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Processo n.º 432/04
3ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3ª secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Em acção especial de prestação de contas a correr os seus termos no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, que A., ora recorrido, interpôs contra B. e C., foi proferido despacho, em 19 de Dezembro de 2003, solicitando ao autor que
“junte aos autos certidões comprovativas de que o automóvel e o prédio referidos na conta-corrente de fls. 94 se encontram registados em nome dos requeridos”.
2. Notificado deste despacho o autor veio aos autos para, considerando que beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas e que não tem possibilidade de suportar os custos das certidões referidas, solicitar ao Tribunal que notifique “o 1º Cartório Notarial de Viana do Castelo, a fim de este enviar cópia da escritura de compra e venda (....) assim como, posteriormente tem que solicitar à Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo a certidão comprovativa do registo dessa escritura (...)”.
3. Este requerimento foi deferido por decisão de 16 de Fevereiro de 2004, na qual o Tribunal recusou aplicar o disposto no artigo 53º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, “na medida em que limita a gratuitidade de certidões aos pretendentes ao apoio judiciário e na parte em que se relaciona com a respectiva concessão, negando-a aos já beneficiados com esse apoio e que pretendem usá-las para instrução da causa em que sejam pleiteantes, por violação do princípio do livre acesso aos tribunais e do princípio da igualdade, previstos, respectivamente, nos artigos 20º e 13º da Constituição da República Portuguesa”. Para concluir dessa forma, escudou-se, designadamente, na seguinte fundamentação:
“A questão que se coloca é saber se o beneficiário de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas (em sentido amplo) tem direito à gratuitidade dos documentos necessários à instrução da causa em que sejam pleiteantes e dos actos notariais ou registrais porventura dela emergentes. O problema não tem merecido grande atenção por parte da doutrina e da jurisprudência. Já foi, contudo, decidido que apenas os pretendentes ao apoio judiciário, e na parte em que se relaciona com a respectiva concessão, estão dispensados do pagamento do custo de certidões, não o estando os já beneficiados com esse apoio (AcRL 24 Fev. 99, CJ t.l° p.54 e S. Costa, Apoio Judiciário - DL's 387-B/87, de 29 Dez, e 391/88, de 26 0ut, Anotados e Comentados, 2ª ed. p.346 e O Apoio Judiciário, 3ª ed. p.218). Funda-se esta orientação no disposto no art.53°-1 DL 387-B/87, de 29 Dez., segundo o qual 'Estão isentos de impostos, emolumentos e taxas os articulados, requerimentos, certidões e quaisquer outros documentos, incluindo actos notariais e de registo, para fins de apoio judiciários' - e a partir daqui conclui-se que, se a lei prescreve que a isenção
é só 'para fins de apoio judiciário', então abrange somente os actos destinados
à própria obtenção do apoio judiciário, mas já não tudo aquilo que vá para além desse objectivo. Com a Lei 30-E/2000, de 20Dez. - diploma que alterou o regime de acesso ao direito e aos tribunais, revogando, além do mais, aquele DL 387-B/87 -, o citado art.53° foi ligeiramente tocado; porém, quanto à questão agora em análise, a sua redacção manteve-se incólume: lê-se hoje no preceito que 'Estão isentos de impostos, emolumentos e taxas os requerimentos, certidões e quaisquer outros documentos pedidos para fins de apoio judiciário'. O que significa que, com a manutenção da locução 'para fins de apoio judiciário', a referida interpretação que era feita do art.53° -1 DL 387-B/87 tem que ser mantida à luz do art.53° Lei
30-E/00.
[...] Sem negar que também nós já antes alinhámos por essa orientação (decidindo que só os pretendentes ao apoio judiciário e na parte relacionada com a respectiva concessão, estão dispensados do pagamento do custo de certidões), a verdade é que uma mais cuidada abordagem da matéria, leva-nos hoje a questionar se essa solução estará em sintonia com os ditames constitucionais. O apoio judiciário é uma modalidade de protecção jurídica que se engloba no sistema de acesso ao direito e aos tribunais e visa garantir que ninguém se veja impedido ou dificultado, em razão da sua condição social ou cultural ou por insuficiência de meios económicos, de fazer valer os seus direitos. Aplicável em todos os tribunais, qualquer que seja a forma do processo e independentemente do estado em que a causa se encontre, é concedido para questões ou causas judiciais concretas ou susceptíveis de concretização, em relação às quais o respectivo requerente tenha um . interesse próprio e que versem sobre direitos directamente lesados ou ameaçados de lesão. O apoio judiciário é, portanto, um dos meios de concretização do princípio constitucional do livre acesso ao direito e do livre acesso aos tribunais: 'A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos' (art.20º-1 CRP). Na parte em que se refere à garantia da via judiciária, o princípio constitucional tem, obviamente, de contemplar todos os meios ou mecanismos necessários à obtenção de uma decisão judicial sobre uma questão juridicamente relevante, incluindo, assim, a possibilidade de acesso a todo e a qualquer elemento documental (nomeadamente para efeitos instrutórios/probatórios) destinado a conseguir uma plena e integral tutela jurisdicional. A jurisprudência constitucional vem caracterizando o direito de acesso aos tribunais como sendo 'entre o mais, um direito a uma solução jurídica de conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras' (Acs. TC 86/88 de 13Abr88, BMJ 376° p.237 e TC 444/91 de
20Nov91, BMJ 411° p.155). Ora, admitir que não está dispensado do pagamento do custo de certidões aquele que pretende a recolha de elementos destinados a fazer valer em juízo a sua pretensão (de acção ou defesa) e que, portanto, estão para além da obtenção do apoio judiciário em si mesmo (i.e., que não tenha que ver com a preparação e prova do pedido a ele atinente), é sem dúvida limitar ou condicionar o normal recurso à via judicial por parte de quem, apresentando-se como economicamente carenciado, oportunamente requereu e obteve apoio judiciário. Em última análise,
é negar o livre acesso aos tribunais ( e, numa acepção mais ampla, ao direito ), que - repete-se - pressupõe a possibilidade de exercício sem barreiras e sem entraves dos direitos e interesses reconhecidos por lei e, como sua decorrência, a liberdade de apresentação de quaisquer meios probatórios ('oferecer as suas provas', como se lê nos arestos supra citados) tendentes a tomar realmente efectiva a protecção judicial. Por isso, essa limitação, além de afrontar o princípio do livre acesso aos tribunais/garantia da via judiciária, coloca também em causa o princípio da igualdade de armas entre o pleiteante economicamente carenciado e o pleiteante não economicamente carenciado (ou que, pelo menos, não requereu ou não obteve a concessão de apoio judiciário), por não possibilitar o exercício de direitos (no caso, de cariz processual) de forma idêntica ou, no mínimo, em paridade prática; e o apoio judiciário visa também 'a concretização do princípio da igualdade perante a lei, traduzido no livre e igual acesso dos cidadãos ao tribunal para defesa dos seus direitos independentemente da insuficiência económico-financeira' (AcSTJ 21Out93, CJ-S t.3° p.76; sobre o princípio da igualdade processual de partes ou 'igualdade de armas', cf. AcsTC 324/86 de 19Nov86, DR II de 1Mar87, TC 358/86 de 16Dez86, DR II 11Abr87 e TC 359/86 de 16Dez86, DR II de 11Abr87 e, na doutrina, M. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p.365). Como escreve L. Rego, 'deve inferir-se da jurisprudência constitucional que ofendem a Constituição quaisquer regimes de excepção que deneguem, sem fundamento material bastante, em determinadas circunstâncias processuais, ao interessado economicamente carenciado, o acesso a todos os instrumentos em que se traduz a assistência ou o apoio judiciário' (Acesso ao direito e aos tribunais, p.90, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional). Nesta perspectiva, afigura-se-nos que aquela interpretação da norma contida no art.53° Lei 30-E/OO, de 20Dez, condiciona a eficaz actuação processual do interessado economicamente carenciado (e que já beneficia de apoio judiciário) consequentemente, está ferida de inconstitucionalidade por violação dos princípios do livre acesso aos tribunais (ou da garantia da via judiciária) e da igualdade (na vertente da igualdade processual de partes ou 'igualdade de armas') consagrados nos arts.20° e 13° CRP. [...]”
4. É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, o presente recurso obrigatório, para apreciação da constitucionalidade do artigo 53º da Lei n.º
30-E/2000, de 20 de Dezembro, quando interpretado em termos de limitar a gratuitidade de certidões aos pretendentes ao apoio judiciário e para efeitos da respectiva concessão, negando-a aos já beneficiados com esse apoio, para efeitos de instrução da causa principal, por alegada violação dos princípios do livre acesso aos tribunais e do princípio da igualdade, previstos, respectivamente, nos artigos 20 e 13º da Constituição.
5. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“1 - O direito de acesso à justiça implica que não possa ser denegado ou substancialmente restringido o acesso aos instrumentos processuais indispensáveis à efectivação das pretensões ou do direito de defesa, por parte dos litigantes, economicamente carenciados - incluindo o 'direito à prova', traduzido na obtenção e aquisição processual de documentos essenciais à demonstração das razões de facto alegadas.
2 - Incumbe ao juiz, por força do princípio da cooperação, providenciar pela remoção das 'dificuldades sérias” com que a parte se defronte na obtenção de tais documentos - devendo, neste caso, o tribunal requisitá-los oficiosamente - incluindo-se em tal dificuldade séria a impossibilidade económica de satisfazer as taxas ou emolumentos que seriam devidos, como condição da sua obtenção directamente pelo particular - e constituindo 'encargos do processo' esses custos, resultantes do exercício de tal poder-dever pelo juiz da causa.
3 - Deste modo, estando assegurada à parte economicamente carenciada o “direito
à prova”, consubstanciado na aquisição processual de tais documentos, não é inconstitucional o regime constante do artigo 53° da Lei n° 30-E/2000, ao não integrar no apoio judiciário os encargos resultantes para a parte da obtenção directa nos serviços de tais certidões ou documentos.
4 - Termos em que deverá proceder o presente recurso”.
6. Notificado, o recorrido nada disse.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
7. O artigo 53º da Lei n.º 30º-E/2000, de 20 de Dezembro, dispõe que: “Estão isentos de impostos, emolumentos e taxas os requerimentos, certidões e quaisquer outros documentos pedidos para fins de apoio judiciário”. Nos presentes autos foi recusada a aplicação deste preceito, por alegada violação dos princípios constitucionais do livre acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade, previstos, respectivamente, nos artigos 20 e 13º da Constituição, quando interpretado em termos de limitar a gratuitidade de certidões aos pretendentes ao apoio judiciário e para efeitos da respectiva concessão, negando-a aos já beneficiados com esse apoio, para efeitos de instrução da causa principal.
Antes de mais importa começar por evidenciar que não compete ao Tribunal Constitucional, como é sabido, tomar posição sobre a questão de saber qual é a
“melhor interpretação” do artigo 53º da Lei n.º 30º-E/2000, de 20 de Dezembro – se a que inclui se a que exclui do seu âmbito de aplicação as certidões requeridas pelos já beneficiados com o apoio judiciário, para efeitos de instrução da causa principal. Ao Tribunal Constitucional cumpre apenas decidir - salvo no caso de interpretações normativas de todo em todo inaceitáveis, em que se justifique a aplicação do disposto no artigo 80º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional - se a norma que se extrai desses preceitos, na interpretação por que efectivamente optou a decisão recorrida, está ou não de acordo com a Constituição e, designadamente, com princípios e normas invocados pelo recorrente.
No entender da decisão recorrida “admitir que não está dispensado do pagamento do custo de certidões aquele que pretende a recolha de elementos destinados a fazer valer em juízo a sua pretensão (...) é sem dúvida limitar ou condicionar o normal recurso à via judicial por parte de quem, apresentando-se como economicamente carenciado, oportunamente requereu e obteve apoio judiciário
(...) é negar o livre acesso aos tribunais (e, numa acepção mais ampla, ao direito), que - repete-se - pressupõe a possibilidade de exercício sem barreiras e sem entraves dos direitos e interesses reconhecidos por lei e, como sua decorrência, a liberdade de apresentação de quaisquer meios probatórios
('oferecer as suas provas', como se lê nos arestos supra citados) tendentes a tomar realmente efectiva a protecção judicial”. Conclui, então, que “essa limitação, além de afrontar o princípio do livre acesso aos tribunais/garantia da via judiciária, coloca também em causa o princípio da igualdade de armas entre o pleiteante economicamente carenciado e o pleiteante não economicamente carenciado (ou que, pelo menos, não requereu ou não obteve a concessão de apoio judiciário), por não possibilitar o exercício de direitos (no caso, de cariz processual) de forma idêntica ou, no mínimo, em paridade prática [...]”.
Vejamos.
É certo, e o Tribunal Constitucional tem-no repetidamente afirmado, que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, consagrado no artigo
20º, n.º 1, Constituição, implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva. Como se ponderou no Acórdão n.º 86/88
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 93, de 22-08-1988), no que constitui jurisprudência entretanto já por várias vezes reafirmada, o direito de acesso aos tribunais é, “entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras. [...]” (itálico acrescentado).
Ora, definido nestes termos o conteúdo essencial do direito fundamental de acesso aos tribunais, é manifesto que nele vai implicado o direito da parte economicamente carenciada a não ver negada ou substancialmente restringida a possibilidade de acesso a elementos essenciais de prova com exclusivo fundamento em dificuldades económicas já devidamente atestadas nos processo. Porém – como, bem, demonstra o Ministério Público na sua alegação – a interpretação normativa do artigo 53º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, que agora vem questionada, não coloca uma barreira inultrapassável ao acesso àqueles documentos, considerados essenciais - inclusivamente pelo próprio Tribunal, que os solicitou à parte - para a prova do direito em que se funda a pretensão do autor, fornecendo o próprio sistema processual civil, para utilizarmos as palavras do representante do Ministério Público, o “remédio processual adequado para suprir as dificuldades no exercício do «direito à prova» pelo litigante economicamente carenciado”.
Com efeito, não podendo a parte economicamente carenciada aceder directa e gratuitamente àqueles documentos pela simples invocação, junto das entidades administrativas competentes, do benefício do apoio judiciário, a mesma não fica, só por isso, irremediavelmente impossibilitada de conseguir a sua junção aos autos, podendo consegui-lo através da intervenção do tribunal. É que, por um lado, o artigo 266º, n.º 4, do Código de Processo Civil, estabelece que o juiz deve, sempre que a parte alegue justificadamente “dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual”, providenciar pela remoção do obstáculo, o que, no caso, pode ser feito mediante a requisição pelo próprio tribunal da certidão ao organismo competente para a sua emissão (cfr. art. 535º do CPC), constituindo os respectivos custos encargos do processo (cfr. art. 32º, n.º 1, al. b), do Código das Custas Judiciais), claramente abrangidos pelo benefício do apoio judiciário (cfr. art. 15º, al. a) da Lei n.º 30-E/2000).
Ora, prevendo o Código de Processo Civil as alternativas processuais adequadas a suprir a dificuldade de acesso aos meios de prova pela parte economicamente carenciada, gerada por uma interpretação do artigo 53º da Lei n.º 30-E/2000, de
20 de Dezembro, não procede o juízo de inconstitucionalidade que vem imputado a essa interpretação normativa, por dela não resultar uma quebra da garantia de protecção jurisdicional igual e eficaz implicada nos artigos 13º e 20º da Constituição. Acresce que esta solução - não permitir o acesso directo, irrestrito e gratuito a certidões mediante a simples invocação do benefício do apoio judiciário, mas apenas mediante a intervenção mediadora do Tribunal, que as solicitará ao abrigo das normas supra referidas quando as repute necessárias ao esclarecimento da verdade – poderá encontrar ainda justificação numa certa razão de cautela, precavendo contra os riscos de um exercício abusivo daquele direito.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 12 de Julho de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida