Imprimir acórdão
Proc. n.º 922/03
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. A., identificado nos autos, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora do acórdão do Tribunal Colectivo de Elvas, proferido em 12 de Março de 2003 (acórdão constante de fls. 160 a 343 destes autos), que o condenou na pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 170º, n.º 1, do Código Penal.
Nas alegações que então apresentou, o recorrente suscitou a inconstitucionalidade artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, tendo, quanto a essa questão, concluído assim (fls. 358 e seguintes):
“[...]
6º. O bem jurídico tutelado pelo artº 170º, n.º 1, não é a autodeterminação sexual.
7º. O Estado não tem legitimidade para criar bens jurídicos transpersonalistas, de carácter místico, recorrente a um direito penal de fachada para reprimir a organização e exploração comercial de condutas sexuais que se integram no chamado fenómeno da prostituição.
8°. O Estado democrático de direito distingue-se dos restantes precisamente por ser alheio a uma qualquer moral nacional ou de Estado ético. Antes sim,
9°. Visa a tutela e o respeito das diversas morais.
10º. A interpretação jurídica da norma inscrita no art° 170º, n° 1, não pode assentar num «texto legal» isolado do sistema jurídico, da base axiológica do Estado, em suma, da realização do direito.
11°. Com esta incriminação o bem protegido não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas persiste aqui uma certa ideia de «defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade», que não é encarada hoje como função do direito penal.
12°. Parece irrefutável no nível axiológico do Estado democrático de direito que esse crime está descriminalizado.
13°. Mais entende que a sua sustentação assenta em interpretação materialmente inconstitucional por colidir com o art° 1º da Constituição da República Portuguesa.
[...].”
2. Por acórdão de 18 de Novembro de 2003 (fls. 6 a 158), o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso.
A propósito da questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, decidiu-se no acórdão:
“[...]
É, na verdade, discutível que o bem jurídico protegido nesta norma seja, pelo menos de modo imediato, a liberdade de determinação sexual (a própria Prof.ª Anabela Miranda Rodrigues, citada pelo recorrente, tem a este propósito uma posição algo dúbia: começando por dizer, «Comentário Conimbricense do Código Penal», I, 519, que «com esta incriminação o bem protegido não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoal mas persiste aqui uma certa ideia de
‘defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade’, que não é encarada hoje como função do direito penal [...]», acaba por afirmar [op. cit., 531]: «o crime só pode ser entendido como um crime de resultado, pretendendo proteger-se – como se pretende, apesar de tudo – o bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual da pessoa). O STJ no seu Ac. de 7/11/90, BMJ 401°, 205, entendeu que «através do crime de lenocínio não é a prostituta que a lei quer proteger mas o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto» (no mesmo sentido já havia decidido a Relação de Coimbra, no seu Ac. de 12/6/85, CJ ano X,
3°, 118; o mesmo Tribunal agora no Ac. de 18/6/91 CJ ano XVI, 3°, 189, entendeu que «o interesse jurídico protegido pelos artºs 215° e 216° do Código Penal [de
1982, versão original] não é de natureza eminentemente pessoal, mas social, no sentido da protecção dos valores ético-sociais da sexualidade, na comunidade»; contudo, no sentido de que o bem jurídico aqui tutelado é o da liberdade individual, no aspecto sexual, cfr. Ac. STJ de 26/2/86, BMJ 354°, 350). Também o Tribunal da Relação do Porto, no seu Ac. de 29/05/2002, www.dgsi.pt, entendeu que «na previsão normativa do n° 1 do artigo 170° do Código Penal, epigrafado de lenocínio, o que está em causa, mais do que tudo, é a exploração de uma pessoa por outra, uma espécie de usura ou extorsão em que a ameaça ou tráfico de protecção se pode confundir com a exploração afectiva». No Ac. STJ de 19/3/1991, Proc. 41.428, 3ª sec., entendeu-se que no crime de lenocínio se visa «a punição dos actos que põem em causa, de forma relevante, os valores da comunidade e de concepções ético-sociais dominantes, devendo abranger sobretudo os actos que visam facilitar, explorar ou comercializar a entrega de mulheres». É este o entendimento que se nos afigura mais correcto e ao qual aderimos. Na realidade, exceptuadas as situações previstas no n° 2 do artº 170° do Cod. Penal e no artº 176° do mesmo diploma (em que o bem jurídico tutelado é, indiscutivelmente, a liberdade de autodeterminação sexual das pessoas), o crime de lenocínio protege, essencialmente, valores de natureza ético-social, essenciais à vivência em sociedade. Porém, o facto de não ser a liberdade de determinação sexual o bem jurídico directamente tutelado na norma em apreço não significa – não pode significar – que a actividade descrita no n° 1 do artº 170° do Cod. Penal se encontra descriminalizada. Que é crime resulta da vontade inequívoca do legislador que assim o considerou, tipificando tal conduta. Poder-se-á, porventura, defender (como o faz a Prof.ª Anabela Miranda Rodrigues, op. cit. 518/520) que de iure condendo, a solução mais adequada passaria pela descriminalização da conduta [o que, aliás, nem temos por seguro: a solução poderia passar, como propõe o relator deste acórdão «Crimes Sexuais» 68, nota 3
– em «transferir as disposições referentes ao lenocínio (artºs 170° e 176°) para o Título IV (‘Dos crimes contra a vida em sociedade’) onde constituiriam capítulo próprio, ao lado do crime de tráfico de pessoas (artº 169°) e do crime de exibicionismo previsto no artº 171º»]; de iure condito, porém, é inquestionável que a conduta em questão constitui crime, posto que «descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática» – artº 1, n° 1 do Cod. Penal. E nem se vê que esta interpretação conflitue com o artº 1º da Constituição da República Portuguesa, como refere o recorrente. Na realidade, não se vê de que forma a definição de Portugal como uma República soberana «baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária» se vê questionada com a criminalização do lenocínio; ou, vistas as coisas pelo ângulo inverso, não se vê em que é que a sociedade portuguesa ganharia em dignidade, em liberdade, em justiça e em solidariedade com a descriminalização da conduta daquele que, de forma profissional ou com intenção lucrativa, fomenta, favorece ou facilita o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo. Em suma: no mero plano do direito a constituir é, sem dúvida, legítimo questionar a necessidade de dar dignidade penal ao lenocínio (entendido como a actividade descrita no n° 1 do artº 170° do Cod. Penal); como, aliás, é sem dúvida discutível a necessidade de manter a punição do estupro (agora denominado de «actos sexuais com adolescentes»). Porém, no plano do direito constituído, é indiscutível que o lenocínio é crime previsto e punido no artº 170° do Cod. Penal, como nos parece claro que, assim entendendo, não se viola qualquer preceito constitucional, maxime o artº 1º da CRP, invocado pelo recorrente.
[...].”
3. Inconformado, o recorrente veio interpor o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 170º do Código Penal, por violação do artigo 1º da Constituição (requerimento de fls. 1 e 2).
O recurso foi admitido pelo despacho que consta de fls. 159 (e 376).
4. Nas alegações que apresentou neste Tribunal, o recorrente concluiu:
“1º. O art. 170º do CP tutela sentimento geral de pudor e moralidade.
2º. Tal significa proteger bens jurídicos transpersonalistas de
étimo moralista, por via do direito penal, o que contraria directamente o art.
1º da CRP.
3º. O Estado democrático visa o respeito das diversas morais, entendendo numa perspectiva de direito penal mínimo que apenas se deve dotar de dignidade penal bens jurídicos funcionais à realização normativa do Estado. O que não passa pelo sentimento geral de pudor e de moralidade.
Termos em que,
Deve ser declarada a inconstitucionalidade do art. 170º do CP, por violação do artº 1º da CRP.
[...].”
Nas suas contra-alegações, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal formulou as seguintes conclusões:
“1 – O crime de lenocínio do artigo 170º n.º 1 do Código Penal abarca a protecção de um bem jurídico complexo, não se limitando à tutela de um sentimento geral relativo à sexualidade, englobando também a personalidade de quem seja visado pela conduta do agente.
2 – O seu sancionamento penal em nada colide com o estatuído no artigo 1º da Constituição, nem representa qualquer violação do princípio da proporcionalidade consagrado no seu artigo 18º, n.º 2, gozando nesta matéria o legislador ordinário de uma ampla discricionariedade.
3 – Na incriminação do lenocínio não é posto em causa o carácter subsidiário do direito penal, nem se configura como excessiva a restrição imposta a quaisquer direitos, liberdades ou garantias, com protecção constitucional do agente da infracção penal.
4 – Não deve, assim, proceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II
5. O presente recurso tem como objecto a apreciação da conformidade constitucional da norma constante do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, que, na versão resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, dispõe como segue:
“Artigo 170º
(Lenocínio)
1. Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
2. [...]”.
6. A questão da conformidade com a Constituição da República Portuguesa da norma contida no artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, que pune o crime de lenocínio, foi primeiramente apreciada no Acórdão n.º 144/04, da 2ª Secção, em que o Tribunal se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma impugnada (publicado no Diário da República, II, nº 92, de 19 de Abril de 2004, p. 6082).
Nesse acórdão foram tratadas alegadas violações, pela norma em causa, não só do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18º, n.º 2, mas também dos artigos 41º (liberdade de consciência) e 47º, n.º 1 (liberdade de profissão), da Constituição da República. Distinguiram-se então as questões de constitucionalidade de quaisquer apreciações, no plano político-criminal, sobre a mesma norma, e concluiu-se, depois de identificar o bem jurídico protegido por esta, que o legislador não está constitucionalmente proibido de adoptar um tipo criminal como o que tal norma prevê.
Mais recentemente, em processo em que era invocada a violação, pela mesma norma, dos artigos 18º, n.º 2, 26º, n.º 1, 27º, n.º 1, 47º e 58º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal concluiu novamente no sentido da sua não inconstitucionalidade (Acórdão n.º 196/04, disponível em
www.tribunalconstitucional. pt).
Neste último acórdão, depois de invocar a decisão proferida no já citado Acórdão n.º 144/04, disse o Tribunal:
“[...] Ora, pode desde logo observar-se – embora tal não seja decisivo – que, se o Tribunal Constitucional entendesse que existia desconformidade da norma em causa com outros parâmetros constitucionais, para além dos então analisados – como por exemplo os artigos 26º, n.º 1, e 27º, n.º 1, conjugados com o artigo 18º, n.º 2, da Constituição –, lhe teria sido possível pronunciar-se pela inconstitucionalidade, nos termos do artigo 79º-C, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional. Verifica-se, porém, além disso, que a fundamentação expendida nesse Acórdão n.º
144/04 é inteiramente transponível para o presente processo, e, designadamente, para o confronto da norma em causa com os outros parâmetros invocados pelo agora recorrente: os artigos 58º (direito ao trabalho), 26º, n.º 1 (direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada e à identidade pessoal), e 27º, n.º 1
(direito à liberdade), da Constituição da República. Não se vê que, pelo confronto com estes direitos constitucionalmente consagrados, haja de chegar-se a solução diversa daquela por que se concluiu nesse aresto, no qual se confrontou já a norma em questão, designadamente, com o artigo 18º da Constituição [...], concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade.
[...]”.
Assim, remetendo para os fundamentos do Acórdão n.º 144/04, o Tribunal reafirmou o juízo de não inconstitucionalidade do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal.
7. O Tribunal entende uma vez mais que a argumentação que fundamentou a decisão proferida no Acórdão n.º 144/04 é transponível para o presente processo e, concretamente, para o confronto da norma questionada com o artigo 1º da Constituição.
Não deixará, a este propósito, de se recordar um trecho desse acórdão, que em especial releva para o caso dos autos:
“[...] subjacente à norma do artigo 170º, n.º 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado
é o da exploração da pessoa prostituída [...]. Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo «princípio» seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão
(seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei n.º 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em
1991, a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
[...]”.
Reitera-se, assim, uma vez mais que a norma do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, na versão resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, não viola a Constituição da República Portuguesa, e, designadamente, não ofende os princípios enunciados no artigo 1º.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos, mais amplos, constantes dos acórdãos mencionados, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça, em vinte unidades de conta.
Lisboa, 5 de Maio de 2004
Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida