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Processo n.º 192/02
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam em Secção no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. intentou acção declarativa de investigação de paternidade contra B., pedindo que fosse “reconhecido e declarado que o R. é pai biológico do A.”. Por despacho da Juíza do Tribunal de Círculo do Porto, proferido em 30 de Outubro de 1997, foi indeferida liminarmente a petição inicial, por se considerar procedente a excepção peremptória de caducidade do direito de acção, tendo o réu sido absolvido do pedido, com os seguintes fundamentos:
“(...) Ora, a presente acção encontra-se prevista e regulada nos arts. 1869º a 1873º do Cód. Civil sendo certo que no art. 1869º se prevê que ‘a paternidade pode ser reconhecida em acção especialmente intentada pelo filho se a maternidade já se achar estabelecida ou for pedido conjuntamente o reconhecimento de uma e outra.’ Contudo, preceitua o art. 1873º que ‘é aplicável à acção de investigação de paternidade, com as necessárias adaptações, o disposto nos arts. 1817º a 1819º e
1821º’. E, preceitua o art. 1817º, n.º 1, que ‘a acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação’. Por sua vez o n.º 4 do mesmo artigo dispõe que ‘se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano, a contar da data em que cessou aquele tratamento’. Em face do exposto temos que o autor só poderia propor a presente acção até perfazer vinte anos ou dentro do prazo de um ano, a contar da data em que cessou o tratamento como filho por parte do réu. Não obstante, o réu, segundo afirma o autor, recusa-se a reconhecer a paternidade e se teve algum tipo de tratamento paternal com o autor fê-lo só até este perfazer 10 anos de idade contribuindo com quantias para a sua criação. Por outro lado, o autor neste momento tem já 36 anos de idade.
É, por isso, absolutamente patente que o direito que o autor tinha de propor a presente acção caducou já há muito tempo, caducidade essa que é do conhecimento oficioso – art. 333º do Cód. Civil. Pelo exposto, atenta a tramitação dada aos autos e o disposto no art. 234º-A do C.P.C., indefere-se liminarmente a petição inicial.”
2. O autor recorreu deste despacho para o Tribunal da Relação do Porto, com os seguintes fundamentos:
“(...)
1. O direito do recorrente surgiu na esfera jurídica em 14 de Janeiro de
1961, data de nascimento (...);
2. Quando o direito do recorrente surgiu na sua esfera jurídica não estava a acção interposta sujeita a qualquer prazo de caducidade, nos termos do Código Civil (de Seabra) e do Decreto de 25 de Dezembro de 1910;
3. O prazo de caducidade é um prazo substantivo, integrador do próprio direito a intentar a acção, especialmente excepcionado do regime prescricional, nos termos do art. 144º do Código de Processo Civil em vigor, pelo que a lei nova o não pode determinar quanto a direitos que a ele não estavam sujeitos:
4. A restrição do período temporal para intentar uma acção de investigação de paternidade efectuada pelo presente Código Civil, não pode, nos termos do art. 12º do mesmo código, ser aplicável;
5. E para a constituição da filiação é aplicável a lei pessoal do progenitor à data do estabelecimento da relação, nos termos do art. 56º do presente Código Civil.
6. Não restam dúvidas quaisquer que a legislação aplicável ao caso em apreço não é a legislação presentemente em vigor (...);
7. Pelo que o Douto Tribunal de Círculo do Porto aplicou indevidamente a legislação actualmente em vigor, devendo ter aplicado a citada pretérita legislação e não ter considerado ter caducado o prazo de interposição da presente acção;
8. Deveria ter considerado não estar a acção sujeita a prazo qualquer de caducidade. Assim não fosse e
9. O direito plasmado no art. 26º da CRP é um direito absoluto e indisponível;
10. Há, pois, que ver se o direito à identidade pessoal compreende o direito ao estabelecimento da filiação;
11. Se sim, qualquer prazo de caducidade que limite o direito do cidadão, no caso o recorrente, é, por natureza, inconstitucional e, então, não poderia o Douto Tribunal de Círculo do Porto ter aplicado legislação que impedisse a pretensão do recorrente;
12. Se não, não podemos ir por aí.” E concluiu:
“1. A petição inicial não é inepta;
2. O direito do recorrente a intentar a acção de investigação de paternidade é um direito substantivo;
3. A lei aplicável ao caso é o Decreto de 25 de Dezembro de 1910 e no que este não se oponha à do Código Civil de Seabra;
4. Tal legislação não contempla qualquer prazo de caducidade para intentar a acção em apreço;
5. Violou o Douto Tribunal de Círculo do Porto, o art. 12º do actual Código Civil, o art. 56º do mesmo código, o art. 37º do Decreto de 25 de Dezembro de
1910, conhecido como Lei de Protecção dos Filhos e identificado como o n.º 2 e disposições aplicáveis ao Código Civil de Seabra;
6. Mesmo que, nos termos da legislação ordinária, houvesse o direito do recorrente caducado, tal legislação seria inconstitucional;
7. Nunca podendo ser aplicada;
8. Violou o Douto Tribunal de Círculo do Porto o art. 26º da Constituição da República Portuguesa;
9. Não há qualquer outra causa que possa levar à ineptidão da petição inicial, quer por natureza, quer pela função da réplica, quer pelo postulado no art. 508º do Código de Processo Civil.” Notificado para contra-alegar, o demandado pugnou pela manutenção do despacho recorrido. Por acórdão de 30 de Abril de 1998, o Tribunal da Relação do Porto decidiu conceder provimento ao recurso, revogando “o despacho em causa (na parte em que indeferiu a petição)” e ordenando “a sua substituição por outro que assegure o prosseguimento da acção”, com os seguintes fundamentos:
“Importa, pois, decidir, se deveria ter sido indeferida liminarmente a petição. Nos termos do art. 684º, n.º 2, do Código de Processo Civil, se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas. Parece daqui resultar que, quanto aos fundamentos, não haveria restrições. A este propósito, adverte, porém, o Prof. Castro Mendes (Recursos, 60) que ainda pode haver restrições quanto aos fundamentos de conhecimento da vontade do recorrente. E pelas mesmas razões, poderá, a nosso ver, haver restrições no que concerne às nulidades que não são de conhecimento oficioso. Ressalvada a devida consideração, a Sr.ª Juíza não poderia ter proferido despacho de indeferimento liminar, porquanto não se verificava qualquer dos casos das alíneas a) a e) do n.º 4 art. 234º do CPC, a ter em conta, por remissão do n.º 1 do art. seguinte. Terá, assim, cometido uma nulidade enquadrável na alínea d) do n.º 1 do art.
668º, conjugada com o n.º 3 do art. 666º, sempre do citado Diploma Legal. A qual não é de conhecimento oficioso. Se não é de conhecimento oficioso e não foi levantada nas conclusões das alegações, está, pelas razões apontadas, fora de conhecimento deste tribunal. Nos termos do n.º 1 do citado art. 234º-A do Código de Processo Civil, pode o juiz indeferir liminarmente a petição, quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias e de que o juiz deva conhecer oficiosamente. Esta última parte está aqui arredada, de sorte que o despacho será de manter – na parte em causa no presente recurso – se o pedido for manifestamente improcedente e não será de manter na hipótese contrária. A Sr.ª Juíza fundamentou o seu despacho do seguinte modo:
‘O A. nasceu em 14.1.1961; A acção foi intentada em 5.9.97; Decorreu há muito o prazo previsto no n.º 1 do art. 1817º do Código Civil, aplicável por remissão do art. 1873º do mesmo código; A acção só seria tempestiva se se verificasse o tratamento a que alude o n.º 4 de tal preceito; Foi alegado, na petição inicial, que as contribuições monetárias do réu para sustento do A., cessaram quando este atingiu 10 anos de idade; Logo, está excluído o referido tratamento; O que determina a conclusão da intempestividade da acção.’ Esta construção jurídica encerra em si dois pontos de discórdia: Um diz respeito à constitucionalidade do mencionado art. 1817º, n.º 1; Outro cifra-se na questão de saber se é ao autor que cabe provar os factos integrantes do ‘tratamento’ como filho ou se é ao réu que incumbe provar a ausência deles. Reiteradamente, tem o Tribunal Constitucional decidido não se verificar a apontada inconstitucionalidade (cfr., nomeadamente, os Acs. n.ºs 413/89 e
451/89, no BMJ n.º 387º, 262 e 388º, 561). E tem sido entendimento de que os factos relativos ao ‘tratamento’, integrando uma contra-excepção, terão de ser alegados e provados pelo A. Mas a discutibilidade de tais decisões retira o carácter de evidência à improcedência, evidência essa, exigida para o indeferimento liminar. No anterior art. 474º do Código de Processo Civil, já se consagrava uma redacção semelhante à da manifesta improcedência da lei actual para justificar tal indeferimento. E, a respeito daquela, escreveu o Prof. Castro Mendes (Lições policopiadas de
1971-72, III, 44):
‘A falta destes pressupostos processuais só justifica o indeferimento liminar quando for manifesta ou evidente. Na dúvida, o juiz não deverá estudar para decidir, mas sim mandar citar o réu’. E referiu o Dr. Paulo Pimenta (Processo Civil, ed. de 1995, III, 54):
‘Deve dizer-se, em abono da verdade, que esta situação não é de ocorrência muito frequente, pois só em casos contados é que a inviabilidade da pretensão é evidente ou manifesta. Em caso de dúvida, o juiz não deve indeferir a petição, mas ordenar a citação do réu ... ’
........................................................................................................... Numa primeira análise pode parecer chocante e contrário aos princípios de eficiência processual, que se deixe seguir uma acção cujo desfecho se entende conduzir – ainda que de modo discutível – ao malogro. Este raciocínio, contudo, tem contra ele duas ordens de razões: A primeira assente na letra da lei (que, aliás, na redacção actual, exclui da enorme maioria dos casos o próprio despacho liminar, independentemente do seu conteúdo); A segunda, porquanto a definição factual feita na petição inicial pode ser alterada na réplica, nos termos do art. 273º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dando outros contornos aos fundamentos da decisão a tomar. Assim, no caso presente, por mera hipótese de raciocínio, o A. poderia, na réplica, vir alterar o que referiu a propósito do tratamento e sustentar que tiveram lugar actos integrantes deste até altura compatível com o prazo do art. 1817º, n.º 4, do Código de Processo Civil. Não nos parece, pois, haver justificação para indeferimento liminar.” Desta decisão veio o demandado interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual por acórdão datado de 3 de Dezembro de 1998, decidiu negar provimento ao recurso e confirmar na íntegra o acórdão recorrido.
3. Remetidos os autos ao Tribunal Cível da Comarca do Porto, o juiz ordenou, por despacho datado de 14 de Janeiro de 1999, a notificação das partes para o preceituado no n.º 4 do artigo 234º do Código de Processo Civil. Notificadas as partes, autor e réu vieram dar por reproduzidas a contestação, réplica e tréplica já oferecidas nos autos. Por sentença datada de 8 de Novembro de 2000, o Tribunal Cível da Comarca do Porto decidiu julgar “procedente a excepção de caducidade do direito do autor a investigar judicialmente a sua paternidade”, absolvendo o réu do pedido, com os seguintes fundamentos:
“Assente a consagração constitucional de um direito fundamental ao reconhecimento da paternidade, a solução da questão colocada pelo autor, segundo se afigura, passa por determinar se a consagração de um prazo para o exercício de tal direito constitui consagração de verdadeira restrição ao seu conteúdo ou simples condição de exercício do mesmo. Isto porque na primeira hipótese, a norma que consagra a restrição deve respeitar o estatuído nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, o que já não sucederá no segundo caso. Desde logo o facto de o n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil não estabelecer pressupostos materiais para o surgimento do direito (como sucedia na redacção originária do artigo 1860º do Código Civil), apenas fixando um prazo para o exercício de um direito que existirá para todos com o mesmo conteúdo material, inculca a noção de que inexiste restrição ou estreitamento do conteúdo do direito mas somente determinação da forma por que deve ser exercido. Por outras palavras, o conteúdo do direito a saber quem é o seu pai não varia; deve é ser exercido em determinado prazo.
É certo que a distinção entre normas de restrição e normas de condicionamento será na prática muitas vezes difícil de estabelecer, havendo sempre, por isso, que submeter as concretas normas em análise ao crivo da adequação e proporcionalidade utilizado para aferir da conformidade à Constituição das normas restritivas (cfr., neste sentido, Prof. José Carlos Vieira de Andrade, in Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa de 1976, Coimbra Editora, 1987, pág. 228). Ainda assim se entende não existir violação da Constituição. Isto porque ao direito do filho a (re)conhecer o seu pai perfilam-se outros interesses merecedores de tutela constitucional – desde logo o interesse público na certeza e segurança jurídica, sempre presente em toda a regulamentação jurídica e intimamente ligado à consagração de qualquer prazo o exercício de um direito (cfr. artigo 20º da Constituição da República Portuguesa), designadamente o interesse do pretenso pai em não ver indefinidamente protelada a situação de incerteza quanto à verdadeira paternidade; a harmonia familiar do pretenso pai (artigo 67º da Constituição da República Portuguesa) – cfr., sobre a questão, o já referido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/88. Ora, com a consagração do concreto prazo de caducidade para a instauração de acção de investigação de paternidade afigura-se ter sido atingido um equilíbrio entre os vários direitos em jogo. Assim, a invocada inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil, quando aplicável à acção de investigação da paternidade, não existe
(cfr., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 99/88, já citado, e de 31 de Maio de 1989, publicado no Diário da República [DR], II Série, de 15 de Setembro de 1989; veja-se ainda o teor da doutrina do Prof. Doutor Guilherme de Oliveira, in Critério Jurídico da Paternidade, Coimbra Editora, 1983, págs. 465 e ss., defendendo que a fixação de um limite de caducidade em casos como o dos autos não constituirá obstáculo à real iniciativa particular).”
4. Não se conformando com esta decisão, o autor interpôs recurso para a Relação, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
“a) Violou o Douto Tribunal a quo o art. 26º da CRP, ao aplicar o art. 19º, do DL 47.344, com a interpretação que lhe deu; b) Violou o Douto Tribunal a quo o art. 36º da CRP, ao aplicar o art. 19º, do DL
47.344, com a interpretação que lhe deu; c) Qualquer norma que limite o direito à investigação da progenitura de cidadão registado somente em nome da mãe, nomeadamente por caducidade, é inconstitucional por violação dos mesmos arts. da CRP; d) O art. 19º do DL 47.344 é norma transitória que não pretende afastar a aplicabilidade da legislação antiga; e) Os arts. 56º e 12º do actual C. Civil são aplicáveis ao caso em concreto; f) E por força de tal aplicação, são aplicáveis ao caso concreto os dispositivos do Decreto de 25 de Dezembro de 1910, identificado como n.º 2 e conhecido como Lei de Protecção dos Filhos; Devendo a sentença do Douto Tribunal a quo ser revogada e mandado baixar o processo à primeira instância para prosseguir.” Por acórdão datado de 21 de Maio de 2001, o Tribunal da Relação do Porto julgou improcedente aquele recurso e confirmou o despacho recorrido, com os seguintes fundamentos:
“Como muito bem se pondera no despacho recorrido, e após se ter demonstrado, com todo o acerto e propriedade, que não existe, no caso em apreço, qualquer violação do art. 56º do C.C., o estabelecimento da paternidade, face à lei portuguesa, faz-se pelo reconhecimento (voluntário ou judicial), isto na hipótese de não existir presunção decorrente do casamento – cfr. n.º 2 do artigo
1796º do C.C.. Sendo assim, e como bem se conclui no despacho impugnado, a lei aplicável à questão sub judice terá que ser, necessariamente, a que esteja em vigor à data desse reconhecimento que, pelos vistos, não ocorreu anteriormente.
(...) Em primeiro lugar, e acompanhando de perto a argumentação exposta no despacho recorrido, é indubitável que o artigo 12º do C.C. se destina a regular conflitos de leis no tempo, norma esta que consagra como princípio geral o de que a lei apenas dispõe para o futuro – cfr. n.º 1 do aludido normativo. Como é sabido, o artigo 1º do Dec.-Lei n.º 47.344, de 25 de Novembro de 1966 aprovou o actual Código Civil e nele o legislador teve o cuidado de salvaguardar aquelas situações em que à data da entrada em vigor do C.C. estivesse já esgotado o prazo actualmente previsto no artigo 1817º do mesmo diploma legal e que anteriormente se encontrava estabelecido no artigo 1854º, antes da redacção que lhe foi introduzida pelo Dec.-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro.
É o que resulta do artigo 19º do Dec.-Lei n.º 47.344, de 25 de Novembro de 1966. Nessa medida, e como muito bem se salienta no despacho recorrido, o artigo 19º do Dec.-Lei n.º 47.344, de 25 de Novembro de 1966 ‘regula a situação em que, pela aplicação de qualquer dos prazos actualmente consagrados no artigo 1817º do C.C. face à lei antiga não teria caducado o direito a investigar a paternidade, mas face à lei nova o mesmo direito ter-se-ia extinto por caducidade’. Quer dizer, o citado artigo 19º do Dec.-Lei n.º 47.344, de 25/11/66 consagra um regime puramente transitório, já que é em si mesmo como que uma espécie de ponte entre duas normas que vigorando em épocas distintas, visam regular interesses idênticos. No fundo, o aludido normativo mais não visa do que a composição e a defesa dos interesses daqueles que ainda podem ser afectados com a vigência da nova lei.
(...) Sendo assim, e à luz das considerações então expendidas, não se vê como é que tal normativo colide com o artigo 36º da C.R.P., tal como defende o apelante. Na verdade, e segundo deriva do n.º 4 do artigo 36º da C.R.P., ‘Os filhos nascidos fora do casamento não podem por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação’. Como é fácil de depreender, esta norma nada tem a ver com o direito à investigação da paternidade nem com as condições que a lei ordinária impõe para a instauração da acção onde deve ser exercido tal direito. A este propósito ensinam os Profs. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa, ed. 1978, pág. 107, que a dita norma consagra ‘o princípio da não discriminação entre filhos, independentemente de os progenitores estarem casados ou não’. Sendo assim, o que se visa é a não discriminação ou tratamento diferenciado daqueles que são filhos de pais não casados entre si, o que pressupõe logicamente, que a respectiva paternidade já esteja reconhecida ou estabelecida. Ora, isto nada tem a ver com as condições que a lei ordinária impõe para que seja instaurada a acção com vista ao reconhecimento da respectiva paternidade. Assim sendo, a regulamentação que a lei ordinária faça nesse sentido, como sucede no caso em apreço, em nada colide com aquele princípio constitucional que, como se procurou demonstrar, apenas impõe que os filhos nascidos fora do casamento não sejam, por esse facto, discriminados a qualquer título-
(sublinhado nosso). Desta sorte, e sem necessidade de outras considerações, é de concluir que a observância do artigo 19º do Dec.-Lei n.º 47.344, de 25 de Novembro de 1966 não viola o disposto no n.º 4 do artigo 36º da C.R.P. Aqui chegados, há que dizer, pois, que se concorda inteiramente com os fundamentos de facto e de direito que informam o despacho recorrido, estes
últimos acompanhados das considerações acima expostas, considerações essas que, no seu âmbito, mais não visaram do que reforçar a argumentação utilizada pelo Sr. Juiz a quo. Por outro lado, e neste mesmo sentido, também se acolhe, sem reserva ou reparo, a decisão nele constante e daí que só nos reste confirmar, sem qualquer declaração de voto, o julgado em 1ª instância, tudo ao abrigo do n.º 5 do artigo
713º do C.P.C. Por conseguinte, improcedem toda e cada uma das conclusões alinhadas pelo apelante nas suas alegações de recurso.”
5. O recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, fazendo remissão para as alegações já produzidas perante o tribunal recorrido. Por acórdão datado de 29 de Janeiro de 2002 o Supremo Tribunal de Justiça decidiu negar provimento ao recurso, nos seguintes termos:
“(...) Aplicável à nossa hipótese não é o vetusto, venerável (e extremamente moderno para a época) Decreto n.º 2, de 25/12/1910, chamado Lei de Protecção dos Filhos, subscrito por figuras notáveis da República., mas sim o CC entrado em vigor em
1967 – concretamente o seu original art. 1854º, n.º s 1 e 4, agora (após a Reforma introduzida no direito da família pelo DL 496/77, de 25/11) o art.
1817º, n.º s 1 e 4. E isto por o CC de 1966 ser a lei vigente à data do exercício do direito. O art. 19º do DL 47.344 não impõe (nem permite) outra solução. Trata-se de uma norma de direito transitório, destinada a salvaguardar as situações em que, à data da entrada em vigor do novo CC (que criou prazos de caducidade que a lei anterior não conhecia), já se encontrassem esgotados os prazos que a nova lei estabeleceu para o exercício do direito. Este é o objectivo do falado art. 19º.
(...) A lei aplicável ao reconhecimento da paternidade é naturalmente a lei vigente à data em que se procede ao estabelecimento da paternidade, neste caso através do reconhecimento judicial: art. 1796º, n.º 2, do CC. Isto quer afinal dizer que o falado art. 19º do DL 47.344 nem tem aplicação ao nosso caso, visto que o Autor podia ter exercido o seu direito na vigência do CC e de acordo com a forma como este regula tal exercício. Como bem se acentuou na Relação, a vencer a tese do recorrente (o Decreto de
1910 aplica-se a todos os nascidos na sua vigência, o CC aos nascidos na vigência dele), então é que teríamos uma situação de inconstitucionalidade (art.
13º da CRP), por se dar tratamento diferente (no que toca ao exercício do direito a investigar a paternidade) em função da data de nascimento (idade): uns não teriam prazo para investigar a paternidade, outros teriam prazo fixado pelo CC. A lei, em princípio, só dispõe para o futuro: art. 12º, n.º 1, do CC. Isto significa duas coisas: que a LN não é retroactiva (a lei nova não se aplica a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor) e que a LA não é ultractiva (a lei velha não se aplica a factos produzidos após o período da sua vigência). Pretender aplicar o Decreto de 1910 a factos ocorridos após a sua revogação (a presente acção de reconhecimento da paternidade) seria dar-lhe ultractividade. Cada facto regula-se pela lei vigente no momento da sua verificação: art. 12º, n.º 1, do CC e, entre outros, por exemplo o Acórdão deste STJ de 08/06/94, no BMJ, 438-440. A lei nova aplica-se a todas as situações verificadas na sua vigência, e uma delas é o exercício do direito a investigar a paternidade, ocorrido após a entrada em vigor do CC (de 1967).
(...) Julgamos ter evidenciado que o art. 19º do DL 47.344 não tem aplicação ao nosso caso. Por um lado, porque, quando entrou em vigor o novo CC, ainda o direito do Autor a investigar a sua paternidade não havia caducado, em face das novas regras de exercício por ele introduzidas; por outro lado, porque, mesmo que assim fosse, o Autor não exerceu tal direito até 31/05/68, como aquele preceito permitia. Daí que nem interessasse discutir a constitucionalidade do falado art. 19º. De qualquer modo, a afirmação de que é inconstitucional, por limitar o direito a investigar a paternidade, é totalmente carecida de razão, visto que tal preceito não limita esse direito, antes o alarga, em função das novas regras de exercício: permite o seu exercício, dentro de dado prazo, mesmo que em face das novas regras ele já não fosse possível por ter caducado. Assim, a verdadeira questão de inconstitucionalidade só pode colocar-se em face das novas disposições do art. 1854º (versão primitiva) e do art. 1817º (versão actual). Por simplicidade falaremos só do vigente art. 1817º, embora o mesmo se diga para o anterior art. 1854º. Ora, o art. 1817º não viola, nem o art. 26º, nem o art. 36º, da CRP. Como também se sustentou nas instâncias, sendo embora a paternidade um elemento ou condição da identidade pessoal, no entanto, a fixação de um prazo para o exercício do direito a investigar a paternidade não fere qualquer princípio constitucional: o direito a investigar não é restringido na sua amplitude, o que
é, é regulado o seu exercício, em função de outros interesses que no caso também concorrem, como o da certeza e segurança jurídica: acórdãos do TC n.º 99/88, de
28/04/88, em Acórdãos do TC, vol. II, 785, e de 31/05/89, no DR, 2ª série, de
15/09/89, bem como, na doutrina, Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, 465. O art. 1817º também não viola o art. 36º da CRP, norma esta que nada tem a ver com a investigação da paternidade, nem com as condições que a lei ordinária põe para o exercício de tal direito. A referida norma constitucional consagra (n.º
4) o princípio da não discriminação entre os filhos, independentemente de os pais serem ou não casados entre si (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 107). Pressupõe, portanto, que a paternidade já se encontra estabelecida. O que não é o caso aqui.”
6. Desta decisão foi interposto o presente recurso de constitucionalidade ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional,
“com base na inconstitucionalidade dos aplicados arts. 1817º e 1796º, ambos do Código Civil, por violação do art. 26º e do n.º 4 do art. 36º, ambos da Constituição da República Portuguesa (...)”. O requerimento de recurso vinha acompanhado de alegações. No Tribunal Constitucional, o relator proferiu o seguinte despacho:
“Segundo o respectivo requerimento, o presente recurso destina-se a ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 1796º e 1817º do Código Civil, sendo interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Acontece, porém, que a inconstitucionalidade daquele artigo 1796º não foi suscitada durante o processo, perante o tribunal a quo
(cfr. o disposto no artigo 72º, n.º 2, da citada Lei do Tribunal Constitucional), e que este apenas tratou da questão da constitucionalidade do artigo 1817º do Código Civil. O objecto do presente recurso deve, pois, ser delimitado, cingindo-se à apreciação da constitucionalidade desta última norma, por só em relação a ela se verificarem os respectivos pressupostos. Por outro lado, nos termos do artigo 79º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, as alegações de recurso são sempre produzidas neste Tribunal. Assim delimitado o objecto do recurso, prossigam os autos para alegações.” O recorrente concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
“a) Violou o Douto Tribunal a quo o art. 26º, da Constituição da República Portuguesa, ao aplicar os arts. 1817º e 1796º, ambos do Código Civil, com a interpretação que lhes deu; b) Violou o Douto Tribunal a quo o art. 36º, da Constituição da República Portuguesa, ao aplicar os arts. 1817º e 1796º, ambos do Código Civil, com a interpretação que lhes deu; c) Qualquer norma que limite o direito à investigação da progenitura de cidadão registado somente em nome da mãe, nomeadamente por caducidade, é inconstitucional por violação dos mesmos arts. da Constituição da República Portuguesa.” Por sua vez, o recorrido veio, nas suas contra-alegações, pugnar pela improcedência do recurso, defendendo a inexistência de inconstitucionalidade na norma em causa. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
7. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, tem por objecto a apreciação da constitucionalidade dos artigos 1817º e 1796º do Código Civil. Quanto à norma do artigo 1796º do mesmo diploma, referida no requerimento de recurso, verifica-se que, apesar da delimitação do objecto do recurso efectuada no despacho transcrito, nas alegações se reitera a acusação da sua desconformidade constitucional. Ora, como se referiu no citado despacho, nas alegações perante o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 199 e segs. dos autos) o recorrente não suscitou a questão da constitucionalidade deste artigo 1796º, em si mesmo ou numa sua determinada interpretação, impugnando apenas a conformidade constitucional do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o Código Civil, bem como dos artigos 1873º e 1817º, n.º 1, deste Código. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido não tratou, aliás, da constitucionalidade daquele artigo 1796º, mas apenas destas últimas normas, aplicando, como ratio decidendi, justamente estes artigos 1873º e 1817º, n.º 1. Não se tomará, pois, conhecimento do recurso em relação ao artigo 1796º do Código Civil.
8. Assim delimitado o objecto do recurso, fica este a ter como objecto apenas a apreciação da constitucionalidade do artigo 1817º do Código Civil, que prevê o prazo para propor acção de investigação de maternidade, aplicável, por remissão do artigo 1873º do mesmo Código, à de paternidade. Recorde-se, a propósito, que são três as formas pelas quais se estabelece juridicamente a paternidade, a saber: a presunção de paternidade do marido da mãe, no caso de se tratar de filho nascido ou concebido na constância do casamento (artigo 1796º, n.º 2); a perfilhação (que é um reconhecimento voluntário da paternidade); e o reconhecimento judicial (podendo este ser oficioso ou na sequência de uma acção de investigação de paternidade). O artigo
1873º preceitua que “é aplicável à acção de investigação de paternidade, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 1817º a 1819º e 1821º”. Por força desta remissão, os prazos de caducidade das acções de investigação previstos no artigo 1817º, a propósito da investigação de maternidade, valem também para a investigação da paternidade. Dispõe actualmente este artigo 1817º (na redacção dada aos n.ºs 4 a 6 pela Lei n.º 21/98, de 12 de Maio):
“1. A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
2. Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do disposto no artigo 1815º, a acção pode ser proposta no ano seguinte à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório, contanto que a remoção do obstáculo tenha sido requerida até ao termo do prazo estabelecido no número anterior, se para tal o investigante tiver legitimidade.
3. Se a acção se fundar em escrito no qual a pretensa mãe declare inequivocamente a maternidade, pode ser intentada nos seis meses posteriores à data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito.
4. Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.
5. Se o investigante, sem que tenha cessado voluntariamente o tratamento como filho, falecer antes da pretensa mãe, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquele; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho antes da morte deste, é aplicável o disposto na segunda parte do número anterior.
6. Nos casos a que se referem os n.º 4 e 5 incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento no ano anterior à propositura da acção.” No presente caso, apesar de o recorrente se referir, no requerimento de recurso e nas alegações, apenas ao artigo 1817º, está, porém, apenas em causa o n.º 1 deste artigo, que fixa, para a propositura da acção de investigação, o prazo máximo de dois anos a contar da maioridade do investigante. Foi, na verdade, apenas esta a norma aplicada pelo tribunal a quo, por isso tendo – tal como já as instâncias – julgado que havia caducado o direito do recorrente a propor a acção de investigação (teria de ser proposta até ele ter completado vinte anos). Está, assim, em causa exclusivamente o prazo de dois anos previsto no artigo
1817º, n.º 1, do Código Civil. Designadamente, não estão em causa os prazos previstos para o caso de o filho ser tratado como tal pelo investigado, para o caso de a acção se fundar em escrito no qual se reconheça a paternidade ou para o caso de o registo estar omisso a respeito da paternidade. Nem está em causa a consideração da idade concreta que o demandante tinha à data da propositura da acção, à qual não foi atribuída relevância pela decisão recorrida, bastando-se com a circunstância de já terem decorrido a essa data mais de dois anos sobre a sua maioridade.
9. O Tribunal Constitucional já se debruçou várias vezes sobre a questão da constitucionalidade dos prazos para propositura de acções de investigação de paternidade. Fê-lo, quanto ao artigo 1817º, n.ºs 3 e 4 (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º
496/77, de 25 de Novembro), nos Acórdãos n.ºs 99/88 (publicado no DR, II Série, de 22 de Agosto de 1988) e 370/91 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 409, págs. 314 e segs.), nos quais concluiu pela inexistência de inconstitucionalidade – embora, neste último aresto, apenas desde que a norma do n.º 4 fosse “interpretada no sentido de que a cessação do tratamento como filho só ocorre quando, continuando a ser possível esse mesmo tratamento, o pretenso pai lhe ponha voluntariamente termo” (solução que veio a ficar consagrada na lei em 1998). Por sua vez, nos Acórdãos n.ºs 413/89 (DR, II Série, de 15 de Setembro de 1989),
451/89 (DR, II Série, de 21 de Setembro), 311/95 (inédito), e, por último,
506/99 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44º vol., pág. 763), o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade do artigo 1817º, n.º 1. Recentemente, pelo Acórdão n.º 456/2003, tirado nesta 2ª secção, foi apreciada, num recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a constitucionalidade da norma do artigo 1817º, n.º 2, aplicável por força do artigo 1873º do Código Civil, num caso em que estava em causa saber se ficava impedida “a investigação de paternidade a quem, depois dos
20 anos (no caso, 31 anos, como se mencionou), for surpreendido pela procedência de uma acção de impugnação da sua paternidade instaurada por um terceiro (aqui, pela pessoa que era tida como seu pai)”. Tendo o presumido pai impugnado com sucesso a presunção de paternidade, o filho, apesar de ter ficado com a paternidade em branco, estava impedido de intentar acção de investigação da paternidade, já que o n.º 2 do artigo 1817º exige que a remoção do obstáculo (no caso, o cancelamento do registo inibitório) seja requerida até ao termo do prazo estabelecido no número anterior, de dois anos após a maioridade ou emancipação, o qual já havia expirado há muito. O Tribunal negou provimento ao recurso por ter concluído pela inconstitucionalidade da norma em questão, por violação do direito à identidade pessoal. Tal aresto não se pronunciou, porém, sobre a conformidade com a Constituição do regime geral do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, ao limitar aos “dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação” a possibilidade de o interessado, sem paternidade estabelecida (como no presente caso) interpor acção de investigação de paternidade, mantendo-se, quanto a tal norma, a jurisprudência deste Tribunal, consubstanciada nos arestos citados, que têm concluído pela não inconstitucionalidade dessa limitação temporal. A linha central de fundamentação dessas decisões assenta na consideração de que as normas em questão – e em particular o n.º 1 do artigo 1817º, agora em causa – resultam de uma ponderação de vários direitos ou interesses contrapostos, a qual conduz, não propriamente a uma restrição, mas a um condicionamento aceitável do exercício do direito à identidade pessoal do investigante. Tal ponderação é resumida, claramente, logo no citado Acórdão n.º 99/88 – e retomada em vários dos posteriores arestos citados –, designadamente no seguinte trecho:
“Tudo está em que, face ao direito do filho ao reconhecimento da paternidade, se perfilam outros direitos ou interesses, igualmente merecedores de tutela jurídica: em primeiro lugar, e antes de mais, o interesse do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, e em não ter que contestar a respectiva acção quando a prova se haja tornado mais aleatória; depois, um interesse da mesma ordem por parte dos herdeiros do investigado, e com redobrada justificação no tocante à
álea da prova e às eventuais dificuldades de contraprova com que podem vir a confrontar-se; além disso, porventura, o próprio interesse, sendo o caso, da paz e harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai. É o equilíbrio entre o direito do filho e este conjunto de interesses que normas como as dos n.ºs 3 e 4 do art. 1817º do Código Civil visam assegurar, sem que se possa dizer que o façam de modo desproporcionado (isto é, com excessivo sacrifício daquele direito) – quer considerado o estabelecimento, em si, de prazos de caducidade, quer considerada a duração de tais prazos. E como todos os interesses em presença não deixam igualmente de encontrar ressonância constitucional – seja ainda nos arts. 25º, n.º 1 (integridade moral), e 26º, n.º 1 (direito à reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar), seja no art.
67º (protecção da família), seja só no valor da segurança e certeza do direito, já que a tal valor objectivo, que intimamente se conexiona com o direito à protecção jurídica (art. 25º), não pode negar-se semelhante dignidade num Estado justamente ‘de direito’ – eis como não pode ver-se excluída pela Constituição a solução consagrada pelo legislador nos preceitos questionados.” A questão a que cumpre dar resposta no presente recurso é a de saber se é de reiterar a conclusão no sentido da inexistência de inconstitucionalidade da norma do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, designadamente, com a fundamentação transcrita.
10. Importa começar por deixar bem vincado que, na averiguação da conformidade constitucional da solução limitativa, actualmente consagrada na norma ora em apreço, o que está em questão não é qualquer imposição constitucional de uma
“ilimitada (…) averiguação da verdade biológica da filiação”. Pese embora a tese defendida pelo recorrente, de que qualquer caducidade da acção de investigação de paternidade é inconstitucional, no presente recurso está apenas em questão o concreto limite temporal previsto no artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, de dois anos a contar da maioridade ou emancipação (portanto, no máximo, os vinte anos de idade do investigante). Não constitui, assim, objecto do presente processo apurar se a imprescritibilidade da acção corresponde à única solução constitucionalmente conforme. Antes o que está em causa é, apenas, a constitucionalidade da específica limitação prevista nesta norma, que (salvo casos excepcionais, como o da existência de “posse de estado”) exclui o direito a averiguar a paternidade depois dos 20 anos de idade: a acção “só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”. É este limite temporal de “dois anos posteriores à maioridade ou emancipação”, e não a possibilidade de um qualquer outro limite, que cumpre apreciar – e, consequentemente, só sobre aquele específico limite temporal, previsto actualmente no artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, se poderá projectar o juízo de (in)constitucionalidade a proferir. Nem é, aliás, o regime de imprescritibilidade a única alternativa pensável ao regime do artigo 1817º, n.º 1 do actual Código Civil. Importa, na verdade, considerar que a norma em apreço exclui a possibilidade de investigar a paternidade depois de esgotado um prazo de dois anos que se conta a partir de um dies a quo puramente objectivo, isto é, que não depende de quaisquer elementos relativos à possibilidade concreta do exercício da acção – como, por exemplo, a procedente impugnação da paternidade (cfr., sobre esta hipótese, o já citado Acórdão n.º 456/2003), fundadas dúvidas sobre a paternidade que esteja estabelecida, ou, mesmo em caso de inexistência de paternidade determinada, o conhecimento ou a cognoscibilidade supervenientes de factos ou circunstâncias que possibilitem ou justifiquem a investigação. Aliás, é também logo por estes elementos serem irrelevantes no regime legal, e antes o prazo, de apenas dois anos, se contar imediatamente a partir da maioridade ou emancipação, mesmo que não existam quaisquer elementos relativos ao possível ou provável progenitor (ou, por exemplo, para duvidar de uma paternidade estabelecida, ou apenas socialmente conhecida), que também não pode proceder, como justificação para a exclusão do direito à investigação da identidade dos progenitores, a invocação da inércia ou do desinteresse do filho nesta investigação. Tal ideia (“dormientibus non succurrit jus”) pressuporia que o prazo apenas se contasse a partir do momento em que se tornou possível a acção, ou, pelo menos, que o prazo para ela, ainda que contado a partir de um dies a quo objectivo, fosse muito mais alargado. A inércia ou pouca diligência do filho na promoção da investigação não é, pois, normalmente referida como fundamento para a admissibilidade do regime ora em questão, que, reconhecendo um direito (ou a dimensão de um direito) fundamental dirigido ao conhecimento da paternidade, costuma apoiar-se, antes, na existência de outros valores ou interesses, dignos de tutela, que seriam susceptíveis de justificar a exclusão do direito a averiguar a filiação biológica, ou de relativizar esta. Seja como for – e é o ponto que, para deixar claro o alcance do juízo que o Tribunal profira, importa frisar –, no presente processo está apenas em apreciação o prazo de dois anos a contar da maioridade ou emancipação, e não a possibilidade de um qualquer outro limite temporal para a acção de investigação de paternidade, conte-se este a partir também da maioridade ou da emancipação, ou tenha outro dies a quo.
11. A possibilidade ilimitada correspondia ao regime consagrado antes de 1966, no Código de Seabra – incluindo à data da concepção e nascimento do investigante, ora recorrente –, segundo o qual as acções podiam ser intentadas a todo o tempo. Na verdade, o artigo 130º do Código de Seabra proibia a investigação da paternidade, salvo nos casos de escrito de pai, de posse de estado, de estupro violento e de rapto. Mas essa regra foi alterada em 1910 pelo artigo 37º do Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro, que determinava que “acção de investigação da paternidade ou da maternidade só pode ser intentada em vida do pretenso pai ou mãe, ou dentro do ano posterior à sua morte, salvas as seguintes excepções (...)”. Limitava-se, pois, o direito a requerer a investigação da paternidade, mas determinante era o momento da morte do pretenso pai. Esta solução legal não deixou, todavia, de ser objecto de críticas, por conduzir
à possibilidade de instrumentalização da acção. Salientava-se que a acção podia visar apenas a “exigência tardia de bens materiais (…) extorquidos, quiçá muitas vezes com fraude, àqueles que desde há muito tinham legítima expectativa sobre esses bens” – Gomes da Silva, O Direito da Família no futuro Código civil
(segunda parte), BMJ n.º 88, 1959, pág. 86. Além disso, o estabelecimento da paternidade seria importante sobretudo quando os filhos eram pequenos, para atenuar, “na medida do possível, (os) efeitos da ilegitimidade sobre a formação da personalidade”. Procurava-se, assim, quer “fomentar o mais possível as perfilhações provocadas e os reconhecimentos oficiosos”, quer “encaminhar as coisas por forma a que as investigações feitas por iniciativa dos filhos ou seus representantes, se efectuem o mais cedo possível, precisamente quando mais úteis podem ser aos filhos e quando envolvam menos riscos de fraudes contra a família legítima” (ob. cit., pág. 87). O prazo de dois anos previsto no Código de 1966 era, pois, visto como forma de “combate à investigação como puro instrumento de caça à herança paterna e de estímulo à determinação da paternidade (e, em casos muitíssimo menos frequentes, da maternidade) em tempo socialmente útil” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. V, artigos 1796º a 2023º, Coimbra, 1995, pág. 83). Pode dizer-se que, para além da maior conveniência na constituição da paternidade quando ela ainda é mais útil, são aduzidas fundamentalmente três razões para a previsão de um prazo limitativo da acção de investigação (cfr., por exemplo, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 80 e ss., Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, págs. 100 e segs. e 463-471, e, recentemente, a descrição que se segue, em Caducidade das acções de investigação, Revista Lex Familiae, n.º 1, Centro de Direito da Família, Coimbra, 2004, págs. 7-13). Em primeiro lugar, invoca-se a “segurança jurídica” dos pretensos pais e seus herdeiros. A previsão de um prazo de caducidade anda, aliás, sempre ligada à ideia de segurança jurídica, pode não dever quem pode vir a ser onerado com o exercício de pretensões alheias estar sujeito indefinidamente a que essa possibilidade de exercício paire indefinidamente sobre a sua cabeça. Não sendo a acção intentada até aos 20 anos (e passado, assim, o período em que mais falta faz um pai ou uma mãe), não haveria, pois, que permitir o prolongamento da indefinição quanto ao estabelecimento dos vínculos de filiação. Em segundo lugar, esgrime-se com o progressivo “envelhecimento” ou perecimento das provas. Isto, sobretudo, em litígios – como os relativos à paternidade – de prova difícil, relativa a factos íntimos e naturalmente geradores de emoções. Na falta de prova pré-constituída decisiva, a passagem do tempo potenciaria os perigos, designadamente, da prova testemunhal, aumentando a possibilidade de fraudes. Assim, mesmo sendo certo que, via de regra, seria sobretudo o próprio investigante retardatário a suportar a desvantagem da dificuldade acrescida de prova – pelo que não parecia “curial limitar-lhe o direito de investigar para lhe garantir o êxito da prova”, como já em 1979 referia Guilherme de Oliveira
(Estabelecimento da Filiação, Coimbra, 1979, pág. 41) –, tal razão não terá deixado de pesar na previsão do prazo em questão. Em terceiro lugar, avançava-se com um argumento atinente às finalidades dos investigantes, que frequentemente seriam puramente egoísticas, próximas de sentimentos de cobiça, quando os pretensos pais estavam no fim da vida. A imprescritibilidade das acções de filiação permitia tais “caças à fortuna”, atrasando o estabelecimento da paternidade da juventude do filho, em que o poder paternal é mais necessário, para a proximidade da morte do pretenso pai. E este seria mesmo um dos maiores inconvenientes da regra consagrada no artigo 37º do Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro de 1910. O Código Civil de 1966 estabeleceu, pois, no artigo 1854º, n.º 1, o regime que ainda hoje vigora quanto ao prazo-regra em caso de falta de escrito de pai ou de tratamento como filho: esse prazo termina dois anos depois da maioridade do filho. E mesmo a reforma de 1977 entendeu não alterar este ponto, provavelmente por se entender que ele traduzia uma limitação proporcionada do direito de investigar a paternidade, para defesa de interesses importantes como eram a segurança jurídica, a viabilidade prática das acções de investigação, e o impedimento de um mau exercício dos direitos, para finalidades censuráveis. E, de todo o modo, ao pretenso filho ficaria ainda, mesmo com a caducidade, uma considerável liberdade de intentar a acção, de tal modo que não se podia dizer que a tal restrição temporal fosse inconstitucional, por afectar o conteúdo essencial de direitos fundamentais do filho.
12. A solução adoptada na ordem jurídica portuguesa a partir de 1967, não sendo inédita no panorama comparatístico, não corresponde, porém, à adoptada na grande maioria das ordens jurídicas que nos são mais próximas. Assim, por exemplo, o artigo 270º do Código Civil italiano dispõe que a acção para obter a declaração judicial da paternidade ou da maternidade “é imprescritível para o filho”. Segundo o artigo 1606º do Código Civil brasileiro, a “acção de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz” (a Lei n.º 8.560, de 29 de Dezembro de 1992 veio regular a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento). Nos termos do artigo 133º do Código Civil espanhol, por sua vez, a
“acção de reclamação de filiação não matrimonial, quando falte a respectiva posse de estado, cabe ao filho durante toda a sua vida”. E também o legislador alemão optou pela regra da imprescritibilidade: o artigo
1600e, n.º 1, do Código Civil alemão, prevendo a legitimidade do filho para a acção de investigação (consagrada no artigo 1600d), não prevê qualquer prazo. Como se salienta na doutrina:
“Não existe em princípio qualquer prazo para a acção de investigação de paternidade. Se o filho não tiver pai estabelecido, seja devido ao casamento, seja por perfilhação, o seu progenitor pode ser judicialmente investigado a todo o tempo, e, se for o caso, mesmo que o filho já seja há muito adulto. Pelo contrário, se estiver estabelecida a paternidade (…), esta tem, em primeiro lugar, de ser afastada por impugnação da paternidade (…), para que a via para a investigação judicial de outro homem como pai fique livre. Como existem prazos para isso (§1600b [que prevê um prazo de dois anos a contar do conhecimento de circunstâncias que depõem contra a paternidade]), cujo decurso bloqueia também a investigação judicial do verdadeiro pai, também existe mediatamente, nesta medida, um prazo para a investigação judicial da paternidade”
(Palandt/Diederichsen, BGB, 59ª ed., Munique, 2000, anot. 4 ao § 1600d).' Mesmo o Código Civil de Macau, aprovado em 1999 e tendo como modelo o Código Civil português de 1966, adoptou uma solução diferente da do legislador português: o n.º 1 do artigo 1677º dispõe, claramente, que “a acção de investigação da maternidade pode ser proposta a todo o tempo”, sendo tal norma aplicável ao reconhecimento judicial da paternidade por força da remissão do artigo 1722º, à semelhança do que acontece no Código Civil português (em compensação, para evitar os inconvenientes de tal solução, nomeadamente por meros intuitos de “caça à fortuna”, o artigo 1656º, n.º 1, do Código de Macau veio prever duas hipóteses em que o estabelecimento do vínculo produz apenas efeitos pessoais, excluindo-se os efeitos patrimoniais). Como se disse, porém, não é só no nosso ordenamento que se encontra a previsão de um prazo de caducidade da acção de investigação. Assim, no artigo 263º do Código Civil suíço prevê-se que a acção de investigação de paternidade pode ser intentada pela mãe até um ano após o nascimento e pelo filho até ao decurso do ano seguinte ao da sua maioridade (bem como, na hipótese de haver um vínculo de paternidade estabelecido, no prazo de um ano após a dissolução desse vínculo). Mas, de qualquer modo, existe no direito suíço uma cláusula geral de salvaguarda, segundo a qual “a acção pode ser intentada depois do termo do prazo se motivos justificados tornarem o atraso desculpável”. Já no direito francês, porém, a acção deve ser proposta nos dois anos seguintes ao do nascimento
(artigo 340-4 do Code Civil, na redacção da Lei n.º 93-22, de 8 de Janeiro de
1993), existindo alguns casos de excepção ao prazo regra (se o pai e a mãe viveram em união de facto estável durante o período legal de concepção, ou se houve participação do pretenso pai na educação da criança). Se, porém, a acção não tiver sido exercida durante a menoridade da criança, esta pode intentá-la durante os dois anos seguintes à maioridade (um prazo, que, portanto, é neste ponto idêntico ao da norma ora em questão). A maioria das ordens jurídicas referidas – a bem dizer, todas as indicadas, salvo a francesa – não prevê, pois, um regime tão limitativo como o da norma em causa no presente recurso. Antes contêm, ou um regime semelhante ao que já vigorou entre nós, de imprescritibilidade da investigação de paternidade, sem limite temporal para a acção (pelo menos quando a paternidade não está estabelecida), ou uma cláusula de salvaguarda para um atraso desculpável na propositura da acção. Já em 1977 era, aliás, significativa, também na doutrina, a posição segundo a qual a acção de investigação de paternidade não deveria estar submetida a um limite temporal. Como salientam Pires de Lima e Antunes Varela (ob. e loc. cits.), nessa época “avolumara-se já em alguns sectores da doutrina estrangeira a tese de que a investigação, quer da paternidade, quer da maternidade, por respeitar a interesses inalienáveis do cidadão, incorporados no seu estado pessoal, não devia ser limitada no tempo.” Antes, ainda, de analisar os parâmetros constitucionais em questão e as justificações referidas, com que normalmente se procura fundamentar a solução de exclusão, em regra, do direito à investigação da paternidade a partir dos vinte anos, importa, justamente, referir que também entre nós se notam alterações em posições doutrinais. Designadamente, a própria doutrina mais frequentemente citada nos arestos deste Tribunal, no sentido da orientação neles adoptada
(Guilherme de Oliveira, em Critério Jurídico da Paternidade, Coimbra, 1983, págs. 463-471) pende hoje, expressamente, para a inconstitucionalidade do regime em questão (assim, em Caducidade das acções de investigação, Revista Lex Familiae, cit., n.º 1, 2004, págs. 7-13, concluindo ser sustentável “alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos arts. 1817.º e 1873.º C. Civ.”, tornando o regime inaplicável pelos tribunais, e devendo então o direito dos filhos “poder ser exercitado a todo o tempo, durante a sua vida – contra o suposto pai ou contra outros legitimados em seu lugar”; e salientando ainda ser
“conveniente ponderar não só o interesse dos familiares ou sucessores do filho que morresse sem ter intentado a acção, mas também os interesses dos familiares ou sucessores do suposto pai, contra quem havia de se dirigir a acção depois da morte deste”, bem como a melhor forma de obviar a determinados casos-limite).
13. Na verdade, logo a partir da Constituição de 1976, as exigências constitucionais em matéria de direitos de personalidade e de direito da família tornaram-se incontornáveis na discussão sobre o tema em causa. A Constituição reconheceu um “direito de constituir família”, com um sentido mínimo de impor ao legislador a previsão de meios para o estabelecimento jurídico dos vínculos de filiação – os modos de perfilhar e a acção de investigação. Esse direito foi, aliás, alargado pela reforma de 1977, chegando a deixar o limite do vínculo de parentesco próximo apenas para o reconhecimento oficioso, mas não para o estabelecimento voluntário da filiação (mesmo sobre a restrição do incesto) por perfilhação ou acção de investigação. Por outro lado, ainda no domínio do direito da família, a Constituição proibiu a discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36º, n.º 4). Embora seja certo que, sendo as circunstâncias do nascimento diversas, os modos de estabelecimento da paternidade não podem ser todos iguais, existindo diferenças inevitáveis (o que é verdade, designadamente, para a presunção de paternidade),
é igualmente seguro que as diferenças de regime inevitáveis não podem desfavorecer os filhos nascidos fora do casamento, limitando-lhes excessivamente as possibilidades de estabelecimento da filiação. Como salienta Guilherme de Oliveira (Caducidade..., cit., pág. 9), uma vez que estes filhos não podem beneficiar de uma presunção de paternidade do marido (pois não há marido), o reconhecimento dos meios para estabelecer a paternidade deverá ter a maior abertura, tendencialmente, para não limitar em demasia as possibilidades de estabelecimento da filiação dos filhos nascidos fora do casamento (mediante a prova do vínculo biológico). O parâmetro constitucional mais significativo para aferição da legitimidade das limitações ao direito de investigar a paternidade encontra-se, porém, no
“direito à identidade pessoal”, com que abre logo o n.º 1 do artigo 26º da Constituição. Importa notar, efectivamente, que a tese segundo a qual a norma em questão não é inconstitucional não se baseia na inexistência de um direito fundamental ao conhecimento da paternidade biológica, ou na exclusão deste direito do “âmbito de protecção” do direito fundamental à identidade pessoal, reconhecendo-se, antes, que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão deste direito fundamental. Assim, na jurisprudência deste Tribunal não tem sido posta em questão a existência de um interesse do filho, constitucionalmente protegido, a conhecer a identidade dos seus progenitores, como decorrência dos direitos fundamentais à identidade pessoal (e, também, do direito à integridade pessoal – artigos 25º, e 26º, n.º 1, da Constituição). Neste sentido, escreveu-se, por exemplo, no citado Acórdão n.º 506/99:
“[n]ão se duvida da pertinência dos parâmetros constitucionais convocados – o que, de resto, desde há muito a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem salientado. Assim, poderá ilustrar-se essa preocupação citando não só os já referidos Acórdãos n.ºs. 99/88 e 370/91, como também o n.º 451/89 […], e outro mais recente que daqueles se faz eco (acórdão n.º 311/95, ainda inédito): na averiguação do vínculo real de parentesco, neles se surpreendeu uma decorrência seja do direito fundamental à integridade pessoal, com assento no n.º 1 do artigo 25º da Constituição da República, seja do direito fundamental à identidade pessoal, acolhido no n.º 1 do artigo 26º do mesmo texto, como expressão do entendimento já então professado por Guilherme de Oliveira, segundo o qual o conhecimento da ascendência verdadeira é um aspecto relevante da personalidade individual e uma condição de gozo pleno desses direitos fundamentais (cfr. Impugnação da Paternidade, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Suplemento XX, Coimbra, 1973, pág. 193; em Separata, Coimbra, 1979, pág. 66).” E logo o citado Acórdão n.º 99/88 não deixou de referir-se que
“(...) não se vê como possa deixar de pensar-se o direito a conhecer e ver reconhecido o pai (...) como uma das dimensões dos direitos constitucionais referidos, em especial do direito à identidade pessoal, ou das faculdades que nele vai implicada”. O direito ao conhecimento da paternidade ou maternidade biológica, como dimensão protegida pelos direitos fundamentais que são invocados como parâmetro constitucional – nos quais se encontra também, por vezes, o direito a constituir família, consagrado, sem restrições, no artigo 36º, n.º 1, da Constituição –, não é, pois, negado por este Tribunal, nos citados arestos. Compreende-se, aliás, que seja assim, pois o direito à identidade pessoal inclui, não apenas o interesse na identificação pessoal (na não confundibilidade com os outros) e na constituição daquela identidade, como também, enquanto pressuposto para esta auto-definição, o direito ao conhecimento das próprias raízes. Mesmo sem compromisso com quaisquer determinismos, não custa reconhecer que saber quem se é remete logo (pelo menos também) para saber quais são os antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas e culturais, e também genéticas (cfr., aliás, também a referência a uma “identidade genética”, que o artigo 26º, n.º 3, da Constituição considera constitucionalmente relevante). Tal aspecto da personalidade – a historicidade pessoal (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 179, falam justamente de um “direito à historicidade pessoal”) – implica, pois, a existência de meios legais para demonstração dos vínculos biológicos em causa (note-se, aliás, que os exames biológicos conducentes à determinação de filiação podem ser realizados, fora dos processos judiciais, e a pedido de particulares, sem qualquer limitação temporal, pelos próprios serviços do Instituto Nacional de Medicina Legal, nos termos do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 11/98, de 24 de Janeiro), bem como o reconhecimento jurídico desses vínculos. Deve, pois, dar-se por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26º, n.º 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade. Simplesmente, tem-se admitido que outros valores, para além “da ilimitada recepção à averiguação da verdade biológica da filiação – como os relativos à certeza e à segurança jurídicas, possam intervir na ponderação dos interesses em causa”, como que “comprimindo a revelação da verdade biológica”. Da perspectiva do pretenso pai, aliás, invoca-se também, por vezes, o seu “direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar”: tal intimidade poderia ser perturbada, sobretudo se a revelação for muito surpreendente, por circunstâncias ligadas à pessoa do suposto pai ou pelo decurso do tempo, e poderá mesmo afectar o agregado familiar do visado. Também por estas razões, não se tem chegado a uma decisão de inconstitucionalidade: numa “visão mais holística da realidade”, sendo também
“valores ligados à organização social a certeza e a segurança”, admitiu-se,
“como constitucionalmente incensurável uma solução legislativa que fixe prazos de caducidade para a propositura deste tipo de acções” (cfr. os Acórdãos n.º.s
451/89, 413/89 e 506/99, já citados). E isto, mesmo independentemente da controvérsia em torno da qualificação do efeito da norma em causa como verdadeira restrição a direitos fundamentais ou
“mero condicionamento” do seu exercício, que, neste mesmo tema, se encontra reflectida em certa jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf. os citados Acórdãos n.ºs 99/88 e 370/91). É certo que, por vezes, se tem invocado, em abono da inexistência de inconstitucionalidade, que estaríamos apenas perante um
“condicionamento” a que tem de obedecer o exercício do direito do pretenso filho: mero condicionamento temporal da admissibilidade da investigação judicial da paternidade, portanto, e não verdadeira restrição a um direito fundamental. A qualificação, do regime da norma em causa, como uma verdadeira restrição a direitos fundamentais ou de um “mero condicionamento” do seu exercício, não é, porém, isenta de controvérsia (cfr. já a declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 99/88 pelo Cons. Luís Nunes de Almeida; criticamente, quanto à qualificação como condicionamento, cfr., por último, Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra,
2003, págs. 184 e ss. e 187 e ss., nota 322). Há, na verdade, que atentar em que a distinção entre condicionamento e restrição é “fundamentalmente prática, já que não é possível definir com exactidão, em abstracto, os contornos das duas figuras”, constituindo, muitas vezes, “apenas um problema de grau ou de quantidade” (J. C. Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais da Constituição Portuguesa de 1976, 2ª ed., Coimbra, 2001, pág. 217, e nota 49). Seja, porém, como for quanto a essa exacta qualificação e sua relevância – e também a normação legislativa condicionadora está “sujeita ao controle dos limites (isto é, do respeito pelo conteúdo do direito)”, como salienta Vieira de Andrade, ob. cit., pág. 213 –, é claro que ela não pode ser o ponto de partida para a decisão da questão de constitucionalidade. Não basta optar pela qualificação como norma restritiva ou condicionadora para, aplicando ou não o regime do artigo 18º da Constituição, logo se concluir sobre a sua conformidade constitucional, tornando-se antes necessário analisar, numa perspectiva substancial, se o tipo de limitação ao direito fundamental em causa, pela gravidade dos seus efeitos e pela sua justificação, é ou não actualmente aceitável, à luz do princípio da proporcionalidade.
14. Na análise referida, não pode ignorar-se a evolução dos elementos relevantes para a questão de constitucionalidade, que, entre outras, tem determinado também a alteração de soluções legislativas e doutrinais. Tal alteração dos dados normativos do sistema (incluindo a nível constitucional) e dos elementos sociológicos e científico-técnicos, que como que “envolvem” a questão de constitucionalidade do prazo de investigação de paternidade previsto no artigo
1817º do Código Civil, não deve, na verdade, ser desconhecida, mesmo por quem conclua que, ainda assim, tal norma pode não padecer de inconstitucionalidade. Com efeito, tem-se verificado uma progressiva, mas segura e significativa, alteração dos dados do problema, constitucionalmente relevantes, a favor do filho e da imprescritibilidade da acção – designadamente, com o impulso científico e social para o conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética, e a generalização de testes genéticos de muito elevada fiabilidade. Esta alteração não deixa incólume o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e sancionado também pela jurisprudência, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade. Grande parte da responsabilidade vai, aqui, para o peso dos exames científicos nas acções de paternidade e para a alteração da estrutura social e da riqueza, levando a encarar a outra luz a dita “caça às fortunas”. Mas nota-se também um movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens, com desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, que têm acentuado a importância dos vínculos biológicos (mesmo se, porventura, com exagero no seu determinismo). O desejo de conhecer a ascendência biológica tem sido tão acentuado, que se assiste a movimentações no sentido de afastar o segredo sobre a identidade dos progenitores biológicos, mesmo para os casos de reprodução assistida (cuja consideração está, evidentemente, fora do âmbito do presente recurso), tendo até, entre nós, sido já aprovada uma proposta de lei (a Proposta n.º 135/VII, in Diário da Assembleia da República, I série, n.º 95 de 18 de Junho de 1999, págs. 3439-3440 e 3459-3460) que previa a possibilidade de as pessoas nascidas em resultado da utilização de técnicas de procriação medicamente assistida obterem, após a maioridade, informações sobre a identidade dos seus progenitores genéticos (só não tendo entrado em vigor por ter sido objecto de veto político pelo Presidente da República). Não deve, igualmente, ignorar-se a valorização da verdade e da transparência, com a possibilidade de acesso a informação e dados pessoais e do seu controlo, com a promoção do valor da pessoa e da sua “auto-definição”, que inclui, inevitavelmente, o conhecimento das origens genéticas e culturais. A partir de
1997, consagrou-se, aliás, expressamente um “direito ao desenvolvimento da personalidade” no artigo 26º da Constituição (Paulo Mota Pinto, O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, in Portugal-Brasil, ano 2000, Coimbra,
2000), comportando dimensões como a liberdade geral de acção e uma cláusula de tutela geral da personalidade. E, se tanto o pretenso filho como o suposto progenitor podem invocar este preceito constitucional, não é excessivo dizer-se que ele “pesa” mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens. Importa, porém, analisar especificamente a procedência, hic et nunc, das justificações avançadas para a exclusão do direito a investigar a paternidade depois dos vinte anos de idade do pretenso filho.
15. Como se disse, invocam-se, para justificar o regime actual, os riscos de fraudes decorrentes de um “envelhecimento das provas”. Tal dificuldade de prova constituía uma justificação de peso, frequentemente invocada, para a limitação temporal prevista na lei, desde logo, porque contendia com a própria fiabilidade do resultado da acção, e, consequentemente, com a credibilidade do resultado quanto à identidade pessoal invocada. Não parece, porém, que esta justificação possa actualmente ser considerada relevante. É que os avanços científicos permitiram o emprego de testes de ADN com uma fiabilidade próxima da certeza – probabilidades bioestatísticas superiores a 99,5% -, e, por esse meio, mesmo depois da morte é hoje muitas vezes possível estabelecer com grande segurança a maternidade ou a paternidade. Assim, a justificação relativa à prova perdeu quase todo o valor, com a eficácia e a generalização das provas científicas, podendo as acções ser julgadas com base em testes de ADN, que não envelhecem nunca. Como salienta Guilherme de Oliveira, Caducidade…, cit., pág. 11, “os exames podem fazer-se muitos anos depois da morte do suposto pai, ou na ausência do pai! Morrem as testemunhas, mudam os lugares, é certo, mas nada disso altera, verdadeiramente, o caminho que as acções seguem, e hão-de seguir cada vez mais, no futuro”.
16. Não é, pois, o valor da certeza objectiva da identidade pessoal que está em causa, mas antes a segurança para sujeitos ou pessoas concretas – designadamente, o interesse do pretenso progenitor, que poderia ser investigado, em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, bem como o interesse, sendo o caso, da paz e harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai, a que se junta o argumento de que as acções de investigação visam frequentemente fins tão-só patrimoniais (de
“caça à herança”). Começando por este último, também ele não pode deixar de ser visto a outra luz. Se já anteriormente não era claro que acções antigas fossem necessariamente intentadas contra honestos cidadãos, com uma finalidade de cobiça, é certo que, hoje, quer o acesso ao direito quer a composição da riqueza mudaram, podendo mesmo muitas acções que poderiam beneficiar da imprescritibilidade decorrer hoje, provavelmente, entre autores e réus com meios de fortuna não muito diversos, com formação profissional e um emprego – Guilherme de Oliveira (ob. cit., pág. 11, nota 14) pergunta mesmo: “Seria concebível, nas leis contemporâneas, ler: ‘O filho ilegítimo (…) presume-se pobre, salvo prova em contrário…’, como se lia no art. 44.º, do Decreto n.º 2, de 1910?”. E o móbil do investigante pode bem ser apenas esclarecer a existência do vínculo familiar, chamar o progenitor a assumir a sua responsabilidade e descobrir o lugar no sistema de parentesco para deixar de estar só. Isto, mesmo em momentos em que não tenha pretensões patrimoniais, por não poder deduzir pretensões de natureza alimentar e não ter ainda previsivelmente expectativas sucessórias. Acresce que o argumento se situa num plano predominantemente patrimonial, não podendo ser decisivo ante o exercício de uma faculdade personalíssima, constituinte clara da identidade pessoal, como a de averiguar quem é o seu progenitor. Pode, aliás, deixar-se em aberto a questão de saber se a motivação, também patrimonial, da família do pretenso progenitor merece maior apreço do que a do investigante quando aquela pretende “proteger” a herança à protecção deste
último, por se afigurar decisiva a impossibilidade de anular totalmente a possibilidade de exercer o “direito pessoal” a conhecer o progenitor, a partir dos vinte anos, com invocação de uma tal motivação de segurança patrimonial. Perante esta diferença, verdadeiramente qualitativa, dos interesses em presença, afigura-se, aliás, difícil que se possa sindicar a motivação do investigante – e, de toda a forma, se a motivação censurável pode fundar limitações em casos extremos (a aplicação do instrumento do abuso do direito ou de outro remédio expressamente previsto), não legitimará por certo uma exclusão geral e total do direito a investigar a paternidade. Poderá aceitar-se que o argumento da segurança possa eventualmente justificar um prazo de caducidade da investigação de paternidade. Mas o certo é que no presente caso está apenas em causa o concreto prazo previsto no artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, que conduz à caducidade da acção logo a partir dos vinte anos de idade.
17. Quanto ao interesse do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada a dúvida quanto à sua paternidade, não pode, desde logo, deixar de observar-se que, se o que está em questão é realmente a incerteza quanto à paternidade, esta pode hoje, com grande segurança, ser logo eliminada, com a concordância do próprio pretenso progenitor que nisso estiver realmente interessado, bastando, para tal, aceitar a realização de um vulgar teste genético de paternidade. Não deve sobrevalorizar-se, no confronto com bens constitutivos da personalidade, a garantia de “segurança jurídica”, que releva sobretudo no
âmbito patrimonial. Note-se que a ordem jurídica não mostra uma preocupação absoluta com a segurança patrimonial dos herdeiros reconhecidos do progenitor, podendo qualquer herdeiro preterido intentar acção de “petição da herança”, a todo o tempo, com sacrifício de quem tiver recebido os bens (artigo 2075º do Código Civil). E, de qualquer modo, pode duvidar-se de que o pretenso progenitor mereça uma protecção da segurança da sua vida patrimonial que justifique a regra de exclusão do direito do investigante, logo a partir dos vinte anos e sem consideração de outras circunstâncias, a saber que é o seu pai. É que não pode conceder-se a uma certeza ou segurança patrimonial de outros filhos, ou do pretenso progenitor, relevância decisiva para excluir o direito, eminentemente pessoal e que integra uma dimensão fundamental da personalidade, a saber quem é o pai ou a mãe biológicos. Na verdade, afigura-se que a pretensão de satisfazer, através do sacrifício do direito do filho a saber quem é o pai, um puro interesse na tranquilidade – em
“ser deixado em paz” – ou na eliminação rápida de dúvidas – em resolver o assunto – não é digna de tutela, se se tratar realmente do progenitor. Este tem uma responsabilidade para com o filho que não deve pretender extinguir pelo decurso do tempo, logo que aquele completa 20 anos, pela simples invocação de razões de segurança, confiança ou comodidade. E se, diversamente, não se tratar do verdadeiro progenitor, pode, como se disse, submeter-se a um teste genético sem nada a temer. Retomando as palavras de Guilherme de Oliveira (ob. cit., pág.
10), “se o suposto progenitor julga que é o progenitor, está nas suas mãos acabar com a insegurança – perfilhando – e se tem dúvidas pode mesmo promover a realização de testes científicos que as dissipem; se, pelo contrário, não tem a consciência de poder ser declarado como progenitor, não sente a própria insegurança. E se for um dia surpreendido pelas consequências de um ‘acidente’ passado há muito tempo, dir-se-á que tem sempre o dever de assumir as responsabilidades, porque mais ninguém o pode fazer no lugar dele.” Também a circunstância, aduzida em defesa do regime actual, de o estabelecimento da filiação alegadamente dever ter lugar quando é mais necessário, e pode ser mais útil para o filho, não pode considerar-se decisiva, desde logo, porque – mesmo aceitando a lógica “assistencial” deste argumento – o dever de prestação de alimentos pelos pais aos filhos se prolonga bem para além da maioridade. E, de qualquer forma, a apreciação da conveniência em determinar a identidade do seu progenitor, como elemento da sua identidade pessoal, corresponde a uma faculdade eminentemente pessoal, em que apenas pode imperar o critério do próprio filho, e não qualquer “interpretação” externa do seu interesse ou utilidade deste na investigação da paternidade. E também não se vê que possa só por si a protecção do interesse na paz e harmonia da família conjugal que pode ter sido constituída pelo pretenso pai, considerar-se decisiva. Ao que acresce especificamente, ainda, que o investigado casado não deve ou pode seguramente receber, por esse facto, maior protecção contra potenciais investigantes do que o solteiro. Tal tratamento desigual baseia-se numa circunstância irrelevante para o fim visado pelo investigante, com a acção de investigação de paternidade, para além de tais limitações específicas ao direito de agir contra supostos progenitores casados (ao tempo do nascimento ou apenas no momento do reconhecimento), embora com antecedentes no nosso sistema jurídico, se traduzirem em efeitos discriminatórios, constitucionalmente vedados, contra os filhos concebidos fora do casamento.
É certo que o investigado poderá também invocar direitos fundamentais, como o
“direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar” (ou, mesmo, também, como se disse, o direito ao desenvolvimento da personalidade), que poderão ser afectados pela revelação de factos que o possam comprometer. Não se vê, porém, que se possa proteger tais interesses do eventual progenitor à custa do direito de investigar a própria paternidade. Uma alegada
“liberdade-de-não-ser-considerado-pai”, apenas por terem passado muitos anos sobre a concepção, ou um interesse em eximir-se à responsabilidade jurídica correspondente, determinada fundamentalmente pelo “princípio da verdade biológica” que inspira o nosso direito da filiação, não podem considerar-se dignos de tutela, pelo menos, a ponto de sacrificar o direito do filho a apurar e ver judicialmente declarado que é o seu pai (e lembre-se, aliás, que como se disse, não é de excluir que se possa chegar, mesmo fora de um processo judicial, mediante exames realizados no próprio Instituto Nacional de Medicina Legal, à conclusão de que certa pessoa é progenitora de outra, ficando, porém, a verdade biológica sem relevância simplesmente porque o progenitor não pretende perfilhar e o filho já completou vinte anos).
18. Pode, pois, concluir-se que o regime em apreço, ao excluir totalmente a possibilidade de investigar judicialmente a paternidade (ou a maternidade), logo a partir dos vinte anos de idade, tem como consequência uma diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, que incluem o direito ao conhecimento da paternidade ou da maternidade. Neste ponto, não pode ignorar-se, desde logo, que o prazo de dois anos em causa se esgota normalmente num momento em que, por natureza, o investigante não é ainda, naturalmente, uma pessoa experiente e inteiramente madura (constatação que não é contrariada, nem pelo limite legal para a aquisição de capacidade de exercício de direitos, nem, muito menos, pela previsão legal de uma tutela geral da personalidade, no seu potencial de aperfeiçoamento). E, sobretudo, que tal prazo pode começar a correr, e terminar, sem que existam quaisquer possibilidades concretas de – ou apenas justificação para – interposição da acção de investigação de paternidade, seja por não existirem ou não serem conhecidos nenhuns elementos sobre a identidade do pretenso pai (os quais só surgem mais tarde), seja simplesmente por, v.g., no ambiente social e familiar do filho ser ocultada a sua verdadeira paternidade, ou não existir justificação para pôr em causa a paternidade de quem sempre tenha tratado o investigante como filho (sem, todavia, que a paternidade deste esteja estabelecida e venha a ser impugnada, como aconteceu no caso que deu origem ao julgamento de inconstitucionalidade proferido no Acórdão n.º 456/2003). Logo por esta razão, portanto, se conclui que o prazo de dois anos é inconstitucional, por violação dos artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1, e 18º, n.º 3, da Constituição.
19. Mesmo, porém, que se negasse uma verdadeira afectação do conteúdo essencial dos direitos referidos, por se entender que podem ainda restar (pelo menos, na maioria dos casos) certas possibilidades investigatórias ao filho, afigura-se, também logo no plano da sua justificação – que não já apenas no dos efeitos –, que a solução em causa não pode, hoje, ser considerada constitucionalmente admissível, por violação da exigência de proporcionalidade (lato sensu) consagrada no artigo 18º, n.º 2, da Constituição.
É que, pelo menos no actual contexto, tal regime passou a traduzir uma apreciação manifestamente incorrecta dos interesses ou valores em presença, em particular, quanto à intensidade e à natureza das consequências que esse regime tem para cada um destes: não só os prejuízos, designadamente não patrimoniais, que advêm da perda, aos vinte anos de idade, do direito a saber quem é o pai, se apresentam claramente desproporcionados em relação às desvantagens eventualmente resultantes, para o investigado e sua família, da acção de investigação (quer esta proceda – caso em que só será mais evidente a falta de justificação para invocar estes interesses –, quer não), como são possíveis, como se disse, alternativas, quer ligando o direito de investigar às reais e concretas possibilidades investigatórias do pretenso filho, sem total imprescritibilidade da acção (por exemplo, prevendo um dies a quo que não ignore o conhecimento ou a cognoscibilidade das circunstâncias que fundamentam a acção), quer para obstar a situações excepcionais, em que, considerando o contexto social e relacional do investigante, a invocação de um vínculo exclusivamente biológico possa ser abusiva, não sendo de excluir, evidentemente, o tratamento destes casos-limite com um adequado “remédio” excepcional (seja ele específico – cfr. o regime referido do Código Civil de Macau – ou geral, como o abuso do direito, considerando-se ilegítimo desprezar os efeitos pessoais a ponto de se considerar a paternidade como puro interesse patrimonial, a “activar” quando oportuno).
20. Conclui-se, pois, que a norma do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, ao prever a extinção do direito de investigar a paternidade, em regra, a partir dos vinte anos de idade, é inconstitucional, por violação dos artigos 26º, n.º 1,
36º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição da República. E, por conseguinte, há que conceder provimento ao presente recurso.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar inconstitucional o artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa; b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em consonância com o presente juízo de inconstitucionalidade; e c) Condenar o recorrido em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 7 de Julho de 2004 Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos