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Proc. nº 807/2003
2ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. requereu a constituição de assistente e a abertura de instrução no processo crime a correr termos na Comarca de Ílhavo, que havia sido arquivado dado que os factos apurados não integravam o crime previsto no artigo 215º, nº
1, do Código Penal. A Juíza de Instrução Criminal admitiu a intervenção como assistente e rejeitou o requerimento para abertura da instrução por inadmissibilidade legal da instrução
(fls. 106 a 117). A fundamentação de tal decisão foi, em síntese, a seguinte:
- Não resultava dos factos alegados pelo assistente em que concreto lugar e data terão os mesmos sido praticados, não podendo ser levada em consideração a remissão feita para os factos alegados na participação.
- Além disso, o requerimento apresentado contrariava o disposto nos artigos
287°, n° 2 e 283°, n° 3, alínea b), do Código de Processo Penal porque não continha a narração de factos que consubstanciassem um crime, faltando um dos pressupostos típicos do crime de usurpação de coisa imóvel, que era a utilização de violência ou ameaça grave.
- Em consequência, o arguido nunca poderia ser condenado pela prática do crime referido no requerimento para abertura de instrução com base na prova dos factos ali alegados, não podendo também, logicamente, ser pronunciado por esses factos e, se o fosse por outros não alegados, tal constituiria uma alteração substancial dos factos fazendo com que a decisão instrutória que pronunciasse o arguido naqueles termos, fosse nula ou mesmo juridicamente inexistente.
- Nos termos do artigo 287°, n° 3, do Código de Processo Penal o requerimento para abertura de instrução deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução e esta só seria legalmente admissível se aquele requerimento obedecesse aos requisitos previstos no n° 2 do artigo 287° do Código de Processo Penal.
- Ora, o requerimento em causa nestes autos enfermaria de nulidade, prevista no artigo 283°, n° 3, do Código de Processo Penal, para que remete o artigo
287°, n° 2, pois não continha a narração dos factos que fundamentasse a aplicação ao arguido de uma pena [artigo 283°, n° 3, alínea b)] não podendo tal nulidade considerar-se suprível.
- Sendo o prazo para requerer a instrução peremptório e em obediência ao princípio da estrutura acusatória do processo penal (artigo 32°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa) não deve o assistente, ser convidado a apresentar novo requerimento sendo certo que, no caso dos autos, a eventual apresentação de novo requerimento aperfeiçoado seria extemporâneo porque necessariamente apresentado fora do prazo para requerer a instrução.
2. O assistente interpôs recurso da decisão de rejeição do requerimento para abertura de instrução para o Tribunal da Relação de Coimbra, sustentando a inconstitucionalidade dos artigos 287º, nºs 2 e 3, e 283º, nº 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de a narração dos factos constante do requerimento de abertura da instrução apresentada pelo assistente não poder ser efectuada por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 8 de Outubro de 2003, negou provimento ao recurso com fundamento idêntico ao do despacho da Juíza de Instrução Criminal.
3. A. interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 8 de Outubro de
2003, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. A Relatora proferiu o seguinte despacho:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que figura como recorrente A. e como recorridos o Ministério Público e B., o recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, através de um recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, uma interpretação das alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º e dos nºs 2 e 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal, bem como uma dada interpretação dos artigos 105º, nº 1, 419º, nº 4, alínea a), e 420º do Código de Processo Penal. Contudo, quanto aos artigos 105º, nº 1, 419º, nº 4, alínea a), e 420º do Código de Processo Penal não foi suscitada durante o processo qualquer questão de constitucionalidade normativa. Com efeito, a questão apenas foi mencionada pela primeira vez no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade
(o que sempre consubstanciará uma suscitação tardia da questão de constitucionalidade normativa). Não se verifica, portanto, o pressuposto processual do recurso interposto, consistente na suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo, o que inviabilizará o conhecimento de tal questão.
2. Notifique-se o recorrente para produzir alegações quanto à questão relativa aos artigos 283º, nº 3, alíneas b) e c), e 287º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, suscitando-se, nos termos do artigo 3º do Código de Processo Civil, aplicável nos autos por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, a questão prévia relativa aos artigos 105º, nº 1, 419º, nº 4, alínea a), e 420º, do mesmo Código.
O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
A) Nos termos conjugados do artigos 69º da Lei do Tribunal Constitucional e do artigo 690º-2/b e /c do Código de Processo Civil
1- No toca à questão prévia, vem o recorrente dizer que a inconstitucionalidade do artigo 105º do Código de Processo Penal foi invocada na motivação de recurso interposto perante o Tribunal da Relação de Coimbra, nomeadamente nos artigos 108º, 105º, 106º, 107º e 109º a 112º daquela peça processual; já quanto aos artigos 419º-4/a e 420º do Código de Processo Penal, porque foram aplicados no acórdão recorrido, só foi possível ao recorrente suscitar a inconstitucionalidade da sua interpretação e aplicação no requerimento de interposição do presente recurso.
2- Com efeito, o recorrente não podia prever antecipadamente a rejeição do recurso antes que o mesmo fosse rejeitado com base naquelas normas, nem podia invocar a inconstitucionalidade in abstracto sensu, até mesmo a partir do simples parecer do Ministério Público, antes que o Tribunal soberanamente se pronunciasse.
3- Aliás, no caso em apreço, o espírito da lei constitucional permite que quando sejam aplicadas normas consideradas inconstitucionais num acórdão da Relação, sem que o recorrente possa prever antecipadamente tal aplicação nem disponha de oportunidade processual para suscitar tais inconstitucionalidades, designadamente, sem possibilidade de interpor recurso ordinário, a sua suscitação seja efectivada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
4- Pois, só assim se poderão garantir os direitos fundamentais do recorrente, nomeadamente, o direito a uma tutela constitucional efectiva conforme o preceituado nos artigos 20º, 202º e 221º da Constituição.
5- Com efeito, o requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado com base na sua inadmissibilidade legal, quando seja formulado no
âmbito de um processo especial, sumário e sumaríssimo; ou, por quem não tenha legitimidade para tal, verbi gratia, por parte civil, pelo Ministério Público, ou pelo assistente quando se trate de crimes particulares em sentido estrito. Confrontar Simas Santos e Leal-Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, II Volume, 2ª edição, página 163.
6- Ainda que “do próprio requerimento para abertura de instrução resulte falta de tipicidade da conduta (...), somos a entender que, mesmo assim, a instrução não poderá nem deverá ser logo recusada por inadmissibilidade
–sublinhado nosso- servindo, todavia, para analisar também essas questões. De resto, cotejando o texto deste n.º 3 com o art. 329º do C.P.P. de 1929, forçosamente será de concluir que o legislador não quis um âmbito tão lato de denegação de instrução –sublinhado nosso-, arredando agora as situações em que o juiz verifique não ter havido crime (...)”. Confrontar Simas Santos e Leal-Henriques, in obra citada, página 163.
7- De mais a mais, “O n.º 2 do art. 287º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução.
O que aliás resulta directamente da finalidade assinalada à instrução pelo n.º 1 do art. 286º: obter o controle judicial da opção do M. P..
Ora, se a instrução surge na economia do código com o carácter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional, da judicialização da fase preparatória.
A garantia constitucional esvaziar-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados”. Confrontar José Souto de Moura, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, página 119.
8 - “Por maioria de razão, será de afastar a rejeição da instrução assente na sua “inadmissibilidade legal”, se esta se cifrasse na opinião do juiz segundo a qual, não há crime (...). É que haver ou não crime (...), para além de dizer respeito ao mérito da pretensão, pode muito bem ser o diferendo que se quer ver resolvido pelo juiz, na sequência dum mínimo de contrariedade que só se assegurará pelo debate instrutório, quanto mais não seja”. Confrontar José Souto de Moura, in obra citada, página 120.
9 - “Não pode ser rejeitada a instrução com fundamento na inadmissibilidade legal da mesma, apoiando-se tal conclusão na inexistência nos autos de indícios suficientes para integrar os crimes que são imputados ao arguido no requerimento de abertura de instrução”. Confrontar Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
26 de Abril de 2000.
10 - “A insuficiência dos factos, suas consequências e seus autores não integra o conceito de inadmissibilidade legal, a que se refere o n.º 2 do art.
287º do C.P.P. e por isso a sua reapreciação está vedada ao juiz para justificar a recusa da instrução. Confrontar Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de
12 de Julho de 1995.
11 - Portanto, segundo a jurisprudência supra citada, é inconstitucional a interpretação feita pelo acórdão recorrido, dos artigos 283º e 287º do Código de Processo Penal, segundo a qual é de rejeitar o requerimento para a abertura da instrução com base na sua inadmissibilidade legal fora dos casos expressamente fixados na lei, isto é, quando seja formulado no âmbito de um processo especial ou por quem não tenha legitimidade, não podendo os Tribunais inferiores interpretar aquelas normas, extrapolando os seus limites normativos..
12 - Com efeito, a interpretação atribuída pelas duas instâncias às normas constantes nas alíneas /b e /c do n.º 3 do artigo 283º e do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal, viola os princípios do Estado de Direito Democrático, da legalidade democrática, da tutela jurisdicional efectiva e da função jurisdicional consagrados nos artigos 2º, 3º-2, 20º, 202º-1 e 2 e
203º da Constituição.
13 - De facto, num Estado de Direito Democrático cujo princípio é suposto ser o alicerce principal da nossa Constituição e da nossa Ordem Jurídica, os Tribunais não podem interpretar e aplicar a Lei para além da sua letra e do seu espírito.
14 - Muito pelo contrário, devem ser os primeiros a respeitá-la, para que no mínimo, tenham legitimidade material para administrar a justiça em nome do povo, tal como, exclusivamente, lhes compete.
15 - Porque devem obediência e respeito ao princípio da legalidade, ou mais amplamente, ao princípio da juridicidade, os Tribunais devem fazer plena aplicação de todos os princípios constitucionais, sob pena de se desvirtuar o sentido real que o legislador pretendeu atribuir às normas do Código de Processo Penal em causa nestes autos e cuja declaração da inconstitucionalidade da interpretação se requer.
16 - Embora a independência dos tribunais compreenda a autonomia na interpretação do Direito, esta não pode ser arbitrária, sendo que a interpretação levada por diante pelas duas instâncias não é mais do que a negação da protecção jurídica dos direitos do recorrente, negação essa violadora do princípio da proibição da indefesa, em que aquele se viu privado da tutela judicial.
17 - Pois bem, “os tribunais apenas estão sujeitos à lei. Este termo, porém, designa aqui obviamente não apenas as leis em si mesmas (art. 115º-1) mas também todas as demais normas que constituem a ordem jurídica, a começar, naturalmente, pela Constituição, que é a lei fundamental da República”. Confrontar J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, página 795.
18 - “É obvio que sendo o Estado constitucional informado pelo princípio do Estado de direito, a subordinação à lei significa subordinação a normas legítimas, isto é, normas materialmente válidas: jurisdição significa “dizer o direito”, não “o não direito”. Por outro lado, o princípio do Estado de direito implica a sujeição aos princípios jurídico-materiais inerentes ao estado democrático-constitucional”. Confrontar Idem, Ibidem.
19 - Em sede de instrução criminal, o tribunal, ao arrepio da jurisprudência citada no despacho de rejeição do requerimento para abertura da instrução, veio invocar a nulidade insuprível do mesmo, por falta de obediência aos requisitos formais dos artigos 283º-3/b e 287º-2 do Código de Processo Penal.
20 - Ora, a rejeição do requerimento para abertura da instrução com base na sua inadmissibilidade legal em virtude da nulidade insanável do mesmo pela preterição dos requisitos formais é inconstitucional, no entendimento do recorrente, pela violação dos artigos 2º, 3º-2, 20º, 202º- 1 e 2, e 203º da Constituição, pelos mesmos fundamentos supra alegados.
21 - É que nesta vertente interpretativa das normas impugnadas e cuja interpretação o recorrente pretende ver declarada pelo Tribunal Constitucional, as normas legais sub judice mais do que claras são de interpretação e de aplicação estrita e expressamente taxativas.
22 - Com efeito, dispõe o artigo 119º do Código de Processo Penal: “constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais…”, sendo as restantes sanáveis, dependentes de arguição.
23 - A jurisprudência não deixa de se pronunciar relativamente a esta questão, fincando que “a nulidade por incumprimento do art. 283º, n.º 3 do C.P.P. –falta de narração na acusação dos factos imputados- não é insanável e, por isso, tem de ser arguida até 5 dias depois da notificação do despacho que recebeu a acusação, ou equivalente”. Confrontar Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
5 de Maio de 1993.
24 - Portanto, considerando que a referida nulidade declarada no despacho de rejeição do requerimento para a abertura da instrução não se enquadra no normativamente taxativado pelo artigo 119º do Código de Processo Penal; e que a mesma não foi arguida pelo Ministério Público nem pelo arguido no prazo legalmente fixado, aquele Tribunal não podia dela conhecer e muito menos declará-la, em virtude de ter ficado, irremediavelmente, sanada.
25 - A decisão proferida no despacho judicial que rejeitou o requerimento para a abertura da instrução afirmou tratar-se de nulidade que não podia considerar-se suprível; ora, entende o recorrente que aquele despacho não tinha que tecer considerações acerca da decência ou conveniência da lei ou falta dela, por imposição do artigos 8º e 9º do Código Civil.
26 - Ao invés, devia ter aplicado o que os artigos 119º e 120º do Código de Processo Penal taxativamente prescrevem, não podendo, concomitantemente, criá-la
à margem da lei, por forma a não prejudicar o direito do assistente a uma tutela jurisdicional plena e efectiva.
27 - Aliás, considera o recorrente por ausência de fundamentos jurídico-legais do despacho de rejeição, que não existe tal nulidade, conquanto o assistente narrou, ainda que de forma sintética e com remissão para a queixa e para os autos, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena de natureza criminal, bem como, as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento.
28 - No caso sub judice, a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, nos termos do artigo 123º-2 do Código de Processo Penal, deveria ter -enquanto poder-dever-, ordenado oficiosamente a reparação de tal irregularidade, no momento em que da mesma tomou conhecimento, caso o Tribunal entendesse que tal irregularidade afectava o valor do acto praticado.
29 - Porém, não entendemos que houvesse in casu irregularidade. Apenas, porventura, deficiência por falta de descrição de pormenores factuais que jamais poderiam interferir com a análise do pleito e com a boa decisão da causa.
30 - O requerimento do assistente não tem de revestir a forma de acusação, embora equivalha a uma acusação, nem conter a imputação objectiva e subjectiva dos factos ao arguido, podendo apenas descrever em súmula, os factos ocorridos, isto é, os factos concretos que possam preencher os elementos objectivos e subjectivos do crime imputado ao arguido. Confrontar Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de Março de 1995 e, do Tribunal da Relação de Évora, de
14 de Abril de 1995.
31 - Ora, inversamente ao entendimento perfilhado pelas duas instâncias, o assistente fixou o objecto do processo ao descrever os factos participados por si, abrangendo as suas declarações e as do arguido, bem como, os depoimentos das testemunhas proferidos em sede de inquérito, subsumindo-se aquele conjunto de factos ao tipo legal de crime de usurpação de coisa imóvel, previsto e punido pelo artigo 215º do Código Penal; sem obviamente, esquecer-se de argumentar as razões factuais e jurídicas da sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento proferido.
32 - Por conseguinte, por meio do requerimento para abertura da instrução, o assistente vinculou tematicamente o juiz de instrução, isto é, cumpriu os formalismos processuais tendentes à pronúncia do arguido pela prática do crime de usurpação de coisa imóvel.
33 - Para além do mais, a Meritíssima Juíza considerou que, caso admitisse a instrução, esta desembocaria numa alteração substancial dos factos, interpretando, entre outros, de forma absolutamente errada o artigo 1º/f do Código de Processo Penal, o qual estipula que há alteração substancial dos factos quando “tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
34 - In casu, não haveria lugar a uma alteração substancial dos factos, porque os mesmos foram delimitados tanto no inquérito como no requerimento para abertura da instrução, por reprodução in totum; apenas fazendo deles uma qualificação jurídica diferente da do Digníssimo Procurador-Adjunto.
35 - Quanto muito, poderia haver uma alteração não substancial daqueles factos, no decurso dos actos de instrução ou do debate instrutório, pelo que então se deveria observar o disposto no artigo 303º-1 do Código de Processo Penal, sempre em conformidade com os princípios do contraditório e da defesa.
36 - Apesar de a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal ter entendido que
“não pode sequer considerar-se a remissão feita pelo requerente para os factos alegados na participação, atenta a supra referida função de garantia que assume a descrição do objecto do processo no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente”,
37 - A lei permite, nos termos do artigo 391º-B-1 do Código de Processo Penal no que toca à acusação do Ministério Público, em processo abreviado, que a narração dos factos possa ser efectuada, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia.
38 - Aliás, na prática, o Ministério Público, em processo comum, não deixa de fazer o mesmo, conforme o despacho de acusação “repescado” num processo a correr termos no Tribunal Criminal de Coimbra, que ora se junta e que se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos. Confrontar documento n.º 1.
39 - Não terá o ora recorrente legitimidade para questionar a aplicação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado, no meio destas decisões judiciais totalmente opostas e desconformes em relação à Lei e ao Direito?!
40 - Aquele princípio, enquanto princípio estruturante do bloco de constitucionalidade, determina a igualdade dos cidadãos entre si e, entre o Estado e os cidadãos perante a lei, designadamente, uma igualdade de posição no que concerne aos direitos e aos deveres.
41 - Ora, todas as funções estaduais, incluindo o Ministério Público enquanto
órgão do Estado e, os tribunais enquanto órgão de soberania estão vinculados à Constituição e inclusivamente a este princípio.
42 - Implicando uma igualdade de armas tanto no processo e sua tramitação como na posição de sujeito processual.
43 - E não se venha dizer que a lei é diferente em razão das diversas formas de processo, pois, os princípios que vinculam a acusação pública são os mesmos seja qual for a forma de processo.
44 - Aliás, sendo o direito processual penal unitário, os princípios que regem uma forma devem reger a outra e, consequentemente, as garantias dos sujeitos processuais devem ser as mesmas tanto numa forma de processo como noutro, tanto perante o tribunal singular como perante o tribunal colectivo.
45 - Por conseguinte, a interpretação dos artigos 283º-2/b e /c e 287º-2 do Código de Processo Penal, segundo a qual não é permitido na acusação do assistente, ínsita no requerimento para abertura da instrução fazer-se a remissão da identificação do arguido e a narração dos factos para a denúncia, tal interpretação – dizíamos – é inconstitucional por força do artigo 13º da Constituição.
46 - Por último, o despacho de rejeição do requerimento para abertura da instrução é inconstitucional pela interpretação inconstitucional das normas processuais penais supra invocadas e aplicadas, interpretação inconstitucional essa por violação dos arts. 2º, 3º-2, 20º, 202º-1 e 2, e 203º da Constituição, que ao rejeitar o referido requerimento se pronuncia sobre o mérito do mesmo, sem previamente abrir a instrução, fase legalmente habilitada para valorar o seu objecto, a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido e realizar o controle jurisdicional da decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito.
47 - Com efeito, estando a rejeição do requerimento para abertura da instrução vinculada aos pressupostos plasmados no artigo 287º-3 do Código de Processo Penal, não podia o referido despacho pronunciar-se liminarmente sobre a matéria objecto da instrução, não a tendo sequer aberto.
48 - Com efeito, a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, para além de se ter pronunciado sobre a rejeição, também se pronunciou sobre o mérito da pretensão do assistente, sem previamente instruir o processo e sem realizar todas as diligências instrutórias requeridas.
49 - E, é neste sentido que o recorrente entende que se encontra violado o princípio do contraditório, pelo facto de não se ter conferido ao assistente a possibilidade de ver realizadas as diligências instrutórias tendentes à comprovação judicial da existência de indícios suficientes à pronúncia do arguido, e não pelo sentido atribuído pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
50 - Aliás, ao contrário do afirmado por aquele Tribunal, não foi possibilitado materialmente ao recorrente impugnar o despacho de arquivamento, porquanto lhe foi negado o direito de discutir, de contestar e de valorar os fundamentos do mesmo.
51 - Também por esta via, o despacho de rejeição acabou por configurar uma decisão instrutória já que o mesmo versou sobre matéria que só teria cabimento legal em sede de instrução efectiva e plena, mediante a realização de todas as diligências legalmente admissíveis, quer tivessem sido requeridas pelo assistente, quer o Tribunal entendesse por bem ordená-las oficiosamente a fim de contribuir para a descoberta da verdade e para a realização da Justiça.
52 - O que na realidade sucedeu ao longo de todo o processo, foi a prolação de decisões que subverteram o sentido da lei penal e processual penal para que os direitos do assistente aparentassem não ter sido violados e, em consequência, não serem merecedores de tutela jurídica e jurisdicional.
53 - Se ao juiz de instrução fosse permitido valorar o mérito da pretensão do assistente através de um despacho de rejeição, sem o mínimo de contraditoriedade, a instrução tornar-se-ia inútil, em clara violação da Lei, do Direito e da Justiça,
54 - Consubstanciando a antecipação da oportunidade da decisão, ao arrepio dos princípios básicos do direito processual penal, nomeadamente os da oralidade e do contraditório, devendo a decisão basear-se numa reflexão, apreciação e ponderação dos indícios de facto e dos elementos de direito para justificar a submissão do arguido a julgamento.
55 - Tanto a Constituição da República Portuguesa como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem garantem a proibição de indefesa do particular junto dos
órgãos judiciais junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.
A violação da tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais do processo penal acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito, daí resultando prejuízos para o seus interesses.
56 - Reza o n.º 1 do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que
“Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei (...)”; assim também o artigo 20º-4 da Constituição.
57 - Com efeito, o despacho de rejeição do requerimento para abertura da instrução foi proferido quase um ano após a sua interposição, prazo que não é de todo razoável, face às já mencionadas violações da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
58 - O direito de acesso aos tribunais só se efectiva em cada caso concreto se as decisões forem proferidas num prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência. Só assim se pode cumprir o estabelecido no artigo 20º da Constituição e no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
59 - É de dez dias o prazo consignado no artigo 105º-1 do Código de Processo Penal, conjugado com o disposto no artigo 160º-1 do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 4º do Código de Processo Penal. Confrontar também António Augusto Tolda Pinto, in A tramitação processual penal, página 677.
60 - “O direito de acesso aos tribunais concretiza-se também através do direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas.
Este direito é uma dimensão ineliminável do direito a uma tutela judicial efectiva.
As partes formais num processo judicial em tramitação têm o direito de obter do órgão jurisdicional competente uma decisão dentro dos prazos legais pré-estabelecidos, ou, no caso de esses prazos não estarem fixados na lei, de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade do processo”. Confrontar Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, página 163.
61 - Por conseguinte, resulta inconstitucional a interpretação e a aplicação dada pelo tribunal de primeira instância aos artigos 105º-1 e 287º-3 do Código de Processo Penal, pela prolação da decisão sub judice muito para além dos dez dias que a lei consagra para o efeito,
62 - Situação que se repercutiu inelutavelmente na ausência de decisão em tempo oportuno e razoável, frustrando as legítimas expectativas do assistente a ver dirimido o litígio de forma célere e eficaz.
63 - Em bom rigor, a frustração da obtenção de uma decisão judicial em tempo razoável colidiu directamente com o “imperativo categórico” da paz social, objectivo a atingir por meio de decisões justas, oportunas e exequíveis.
64 - À data em que foi rejeitado o requerimento para abertura da instrução, já longe no tempo iam os factos praticados pelo arguido, sendo que em sede de instrução, o legislador processual penal não exige mais do que a comprovação judicial de indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento. E,
65 - Não obstante a necessidade de se comprovar apenas a existência de tais indícios, não se pode considerar que a decisão proferida um ano mais tarde seja susceptível, independentemente do seu conteúdo, de realizar uma justa
“composição de interesses”, e logo, de permitir a realização da Justiça.
66 - Aderindo ao parecer do Ministério Público, o Tribunal da Relação de Coimbra veio rejeitar, em conferência, o recurso interposto pelo recorrente. Contudo, este entende que o Acórdão da Relação deveria ter sido proferido após Julgamento e não em conferência, de acordo com o que infra se refere.
67 - “A rejeição do recurso, por manifesta improcedência traduz-se numa figura equivalente à ineptidão da petição inicial em processo civil, não representando o recurso rejeitado naquelas condições mais do que uma peça processual que não possui aptidão para ser apreciada, não tendo pois o tribunal de recurso que conhecer da bondade ou da jurisdicidade das conclusões formuladas pelo recorrente”. Confrontar Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Novembro de 1998, processo n.º 749/98-A.
68 - Ademais, “após várias flutuações sobre o que deveria ser considerado como
“manifestamente improcedente”, parece ter-se estabilizado a doutrina do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que, nessa expressão se compreendem, pelo menos, as seguintes situações:
(…)
b) Quando o recurso verse sobre matéria de direito e se baseie em interpretação da lei contra a letra desta ou dos seus sentidos possíveis, quando estes existam”. Confrontar Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, página 112.
69 - Entende o Supremo Tribunal de Justiça que é manifestamente improcedente o recurso quando é clara a sua inviabilidade, “quando no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições jurisprudenciais sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso”. Confrontar Simas Santos e Leal-Henriques, in obra citada, página 111 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Janeiro de 2002.
70 - O Acórdão da Relação tal qual foi proferido, em contraposição com a jurisprudência citada viola o direito a um recurso efectivo nos termos do art.
20º da Constituição, quedando-se por um non liquet, em virtude de não se ter pronunciado sobre o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente e, ademais,
71 - Estando o recurso no seu todo, devidamente fundamentado tanto do ponto de vista legal como jurisprudencial, o mesmo devia ter sido julgado em audiência.
B) Das normas jurídicas violadas
De acordo com o supra exposto, entende o recorrente terem sido violadas as seguintes normas jurídicas:
- 105º-1, 419º-4/a, 420º, bem como o art. 283º-3/b e /c, 287º-2 e 3, tal como 123º nº 2, 119º e 120º; 141º-3, 144º-1, 61º-3/b; 263º, 241º, 243º, 262º,
413º-2, do Código de Processo Penal;
- 160º-1 do Código de Processo Civil;
- 215º-1, 191º, 212º, 369º-1 do Código Penal;
- art. 26º da Lei 34/87, de 16-06;
- art. 7º do Código de Registo Predial;
- arts. 2º, 3º-2, 13º, 20º, 32º, 202º-1 e 2, 203º, 221º da Constituição da República Portuguesa.
- artigos 1º, 6º-1, 8º, 9º-2, 10º-1, 13º, 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
- artigo 1º do Protocolo nº 1 Adicional à Convenção supra mencionada;
Termos em que se requer a Vossas Excelências que considerem procedente o presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação feitas, tanto no despacho de rejeição do requerimento para abertura de instrução como no Acórdão recorrido: a) dos arts. 283º-3/b e /c e 287º-2 e 3 do Código de Processo Penal, no sentido de que é de rejeitar o requerimento para abertura de instrução com base na sua inadmissibilidade legal fora dos casos previstos na lei, isto é, quando seja formulado no âmbito de um processo especial ou por quem não tenha legitimidade; b) dos arts. 283º-3/b e /c e 287º-2 e 3 do Código de Processo Penal, no sentido de que é de rejeitar o requerimento para abertura de instrução com base na sua inadmissibilidade legal, em virtude de nulidade insanável do mesmo, pela preterição dos requisitos formais constantes destas normas; c) dos arts. 283º-3/b e /c e 287º-2 e 3 do Código de Processo Penal, no sentido de que não é permitido no requerimento para abertura de instrução fazer-se remissão da identificação do arguido e narração dos factos para a denúncia e restantes elementos constantes do inquérito; d) arts. 105º-1 e 287º-3 do Código de Processo Penal, segundo o sentido de que o despacho de rejeição da instrução pode ser proferido para além do prazo de dez dias legalmente fixado; e) bem como, declarando-se a inconstitucionalidade da aplicação, no Acórdão recorrido, dos arts. 419º-4/a e 420º do Código de Processo Penal, no sentido de que é rejeitado, em conferência, o recurso mesmo que devidamente fundamentado do ponto de vista legal e jurisprudencial.
O Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
1 - O recurso do n° 1, alínea b) do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, tem por objecto normas aplicadas durante o processo, só podendo ser interposto por quem tenha suscitado a questão de inconstitucional idade de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de estar obrigado a dela conhecer, face ao disposto no artigo 72°, n° 2, do mesmo diploma.
2 - Tais pressupostos apenas se verificam relativamente às normas dos artigos
283°, n° 3, alíneas b) e c) e 287°, nos 2 e 3 do Código de Processo Penal.
3 - O direito do ofendido de intervir no processo penal nos termos da lei, consagrado no artigo 32°, n° 7 da Constituição, tem que ser conjugado com as garantias de defesa em processo penal, com tutela constitucional acrescida.
4 - A obrigatoriedade do requerimento de instrução do assistente conter expressamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma sanção penal e a indicação das disposições legais aplicáveis, sob pena de nulidade, não configura exigência excessiva, nem toma constitucionalmente censurável, que, pela não observância destes requisitos, a instrução não venha a ser aberta, por legalmente inadmissível, no quadro de um processo penal de estrutura acusatória.
5 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso.
O recorrido não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar.
II Fundamentação A) Questão prévia
4. O recorrente afirma que suscitou uma questão de constitucionalidade reportada ao artigo 105º do Código de Processo Penal nos artigos “108º, 105º,
106º, 107º e 109º a 112º” das alegações de recurso perante o Tribunal da Relação de Coimbra. Tais artigos, constantes das alegações, têm o seguinte conteúdo:
105° Reza o n.º 1 do art. 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que
“Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei (...)”;
106° Ora, como muito bem salienta a Meritíssima Juíza a quo, “o requerimento de abertura de instrução foi remetido no dia 25 de Fevereiro de 2002 (...) e o processo foi distribuído como instrução no dia 18 de Abril do mesmo ano, ou seja, quase dois meses depois.
107° Mais, no caso sub judice, o despacho de não admissão, foi elaborado no dia 13 de Fevereiro do corrente ano e notificado ao assistente alguns dias depois, isto é, no passado dia 24 de Fevereiro, véspera do primeiro aniversário da interposição do rejeitado requerimento.
108° Com efeito, um ano para que a Meritíssima Juíza a quo se pronuncie e da forma como se pronunciou não é de todo razoável, melhor dizendo, é completamente irrazoável, para além de violar a Constituição da República Portuguesa (Vide arts. 2°, 3°, 13°, 20º, 32°, 202° e 203°) e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
109° Diga-se de passagem e fazendo bem as contas, a Meritíssima Juíza a quo necessitou em média de um mês para redigir cada página, com a agravante de que o despacho de que ora se recorre não passa, basicamente, de uma mera transcrição de um acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Maio de 2001, in C.J., Ano XXVI, Tomo III, págs. 238 e ss..
110° O direito de acesso aos tribunais deve ser a solução jurídica a que se deve chegar em cada caso concreto, num prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência. Só assim se pode cumprir o estabelecido no art. 20° da C.R.P. e 6° da C.E.D.H..
111°
“Em face do requerimento apresentado, o juiz de instrução faz uma apreciação do respectivo conteúdo, proferindo despacho de deferimento ou indeferimento, no prazo de 5 dias (...)”, prazo esse hoje em dia de 10 dias (Vide art. 105° do C.P.P.). Cfr. António Augusto Tolda Pinto, in A tramitação Processual Penal, pág.677.
112°
“O direito de acesso aos tribunais concretiza-se também através do direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas. Este direito é uma dimensão ineliminável do direito a uma tutela judicial efectiva. As partes formais num processo judicial em tramitação têm o direito de obter do
órgão jurisdicional competente uma decisão dentro dos prazos legais pré-estabelecidos, ou, no caso de esses prazos não estarem fixados na lei, de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade do processo”. Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág.
163.
É manifesto que de tais artigos das alegações de recurso não resulta a imputação do vício de inconstitucionalidade a uma dada norma ou dimensão normativa, mas sim a uma concreta actuação do juiz (nomeadamente, à demora na prolação de uma decisão). Não se retirando da argumentação expendida qualquer dimensão normativa, não se verifica o pressuposto processual do recurso interposto, consistente na suscitação durante o processo de uma questão de constitucionalidade normativa. Quanto às normas dos artigos 419º, nº 4, alínea a), e 420º do Código de Processo Penal, não foi suscitada antes da prolação da decisão recorrida qualquer questão de constitucionalidade normativa. O recorrente sustenta que não teve oportunidade para suscitar tal questão antes da prolação da decisão recorrida. No entanto, não foi proferida qualquer decisão objectivamente imprevisível e inesperada. Com efeito, o tribunal recorrido considerou que o recurso era manifestamente improcedente, aplicando as normas que prevêem a rejeição do recurso no caso de manifesta improcedência. A circunstância de o recorrente não configurar a possibilidade de o recurso por si interposto vir a ser considerado manifestamente improcedente não significa que a decisão que assim considerou o recurso interposto seja surpreendente. O recorrente poderá afirmar que assim entende (de resto, em coerência com o recurso que subscreveu), mas a dispensa do ónus da suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo só poderia ocorrer se tivesse sido demonstrada pelo recorrente (ou os autos evidenciassem inequivocamente) a aplicação de uma interpretação que os elementos do processo não permitissem configurar como possível a um mandatário medianamente diligente. Ora tal não aconteceu. Não se verifica, portanto, o pressuposto processual do recurso interposto, consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa. Não se tomará, pois, conhecimento do objecto do recurso relativamente às normas dos artigos 105º, 419º e 420º do Código de Processo Penal.
B) Questão de constitucionalidade da norma do artigo 283º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal
5. Nos presentes autos é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas. A questão de constitucionalidade suscitada implica, pois, uma breve análise do estatuto processual do assistente.
6. O ofendido tem o direito de intervir no processo nos termos da lei (artigo
32º, nº 7, da Constituição). O assistente tem, em geral, no processo penal português, a posição de colaborador do Ministério Público (artigo 69º do Código de Processo Penal) a quem compete exercer a acção penal (artigo 219º, nº 1, da Constituição). Trata-se de uma solução que por um lado potencia a eficácia da investigação, já que admite a participar no processo um sujeito envolvido no conflito social inerente à prática do crime (e, nesta medida, contribui para a boa aplicação do direito), e por outro lado é uma solução que cria condições de pacificação social, dado reconhecer o estatuto do sujeito processual à vítima do crime, que tem assim a possibilidade de intervir, através de actuação própria, na realização da justiça penal. O estatuto do assistente encontra-se, genericamente, definido no artigo 69º do Código de Processo Penal. Integra esse estatuto a faculdade de requerer a abertura da instrução (artigo 287º do Código Penal). O reconhecimento do assistente como sujeito processual, bem como o seu estatuto processual não despublicizam, no entanto, o processo penal. Com efeito, o processo penal tem essencialmente natureza pública, pois é ao Estado que cabe o exercício da acção penal (note-se que mesmo nos crimes particulares é o Ministério Público que dirige a investigação). Por outro lado, cabe sublinhar que o processo penal português tem como vertente fundamental a tutela das garantias de defesa. Desse modo, o estatuto do assistente não é equiparável ao do arguido. A apreciação da questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos remete, pois, para a ponderação dos valores e princípios, por vezes conflituantes, que conformam a estrutura processual bem como as várias soluções no plano infraconstitucional.
7. O assistente, já se referiu, tem a faculdade de requerer a abertura da instrução. Tal faculdade, no caso concreto, foi exercida na sequência da prolação do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público. Esse requerimento consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal. A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução. Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa. Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis. Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo
283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução. Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo
283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada. Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos? A resposta é negativa. Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo
(recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo. De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa. Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo. Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito. Por último, não releva para o juízo de não inconstitucionalidade que se formula a circunstância de o artigo 391º-B do Código de Processo Penal (que contém a disciplina do processo abreviado) admitir a narração dos factos por remissão para o auto de notícia. Como refere o Ministério Público, no processo abreviado está em causa pequena criminalidade e só pode ter lugar quando existem provas simples e evidentes e, também, indícios claros da prática do crime. São essas circunstâncias que legitimam uma tramitação célere e desformalizada. No entanto, sempre se dirá que o estatuto do assistente não tem (nada o impõe) que se equiparar totalmente ao do Ministério Público. Não existe, pois, paralelismo entre a situação invocada e a dos autos, pelo que o argumento do recorrente não colhe.
8. Conclui-se, portanto, pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação.
III Decisão
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 19 de Maio de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos