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Processo n.º 802/03
3ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. foi condenado (conjuntamente com outro arguido), por sentença do 2ª Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, de 15 de Fevereiro de 2002, pela prática de um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 137º, n.º 1, do Código Penal e de um crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artigo 3º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro. Foi-lhe aplicada, em cúmulo, a pena única de 320 dias de multa à taxa diária de € 10, ao abrigo do disposto no artigo 77º do Código Penal, bem como a pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizados pelo período de seis meses, nos termos do artigo 69º do Código Penal.
Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual por acórdão de 20 de Novembro de 2002, de fls. 637, decidiu
“rejeitar o recurso, por manifesta improcedência, na parte em que o recorrente impugna matéria de facto, artigo 420º, n.º 1, do CPP, e conceder parcial provimento ao recurso, quanto à matéria de direito, revogando a decisão recorrida no que respeita à sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses, mantendo-se em todo o restante”.
Na parte que agora releva, afirmou-se o seguinte no mencionado acórdão:
«As Relações conhecem de facto e de direito, artº 428º, n.º 1, do Código de Processo Penal. No entanto no caso dos autos, embora se tenha procedido à documentação das declarações orais prestadas em audiência, o recorrente não deu cumprimento ao que dispõe o artº 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal. Senão, vejamos: Dispõe o artº 412º, n.º 3, do CPP que nas conclusões, quando se impugne a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida...', dizendo-nos o n.º 4 do citado normativo que 'quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição'. Ora, no caso dos autos o recorrente não procedeu em conformidade com o que impõe o referido normativo e também não procedeu à necessária transcrição, razão pela qual a matéria de facto apurada no Tribunal recorrido é insindicável por parte desta Relação, tendo-se a mesma como assente e imutável, artº 127º, do CPP. Todavia, o facto de se conhecer apenas de direito, não obsta a que se conheça dos vícios a que alude o artº 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, caso os mesmos resultem do texto da decisão recorrida. No caso em apreço o recorrente invoca os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, artº 410º, n.º 2, alíneas a) e c) respectivamente. Com efeito o que o recorrente pretendia era uma valoração diferente daquela que foi levada a cabo pelo Tribunal recorrido, o que esta Relação está impedida de fazer face ao que já foi explanado. Assim sendo, o recurso do recorrente na parte em que impugna a matéria de facto, está irremediavelmente condenado ao insucesso'.
2. Inconformado, A. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, mas o recurso não foi admitido, com base no disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal (despacho de fls. 669). Veio então, simultaneamente, reclamar para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e recorrer para o Tribunal Constitucional (cfr. fls. 671). A reclamação foi indeferida pelo despacho de fls. 749, de 20 de Março de 2003. Quanto ao recurso para o Tribunal Constitucional, foi proferido em 4 de Junho de
2003, a fls. 762, um despacho a determinar que o recorrente desse cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Em resposta, o recorrente, a fls. 766, veio esclarecer que o recurso é interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro e que tem como objectivo a apreciação da “inconstitucionalidade da norma do artº
412º n.º 3 e n.º 4 do C.P.P. com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida”, interpretação que, em seu entender, viola o n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Notificado para o efeito, o recorrente apresentou as respectivas alegações, tendo concluído da seguinte forma:
“1ª - A omissão do preceituado no artº 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP não pode, só por si, levar ao não conhecimento pelo Tribunal da matéria de facto e determinar que esta é dada como assente e imutável.
2ª - Com efeito, a perfilhar-se tal entendimento estaria desprotegido o constitucional direito ao recurso, e, por via deste, o direito constitucional de acesso à justiça e ao direito de defesa – artº 20º da C.R.P.
3ª - Não está excluída a possibilidade de correcção, esclarecimento ou aditamento através de convite.
4ª - Conforme foi decidido em situação paralela no Ac. TC 417/99, publicado no DR de 13.03.00, aceitar-se a interpretação que o despacho faz do artº 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP, seria aceitar-se a limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido.
5ª - Assim, deve verificar-se a inconstitucionalidade das normas do artº 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP por violação dos artºs 20º e 32º, n.º 1, da CRP se interpretadas no sentido de que a falta nas conclusões da especificação dos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados... bem como a falta de transcrição dos suportes técnicos, determina que a matéria de facto apurada pelo Tribunal recorrido seja imutável e dada como assente, sem dar prévia oportunidade ao recorrente de colmatar o vício, por um lado, e, por outro, deve ser enviado o processo à 1ª Instância Criminal para proceder à transcrição dos depoimentos gravados.”
O Ministério Público apresentou igualmente alegações, que concluiu nos seguintes termos:
“1 – O direito ao recurso por parte do arguido em processo penal, inclui-se no princípio constitucional das garantias de defesa e envolve a possibilidade de ver reapreciado por um tribunal superior a decisão proferida em 1ª instância sobre a matéria de facto.
2 – Cabendo à lei adjectiva definir os requisitos processuais em matéria de exercício do direito ao recurso, não podem, porém, ser estabelecidos ónus ou formalidades excessivas ou desproporcionadas que ponham em causa a essência daquele direito.
3 – Terão que ser tidas como inconstitucionais, por violação do artigo 32º, n.º
1, da Constituição, as normas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que a falta de indicação nas conclusões da motivação de recurso das menções contidas nas alíneas do referido n.º 3 e a falta de transcrição, tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso do arguido nessa parte, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência.
4 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
4. Cumpre começar por observar que, no âmbito do recurso que lhe cabe julgar, e seja qual for o sentido do julgamento que vier a ser proferido, o Tribunal Constitucional não pode “determinar(...) que o processo seja remetido ao Tribunal da 1ª Instância para proceder à transcrição dos depoimentos gravados”, como pretende o recorrente.
Feita esta observação, há que passar ao conhecimento do objecto do recurso.
É o seguinte o texto dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal:
Artigo 412º
(Motivação do recurso e conclusões)
(...)
1
3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
(...)
Constituem, assim, objecto do presente recurso as normas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal quando interpretadas no sentido de que a falta de especificação, nas conclusões da motivação, respectivamente, das menções contidas no n.º 3 e, quanto às contidas nas alíneas b) e c), pela forma referida no n.º 4, e no sentido de que a falta de transcrição, pelo recorrente, da prova gravada determina que a matéria de facto apurada pelo tribunal recorrido é insusceptível de ser alterada pelo tribunal de recurso, sem que seja dada ao recorrente a oportunidade de suprir os vícios.
O recorrente acusa tais normas de violarem os artigos 20º e 32º, n.º
1, da Constituição.
5. O Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de se pronunciar por diversas vezes sobre a admissibilidade da imposição às partes de ónus processuais cujo incumprimento afecte de forma irremediável direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente no âmbito do processo penal e, em particular, do direito ao recurso do arguido, consagrado no n.º 1 do artigo 32º da Constituição.
Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 428/2003 (Diário da República, II série, de 20 de Novembro de 2003), no qual foi julgada “inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a norma constante dos artigos
412º, n.º 1, 414º, nº 2 e 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de conclusões da motivação do recurso conduz à rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência”, disse-se o seguinte:
«6. Como se escreveu no (...) Acórdão n.º 260/2002, [Diário da República, II série, de 24 de Julho de 2002]“ O Tribunal Constitucional já por diversas vezes afirmou que se integra na liberdade de conformação do legislador ordinário a definição das regras relativas ao processamento dos recursos. Assim, por exemplo, no seu Acórdão nº 299/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., p. 699 e segs.), citado em vários acórdãos posteriores, o Tribunal Constitucional observou que “(...) o legislador tem ampla liberdade de conformação no estabelecimento das regras sobre recursos em cada ramo processual
(...)”; necessário é que essas regras não signifiquem a imposição de ónus de tal forma injustificados ou desproporcionados que acabem por importar lesão da garantia de acesso à justiça e aos tribunais ou, mais especificamente, no que toca ao processo penal, das garantias de defesa e de recurso afirmadas no citado nº 1 do artigo 32º.» E, embora a propósito de outras normas extraídas destes mesmos preceitos do Código de Processo Penal, o Tribunal Constitucional também já por diversas vezes analisou certas exigências de formalismo em matéria de recursos à luz do n.º 1 do artigo 32º da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, já que tem aqui aplicação o regime definido pelo n.º 2 do artigo 18º da Constituição para as restrições admissíveis aos direitos, liberdades e garantias. Assim, no seu Acórdão n.º 337/2000 (Diário da República, I Série A, de 21 de Julho de 2000), na sequência de julgamentos de inconstitucionalidade formulados em três casos concretos (Acórdãos nºs 43/99, 417/99, publicados no Diário da República, II série, respectivamente, de 26 de Março de 1999 e de 13 de Março de
2000 e 43/00, não publicado), o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional,
«com força obrigatória geral (...), por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, (...) a norma constante dos artigos 412º, n.º 1, e 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), quando interpretados no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência.» Julgou-se então, citando o Acórdão nº 417/99,que «tais normas impunham “uma limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal, restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça”». No Acórdão 320/2002 (Diário da República, I Série A, de 7 de Outubro de 2002), também aprovado na sequência de três julgamentos de inconstitucionalidade
(Acórdãos n.ºs 288/2000, 388/2001 e 401/2001, publicados, o primeiro, no Boletim do Ministério da Justiça n.º 497, p. 103 e, os dois últimos, no Diário da República, II série, de 7 de Novembro de 2001), foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, “por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo
412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência”». Em particular quanto à consequência do não conhecimento do recurso na parte relativa à decisão sobre a matéria de facto, como é agora o caso, e em que interessam os n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo 412º, o Acórdão n.º 529/03 (Diário da República, II série, de 17 de Dezembro de 2003) julgou inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1 da Constituição, a norma constante do artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso do arguido nessa parte, sem que ao mesmo seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência. No Acórdão n.º 322/04 (disponível em www.tribconstitucional.pt), cujo objecto era, em parte, idêntico ao que agora está em apreciação, o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional “a norma constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele n.º 3, pela forma prevista no referido n.º 4, tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência”, por violação do n.º 1 da Constituição.
É o sentido desta jurisprudência que agora se reitera, até porque também aqui, diferentemente do que sucedia no recurso julgado pelo Acórdão n.º
140/04 (Diário da República, II série, de 17 de Abril de 2004), em que o Tribunal Constitucional decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo
412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências”, se verifica que as faltas apontadas apenas ocorrem nas conclusões da motivação, e não na própria motivação em si.
É, assim, inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição, a norma que se extrai dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal quando interpretados no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugna a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas na alínea a) e, pela forma prevista no n.º 4, nas alíneas b) e c) daquele n.º 3, tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência.
6. Há, todavia, que considerar ainda a inconstitucionalidade que o recorrente atribui à norma do n.º 4 quando interpretada no sentido de que a falta de transcrição, pelo recorrente, da prova gravada tem o mesmo efeito imediato.
Sucede que, a este respeito, há que distinguir duas questões. Em primeiro lugar, a que se prende com a interpretação do n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal – a cujo propósito não pode deixar de se citar o Assento n.º 2/2003 do Supremo Tribunal de Justiça (Diário da República, I Série A, de 30 de Janeiro de 2003) que, posteriormente ao acórdão recorrido, veio fixar jurisprudência no sentido de que sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, a transcrição ali referida compete ao tribunal – no sentido da imposição, ao recorrente, do ónus de transcrição; e, em segundo lugar, a que se traduz em retirar imediatamente do incumprimento de tal ónus a consequência da impossibilidade de conhecimento do recurso da decisão da matéria de facto, sem que ao recorrente seja dada a mesma oportunidade de suprir a falta.
Relativamente à primeira, cumpre recordar que o Tribunal Constitucional já julgou não ser inconstitucional, nomeadamente por não infringir o n.º1 do artigo 32º da Constituição¸ a imposição de tal ónus ao recorrente que pretenda recorrer da decisão sobre a matéria de facto, no seu Acórdão n.º 677/99 (Diário da República, II série, de 28 de Outubro de 2000):
«6. Não cumpre a este Tribunal decidir se esta interpretação da lei processual penal é ou não a melhor. O que lhe compete é decidir se uma interpretação dos artigos 363º e 412º, nº 4, do Código de Processo Penal, segundo a qual os depoimentos prestados na audiência de julgamento perante o tribunal colectivo, e aí gravados, não têm que ser transcritos na acta, cabendo, antes, àquele que pretenda impugnar o julgamento da matéria de facto em via de recurso fazer a transcrição das provas que, em seu entender, impõem uma decisão diversa daquela da que recorre, viola ou não o princípio das garantias de defesa. A resposta – adianta-se já – é negativa.
(...) Impor-se ao recorrente o ónus de transcrever as pertinentes passagens da gravação da prova em que se baseia para extrair a conclusão da existência de erro no julgamento da matéria, de facto, não priva, pois, o arguido do direito de recorrer, nem tão-pouco torna o exercício deste direito particularmente oneroso. E, assim, não afecta o direito ao recurso, que, constituindo, embora, no processo penal, uma importante garantia de defesa, não é, todavia, um direito irrestrito tal que o legislador não possa condicionar mediante a imposição de certos ónus ao recorrente.»
Por esta mesma razão, o Tribunal reitera o juízo de não inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de caber ao recorrente o ónus de transcrição ali previsto. Já não se pode, no entanto, chegar à mesma conclusão no que toca à consequência imediata do incumprimento deste ónus, por se afigurar claramente excessivo, e não justificado por qualquer interesse constitucionalmente relevante, que a falta de transcrição dos suportes técnicos a que se referem as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal conduza imediatamente ao não conhecimento da impugnação da matéria de facto, sem que ao recorrente seja dada a possibilidade de suprir tal deficiência. Note-se, mais uma vez, que, no caso, consta da motivação do recurso a especificação das provas que imporiam uma decisão diversa daquela que foi adoptada pela primeira instância, bem como a referência aos respectivos suportes técnicos de gravação.
É certo que o Tribunal considerou já, no Acórdão n.º 122/02 (Diário da República, II Série, de 29 de Maio de 2002), não ser constitucionalmente exigível proferir um despacho de aperfeiçoamento quando o recorrente não tenha apresentado, em separado da alegação que produz, a transcrição dactilografada das passagens da gravação em que funda o erro na apreciação das provas. Simplesmente, esta decisão foi tomada no âmbito do processo civil e no domínio da vigência de uma versão do artigo 690º-A do Código de Processo Civil (anterior
à redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto) que explicitamente impunha ao recorrente o ónus da transcrição das passagens da gravação em que se fundava o seu recurso, explicitação não constante da letra do preceito de que agora nos ocupamos.
É, pois, inconstitucional, igualmente por violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição, a norma do n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de transcrição, pelo arguido recorrente, das gravações constantes dos suportes técnicos a que se referem as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do mesmo preceito, tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir a deficiência.
7. Assim, decide-se: a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a norma dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugna a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas na alínea a) e, pela forma prevista no n.º 4, nas alíneas b) e c) daquele n.º 3, tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência; b) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 4 do mesmo artigo 412º, quando interpretada no sentido de que incumbe ao recorrente o ónus de transcrição ali previsto; c) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a norma do n.º 4 do mesmo artigo 412º, interpretada no sentido de que a falta de transcrição, pelo arguido recorrente, das gravações constantes dos suportes técnicos a que se referem as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do mesmo artigo tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao mesmo seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência; d) Consequentemente, conceder parcial provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada em conformidade com os juízos de inconstitucionalidade formulados.
Lisboa, 2 de Junho de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão
Bravo Serra Luís Nunes de Almeida