recurso, ao contrário do que sucede no recurso jurisdicional cível, em que o objecto só é delimitado nas alegações.
A afirmação de que o objecto do recurso contencioso é delimitado na respectiva petição inicial não é contrariada pelo facto de o recorrente poder limitar ou, em certas situações, alargar o objecto do recurso nas alegações pela singela razão de que se trata de uma faculdade, que o recorrente pode ou não utilizar, e não de um dever jurídico.
A conclusão a tirar é de que há uma diferença fundamental entre a falta de alegações no recurso contencioso e a falta de alegações no recurso jurisdicional civil: no primeiro caso, o Tribunal tem todos os elementos para proferir decisão, pondo termo ao litígio; no segundo caso, o Tribunal não pode julgar por desconhecer «as razões da sua discordância com o julgado, ou melhor, os fundamentos por que o recorrente acha que a decisão deve ser anulada, para que o Tribunal tome conhecimento delas e as aprecie», na lição de Alberto dos Reis, citada na Decisão reclamada.
Sendo realidades materialmente diversas, o efeito cominatório da deserção do recurso contencioso por falta de alegações é, no mínimo, sanção desproporcionada aos efeitos processuais derivados da referida falta – que não se vê quais sejam, além do não cumprimento de uma formalidade processual – ao contrário do que se passa com a falta de alegações no recurso jurisdicional cível.
2.2. Também não se aceita a argumentação aduzida no n.º 6 da Decisão Sumária quando se trata da posição de desigualdade existente entre o recorrente e o recorrido no recurso contencioso.
Não parece haver dúvidas de que há desigualdade injustificada entre as duas partes no processo contencioso.
É verdade que «... nenhum sentido faria dar por findo o recurso se o recorrente não produzisse alegações».
Mas já faz sentido perguntar quais são os motivos constitucionalmente relevantes para que a posição processual do recorrido não sofra qualquer efeito negativo por não apresentar resposta ou/e alegações.
Sem dúvida que as consequências para uma e outra parte por omissão de uma formalidade processual não podem ser as mesmas.
Mas podia, na falta de resposta ou de alegações, a inércia ser sancionada, nomeadamente com a de se considerarem procedentes as razões de facto e de direito aduzidos nas alegações do recorrente.
Nesta situação revelar-se-ia fundada de forma bastante a diferente posição processual do recorrido.
Não sendo assim, a diferenciação não é constitucionalmente fundada, ofendendo o princípio da igualdade de armas.
3. No Acórdão n.º 403/2002, a questão da constitucionalidade foi colocada em confronto com as regras constitucionais apontadas pelo recorrente, os artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição, que consagram o princípio de acesso ao direito e da tutela jurisdicional.
Neste Acórdão começou por afirmar-se terem pleno cabimento as considerações feitas no Acórdão n.º 741/98 para justificar a imposição do ónus de apresentar alegações nos recursos contenciosos de anulação e cujo n.º 7 é depois reproduzido e que também é transcrito na presente Decisão Sumária.
Mas, em relação a esta matéria já atrás dissemos as razões do desacordo da recorrente.
Em segundo lugar, e no que toca à garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça, afirma-se que «Dessa jurisprudência resulta que não é incompatível com a tutela constitucional, nem desproporcionada, quando confrontada a conduta imposta com a consequência desfavorável atribuída à correspondente omissão».
Ora, é precisamente neste juízo de proporcionalidade ou desproporcionalidade da consequência desfavorável atribuída à falta de alegações, como atrás se referiu, que a dúvida se suscita.
E, no entender da recorrente, a consequência desfavorável é proporcionada à omissão de alegações no recurso jurisdicional cível, mas é desproporcionada no recurso contencioso já que, mesmo na anterior LPTA, podia ser eliminada esta fase processual por constarem do processo todos os elementos necessários e suficientes para a decisão.
Depois, as transcrições feitas no Acórdão n.º 122/2002 reportam-se à ideia central de que «todo o processo tem de obedecer a determinadas formalidades que, elas próprias, não podem deixar de ser consideradas, uma certa perspectiva, como constituindo, inclusivamente, factores ou meios de segurança, quer para as partes, quer para o próprio tribunal... Ponto é, porém, que a exigência desses formalismos se não antolhe como algo que, mercê da extrema dificuldade que apresenta, vai representar um excesso ou uma intolerável desproporção, que, ao fim e ao resto, apenas serve para acentuadamente dificultar o acesso aos tribunais... Ora, nos recursos de que agora nos ocupamos, o recorrente é notificado para apresentar alegações, não se pode ver nesta exigência, em si mesma, um encargo particularmente gravoso».
A recorrente não pode deixar de estar de acordo com os princípios acima transcritos.
O que a recorrente sempre questionou e continua a questionar é a relevância atribuída às alegações no recurso contencioso a ponto de, na falta da sua apresentação, se considerar constitucionalmente compatível com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, do acesso ao direito, a uma decisão e à tutela efectiva, a sanção da deserção do recurso.
E a parte final da Decisão Sumária é particularmente significativa quando, depois de dizer, e bem, que «embora o recorrente tenha de definir com rigor a sua pretensão na petição de recurso» (sublinhado nosso), se dá como motivo para alegar vir ao processo revelar se ainda mantém interesse no recurso e se o respectivo objecto continua ou não nos mesmos termos (sublinhado nosso).
Perante tal objectivo atribuído às alegações, não pode deixar de se considerar intolerável e excessiva a sanção de deserção do recurso, pelo que se mostra violado o princípio de acesso ao direito e à tutela judicial efectiva.”
O recorrido não apresentou resposta à reclamação.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
A reclamante manifesta a sua discordância com a jurisprudência do Tribunal Constitucional que se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma do § único do artigo 67.º do RSTA, enquanto determina que a falta de apresentação de alegações no recurso contencioso acarreta a sua deserção, jurisprudência que a Decisão Sumária ora reclamada reiterou, mas não invoca argumentos novos, que não tivessem sido já ponderados nos citados Acórdãos n.ºs 741/98 e 203/2002 (e ainda na Decisão Sumária n.º
20/2001).
Como no primeiro daqueles acórdãos se salientou, é de rejeitar a alegação da violação do princípio da igualdade, derivada da diversidade de consequências da falta de alegações do recorrente e do recorrido, pela razão óbvia de que “uma tal desigualdade é ela própria resultante da diferente posição que as partes, recorrente e recorrido, assumem no recurso: nenhum sentido faria dar por findo o recurso se o recorrido não produzisse alegações”. A reclamante acaba por reconhecer esta evidência e, ao fim e ao cabo, o que vem sustentar é que deveria ser mais gravosa a consequência da falta de alegações do recorrido; mas, nesta sua perspectiva, a inconstitucionalidade radicaria na omissão da previsão de sanção para o recorrido que não alega, e não na previsão da sanção ora em causa.
Por outro lado, há que reconhecer que são distintas as funções e a natureza da petição do recurso contencioso e da subsequente alegação. É certo que naquela peça o recorrente deve “expor com clareza os factos e as razões de direito que fundamentam o recurso, indicando precisamente os preceitos ou princípios de direito que considera infringidos” (artigo 36.º, n.º 1, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos – Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho), mas trata-se de um articulado inicial, em que primacialmente se visa confrontar a entidade recorrida com a descrição dos factos tidos por relevantes e com a imputação ao acto impugnado dos vícios que sustentam o pedido da sua anulação ou declaração de nulidade, imputação esta que não é definitiva e que, em regra, é feita sem grande desenvolvimento do ponto de vista da discussão jurídica. Diversamente, na alegação, o recorrente deve começar por, face à instrução feita, indicar os factos, invocados por si, pela entidade recorrida e pelos contra-interessados, que considera provados; deve, depois, assumir se mantém a invocação de todos os vícios inicialmente imputados ao acto ou se abandona alguns deles e, sobretudo, pode proceder à invocação de novos vícios, desde que só tenha tido possibilidade de deles se aperceber após a apresentação da petição (designadamente, com a junção do processo administrativo aos autos); e deve, por fim, desenvolver a discussão jurídica da causa, nomeadamente com citação da jurisprudência e da doutrina relevantes, visando convencer o tribunal – a quem as alegações directamente se dirigem – das razões que lhe assistem. Não se trata, pois, de peças processuais que se possam considerar fungíveis. É possível que, em casos contados, sobretudo quando não tenha havido resposta da entidade recorrida ou contestação dos contra-interessados, pouco ou nada o recorrente tenha a acrescentar ao que aduziu na petição de recurso; mas então será extremamente fácil dar cumprimento ao ónus de apresentar alegações, que, mesmo nesses casos excepcionais, terão um
óbvio interesse de racionalização e ordenação do processo.
Por último – e decisivamente –, a solução legal questionada não se pode considerar de tal forma desrazoável que viole intoleravelmente o princípio da proporcionalidade. Como nos Acórdãos n.ºs
741/98 e 403/2002 se salientou, com remissão para outras decisões do Tribunal Constitucional, a imposição de ónus processuais só violará os direitos de acesso aos tribunais e de tutela jurisdicional efectiva se se revelar arbitrária ou intoleravelmente desproporcionada. Para aferição desta proporcionalidade, há que atender, designadamente, à adequação funcional do ónus imposto (isto é, à existência de um sentido útil e razoável da exigência desse ónus), à sua não excessiva onerosidade ou dificuldade de cumprimento e ao seu carácter não surpreendente (cf. Carlos Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, em Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs. 839-840). A exigência de apresentação de alegações no recurso contencioso surge dotada do sentido útil e razoável atrás indicado; o cumprimento desse ónus não representa para o recorrente tarefa especialmente difícil; e quer esse ónus quer a sanção prevista para o seu incumprimento são de há muito conhecidos dos litigantes no âmbito do contencioso administrativo. De tudo o exposto resulta a conclusão, desde sempre seguida pelo Tribunal Constitucional, da não inconstitucionalidade desse regime, por não violador do princípio da proporcionalidade.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do § único do artigo 67.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º
41 234, de 20 de Agosto de 1957), enquanto determina que a falta de apresentação de alegações no recurso contencioso acarreta a sua deserção; e, consequentemente,
b) Indeferir a presente reclamação, confirmando a Decisão Sumária reclamada.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Maio de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos