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Processo n.º 252/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
No 1.º Juízo Cível da Comarca do Funchal, segundo informação da respectiva Secção de Processos, foi detectado, em 14 de Outubro de 2002, por consulta do livro dos processos confiados, que os autos de inventário judicial com o n.º -----/1999 se encontravam desde 20 de Novembro de
2000 no escritório do advogado Dr. A., ao qual foi de imediato solicitada a sua devolução, que logo ocorreu. Em informação suplementar, determinada pelo respectivo Juiz, esclareceu-se não constar daquele livro nem da pasta de arquivo dos requerimentos de confiança dos processos qualquer alusão ao cumprimento do disposto no artigo 170.º, n.º 1, do Código de Processo Civil
(CPC), do seguinte teor: “O mandatário judicial que não entregue o processo dentro do prazo que lhe tiver sido fixado será notificado para, em dois dias, justificar o seu procedimento”.
Por despacho de 15 de Outubro de 2002, o juiz do referido Juízo exarou o seguinte despacho:
“Atento o tempo em que o processo permaneceu no escritório do advogado que o solicitou para consulta (que nem, aliás, o podia fazer, visto que não é mandatário judicial constituído por qualquer das partes – artigo
169.º, n.º 1, do CPC), sem que o tenha devolvido no prazo legal, condeno-a na multa a que alude o artigo 170.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC (artigo 102.º, alínea b), do Código das Custas Judiciais).”
O advogado sancionado veio requerer a reforma dessa decisão, ao abrigo do disposto no artigo 669.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, por entender ter havido manifesto lapso do juiz quer na determinação da norma aplicável quer na qualificação dos factos, porquanto, não sendo o requerente mandatário constituído pelas partes, não estava abrangido pelos artigos 169.º e
170.º do CPC e, por outro lado, por não ter sido previamente notificado, nos termos do n.º 1 deste artigo 170.º, para, em dois dias, justificar a não entrega do processo confiado. Nesse requerimento mais sustentou o requerente que “considerando que o conteúdo genérico do direito fundamental do acesso aos tribunais leva implícita a proibição da indefesa, há-de ter-se por seguro que a citada norma do n.º 2 do artigo 170.º quando interpretada e aplicada, como foi no douto despacho em apreço, por forma a condenar em multa, pela falta de entrega do processo sem a prévia audição, padece de inconstitucionalidade por violação daquele outro princípio constitucional”.
Esse pedido de reforma da decisão foi indeferido por despacho de 4 de Novembro de 2002, do seguinte teor:
“O principio ínsito no artigo 169.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, de que o processo só pode permanecer fora do tribunal por cinco dias e não mais, mas até menos, caso cause embaraço grave ao andamento da causa, circunstância que pode reduzir tal prazo de cinco dias para menos, é bem elucidativo dos cuidados a ter com os processos, nomeadamente em defesa do necessário e célere andamento da causa.
Em defesa deste princípio, que, no caso vertente, se nos afigura superior ao defendido pelo Ex.mo subscritor do requerimento ora em análise, quando refere que «não foi notificado ou previamente ouvido, não lhe foi assegurado o direito de defesa ou de poder justificar o seu procedimento, ficando assim impedido de exercer esse direito fundamental essencial em qualquer país do mundo civilizado (artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem)», não poderemos deixar, também, de referir que, a todos é devida uma justiça tão célere quanto possível, sendo pouco compreensível que um advogado mantenha um processo no seu gabinete cerca de dois anos sem o devolver ao tribunal, obstaculizando com esse comportamento que a solução da causa seja obtida tão rápido quanto possível, quanto é certo ainda que nem sequer o Ex.mo advogado opoente de fls. 92, não sendo advogado constituído por qualquer das partes no processo, podia levar o processo para fora do tribunal, mas tão-só consultá-lo na secretaria.
E o direito das partes intervenientes no processo a verem resolvido o processo no prazo mais célere possível, afigura-se-nos superior ao direito de o referido distinto advogado dever ser notificado nos termos do artigo 170.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, para que antes de entregar o processo, ainda tivéssemos de, em apelo ao apregoado direito de defesa – no caso dos autos de justificação de tal procedimento – começar agora a discutir, ainda com a
«opinião» das partes contrárias (trata-se de um inventário onde todos os interessados – 2, 3, 10, 20 ? – poderiam dar a sua «opinião»), sobre o bem ou não fundado da permanência do processo durante dois anos no gabinete do advogado, ou sobre o bem ou não fundado das razões expendidas no requerimento ora em análise, para que lhe não seja aplicada a multa legal.
Entendemos, salvo melhor opinião, que este direito – o da administração célere da justiça – como corolário da obrigação de o processo ter sido entregue no prazo máximo de 5 dias no tribunal, em confronto com o direito do Ex.mo requerente de fls. 92 em dever ser previamente notificado para dizer porque não entregou o processo no prazo de cinco dias, se sobrepõe e deve prevalecer.
A isto obriga também, salvo melhor opinião, o disposto no artigo
335.º do Código Civil, termos em que vai indeferido o requerido.”
É contra este despacho que vem interposto o presente recurso, nos termos artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), pretendendo ver-se apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 170.º, n.º 2, do CPC, “quando interpretado e aplicado no sentido de condenar em multa (como efectivamente condenou pela não entrega do processo no prazo de 5 dias) sem audição prévia do assim sancionado (...) por violação dos n.ºs 1 e 10, respectivamente, dos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como dos princípios constitucionais, que os informam, do acesso ao direito, do contraditório e da conformação do processo segundo os direitos fundamentais, para além do artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
O recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1.ª – Da letra e espírito do douto despacho cuja reforma se pediu na instância recorrida bem como dos seus antecedentes e consequentes, resulta que o mesmo foi proferido sem que o advogado nele sancionado tenha sido previamente notificado nos termos do disposto no n.º 1 e para efeitos do n.º 2 do artigo 170.º do CPC.
2.ª – E como não foi notificado ou previamente ouvido relativamente
à aplicação daquela multa não lhe foi assegurado o direito de defesa ou de poder justificar o seu procedimento, ficando assim impedido de exercer esse direito fundamental e essencial em qualquer País do mundo civilizado (artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem).
3.ª – Depois, para mais e como o próprio despacho reconhece, o advogado sancionado não é mandatário judicial constituído por qualquer das partes, enquanto o n.º 2 do artigo 170.º comina sanções somente aplicáveis quando o processo é confiado nos termos do artigo anterior (ou seja a mandatários judiciais das partes), pelo que se poderá dizer que ao recorrente foi aplicada uma pena não só sem haver lei a cominar a mesma ou violando o velho e sagrado principio nulla poena sine lege mas também sem ser previamente ouvido sobre a não entrega atempada do processo causadora da cominação em apreço.
4.ª – Daí que, por estas outras razões, o advogado sancionado não esteja abrangido pelos artigos 169.º e 170.º do CPC nem por nenhuma outra disposição de igual ou semelhante conteúdo, sendo o seu campo de aplicação expressamente aplicável apenas aos mandatários constituídos pelas partes e o advogado sancionado não é ou não está constituído.
5.ª – É inconstitucional, e como tal deve declarar-se, o n.º 2 do artigo 170.º do CPC, quando interpretado e aplicado no sentido de condenar em multa (como efectivamente condenou pela não entrega do processo no prazo de 5 dias) sem audição prévia do assim sancionado, por violar os n.ºs 3, 1 e 10, respectivamente, dos artigos 3.º [ter-se-á querido escrever 20.º], 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como dos princípios constitucionais que os informam do acesso ao direito, do contraditório e da conformação do processo segundo os direitos fundamentais, para além do artigo
11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.”
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou contra-alegações, concluindo:
“1.º – Uma das dimensões do princípio constitucional da «proibição da indefesa» é a que se traduz na insusceptibilidade de aplicação às partes ou a quaisquer intervenientes processuais de uma sanção processual, sem previamente lhes facultar o contraditório, relativamente ao ilícito que lhes é imputado.
2.° – A norma do artigo 170.° do Código de Processo Civil pode e deve ser interpretada em conformidade com tal princípio constitucional, em termos de o mandatário que não entregue o processo confiado, no prazo legal, ter de ser notificado para justificar o seu procedimento, antes de lhe ser cominada a multa prevista no n.° 2 de tal preceito legal.
3.° – Termos em que deverá proferir-se decisão interpretativa, nos termos previstos no artigo 80.°, n.° 3, da Lei n.° 28/82.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Os artigos 169.º a 172.º do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 323/70, concediam aos mandatários constituídos pelas partes (advogados, candidatos à advocacia e solicitadores) a faculdade de requererem por escrito que os processos pendentes lhes fossem confiados para exame em sua casa (artigo 169.º, n.º 1), podendo, relativamente aos processos findos, a confiança ser requerida por qualquer pessoa capaz de exercer o mandato judicial a quem fosse lícito examiná-los na secretaria
(artigo 169.º, n.º 2). O pedido era informado pela secretaria e decidido pelo juiz, que, se o deferisse, fixava o prazo do exame (artigo 169.º, n.º 3), excepto nos casos em que, por disposição da lei ou por despacho do juiz, o mandatário judicial tivesse prazo para exame do processo, hipótese em que a secretaria, a simples pedido verbal e independentemente de outro despacho, lhe confiaria o processo pelo prazo marcado (artigo 171.º, n.º 2).
A falta de restituição do processo dentro do prazo fazia incorrer o mandatário judicial, “sem necessidade de prévia notificação, na pena de suspensão por um mês e máximo de multa”, penas que seriam elevadas ao dobro se deixasse passar dez dias sem fazer a entrega (artigo 170.º, n.º 2), e, no caso do artigo 171.º, se o processo tivesse sido confiado para alegação escrita, perdia também o direito de a juntar (artigo 171.º, n.º 2). Se, ao cabo de dois meses, o mandatário ainda não tivesse entregue o processo, o facto seria comunicado ao Ministério Público, que promoveria procedimento pelo crime de desobediência e faria apreender o processo (artigo 170.º, n.º 2).
O Decreto-Lei n.º 457/80, de 10 de Outubro, na nova redacção que deu ao artigo 170.º do CPC, atenuou o rigor do anterior regime: impôs a prévia notificação do mandatário judicial para, em 48 horas, justificar o seu procedimento (artigo 170.º, n.º 1); se não apresentasse justificação ou esta não constituísse facto do conhecimento pessoal do juiz ou justo impedimento, seria condenado no máximo da multa, que seria elevada ao dobro se, notificado da sua aplicação, não entregasse o processo no prazo de cinco dias
(artigo 170.º, n.º 2), eliminando-se, assim, a pena de suspensão do mandatário por um mês, susceptível de elevação até dois meses. Mantinha-se a previsão da comunicação do facto ao Ministério Público, para efeitos de procedimento por crime de desobediência e apreensão do processo, se a entrega ainda não tivesse sido feita no prazo de dois meses, agora contados da notificação da aplicação da multa (artigo 170.º, n.º 3).
O Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 20 de Setembro, na nova redacção dada ao artigo 169.º possibilitou que o pedido de confiança (pelos mandatários judiciais constituídos pelas partes quanto a processos pendentes, ou por qualquer pessoa capaz de exercer o mandato judicial quanto aos processos findos) seja feito quer por escrito, quer verbalmente, cabendo à secretaria facultar a confiança do processo, pelo prazo de cinco dias, com possibilidade de redução se causar embaraço grave ao andamento da causa. O juiz só intervém em caso de reclamação contra a recusa de confiança pela secretaria.
Verificando-se falta de restituição do processo dentro do prazo, o mandatário judicial em causa “será notificado para, em dois dias, justificar o seu procedimento” (n.º 1 do artigo 170.º); se não apresentar justificação ou esta não constituir facto do conhecimento pessoal do juiz ou justo impedimento, “será condenado no máximo de multa”, que “será elevada ao dobro se, notificado da sua aplicação, não entregar o processo no prazo de cinco dias” (n.º 2 do artigo 170.º). Decorrido este último prazo (e já não o anterior prazo de dois meses) sem que a restituição se tenha verificado, o facto é comunicado ao Ministério Público para procedimento por crime de desobediência e para providenciar pela apreensão do processo (n.º 3 do artigo
170.º). Inovatoriamente, o n.º 4 deste preceito prevê agora a comunicação do facto à Ordem dos Advogados ou à Câmara dos Solicitadores “para efeitos disciplinares”. Na nova redacção dada ao artigo 171.º, foi eliminada a cominação de perda do direito de juntar alegação escrita se a confiança do processo, não restituído em tempo, tivesse sido feita para essa finalidade.
2.2. Recordada a evolução do regime legal, importa começar por assinalar que a questão de constitucionalidade sobre que o Tribunal Constitucional se tem de pronunciar consiste em apreciar se a aplicação da sanção prevista no n.º 2 do artigo 170.º do CPC sem prévia notificação do mandatário para, em dois dias, justificar a não entrega do processo dentro do prazo que lhe tiver sido fixado para exame fora da secretaria do tribunal viola a “proibição da indefesa”, designadamente em processos sancionatórios, que resulta dos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa (CRP), pois perante o tribunal recorrido, como acima se relatou, a arguição da nulidade teve por objecto tão-só aquela norma enquanto permite a condenação em multa sem prévia audição do “infractor”. Não está, assim, em causa no presente recurso nem a questão da correcção do entendimento seguido no despacho impugnado, a nível da interpretação do direito ordinário, de que aquele artigo 170.º é aplicável a advogado que não fora constituído mandatário na causa, mas que obtivera a confiança do processo (por ser questão estranha à competência do Tribunal Constitucional), nem a questão da constitucionalidade desta “interpretação analógica” que o recorrente parece, nas suas alegações, querer suscitar quando invoca a violação do artigo 29.º, n.º 1, da CRP (por ser questão que não foi suscitada – podendo tê-lo sido – antes de proferida a decisão recorrida).
A apontada questão ainda não foi objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, mas tem óbvia similitude com a suscitada a propósito da admissibilidade da condenação por litigância de má fé, sem prévia audição do “condenado”, relativamente à qual a jurisprudência deste Tribunal é significativa.
Com efeito, já por diversas vezes foi o Tribunal Constitucional confrontado com a questão da inconstitucionalidade – designadamente por violação dos princípios constitucionais da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito, e do princípio da proibição da indefesa, consagrados nos artigos 2.º e 20.º, n.º 1, da Constituição – da interpretação dada ao artigo 456.º do CPC, no sentido de a condenação em multa por litigância de má fé não pressupor a prévia audição dos interessados, em termos de estes poderem alegar o que tiverem por conveniente sobre uma anunciada e previsível condenação. E sempre este Tribunal concluiu pela inconstitucionalidade dessa interpretação, embora, em termos decisórios, tenha em geral optado pela imposição da adopção da interpretação oposta, por “conforme à Constituição”: cf. Acórdãos n.ºs 440/94 (Diário da República, II Série, n.º 202, de 1 de Setembro de 1994, pág. 9140; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 438, pág. 84; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28.º vol., pág. 319), 357/98 (Diário da República, II Série, n.º 162, de 16 de Julho 1998, pág. 9886; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40.º vol., pág. 275) e 289/02 (Diário da República, II Série, n.º 262, de 13 de Novembro de 2002, pág. 18 789), e ainda, embora a propósito da norma do artigo 458.º do mesmo Código, o Acórdão n.º 103/95 (Diário da República, II Série, n.º 138, de 17 de Junho de 1995, pág. 6674; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., pág. 595).
Como se referiu, por último, no Acórdão n.º 156/03
(inédito, mas disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “na sua redacção anterior, o artigo 456.º do Código de Processo Civil já foi objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional (Acórdãos n.ºs 440/94, 103/95 e 357/98
...)”, mas, “porque as alterações que lhe foram introduzidas, primeiro pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e depois pelo Decreto-Lei n.º
180/96, de 25 de Setembro, não foram significativas para o que ora está em causa, continua a entender-se, como no primeiro daqueles arestos (de resto, com transcrição no último), «que o regime instituído nas normas do artigo 456.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, quando interpretadas no sentido de a condenação em multa por litigância de má fé não pressupor a prévia audição do interessado em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente, sobre uma anunciada e previsível condenação, padecerá de inconstitucionalidade, por ofensa daquele princípio constitucional» (o da proibição da indefesa, implicado no conteúdo genérico do direito fundamental de acesso aos tribunais)”. Na verdade, nessas situações, “semelhante interpretação priva por completo o interessado de poder apresentar perante o tribunal qualquer tipo de defesa, acabando por ser confrontado com uma decisão condenatória cujos fundamentos de facto e de direito não teve oportunidade de contraditar”.
No citado Acórdão n.º 440/94 expendeu-se:
“3 – Desde que o tribunal verifique a existência de má fé material
(ou substancial) e má fé instrumental, cumpre-lhe condenar em multa o litigante doloso, mesmo quando a parte contrária não haja pedido tal condenação
(doravante tratar-se-á exclusivamente do arco normativo respeitante à condenação em multa, pois que foi apenas esse o segmento utilizado na decisão recorrida).
Não se acha prevista na norma em apreço qualquer mecanismo processual autónomo que haja de ser cumprido com vista à emissão daquele juízo condenatório, o que determinou o entendimento e a prática reiteradas de que o juiz, oficiosamente, sem dependência de qualquer acto da parte contrária ou de audição do interessado, dita na própria sentença essa condenação e logo lhe fixa a quantia certa a que corresponde.
Simplesmente, deve acentuar-se que, desde logo, o próprio Código de Processo Civil estabelece no artigo 3.º, n.º 2, o princípio do contraditório, em termos de só nos casos excepcionais previstos na lei se poderem «tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida».
Este princípio, que se mostra reflectido em diversos dispositivos daquele diploma, nomeadamente, nos artigos 517.º (princípio da audiência contraditória), 521.º, n.º 2 (forma da antecipação da prova), 586.º (dilação da diligência), 631.º, n.º 3 (substituição de testemunhas) e 645.º, n.º 2
(inquirição por iniciativa do tribunal), pressupõe o direito de audiência dos destinatários das «providências» que vão ser tomadas pelo tribunal em termos de poderem alegar e responder, de poderem expor as suas razões de concordância ou discordância, desta forma se respeitando aquela estruturação dialéctica ou polémica do processo a que fazia referência Manuel de Andrade, obra citada, pág.
352.
Seja qual for a natureza que se atribua à sanção imposta aos litigantes condenados por má fé, o certo é que tal condenação representa, não só uma oneração pecuniária com determinada expressão económica mais ou menos significativa, mas constitui também, ou ao menos na generalidade dos casos pode constituir, uma forte lesão moral susceptível de afectar gravemente a dignidade pessoal e profissional daquele que a sofreu.
E assim sendo, parece justificar-se plenamente, no âmbito de disposição material daquele preceito, que aos interessados no juízo de censura ali previsto seja assegurado o exercício da contradição perante o tribunal onde litigam.
No sentido deste entendimento é significativo que a Lei n.º 28/82
(Lei do Tribunal Constitucional), no artigo 83.º, n.º 3, da sua versão originária, remetesse o regime da litigância de má fé para os termos da lei de processo, vindo ulteriormente, através do artigo 84.º, n.º 6, da Lei n.º 85/89, que introduziu diversas alterações no articulado primitivo, dispor que «quando entender que algumas das partes deve ser condenada como litigante de má fé, o relator dirá nos autos sucintamente a razão do seu parecer e mandará ouvir o interessado por 2 dias».
Desta forma, a Assembleia da República veio reconhecer expressamente a necessidade de se consagrar no instituto da litigância de má fé o direito à audição dos interessados, por certo com o propósito de assim se instituir normativamente neste domínio o princípio do contraditório processual e a garantia de defesa perante os órgãos judiciais.
Mas será que a não audição do interessado e a consequente eliminação do seu direito de defesa são geradoras de lesão constitucional?
4 – Em conformidade com o preceituado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».
O direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de acção no sentido do direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o
órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos pré-estabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado
à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas.
Ora, como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, págs. 163 e 164, no âmbito normativo daquele preceito constitucional deve integrar-se ainda «a proibição da “indefesa” que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista de limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses».
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, caracterizando o Acórdão n.º 86/88, Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988, o direito de acesso aos tribunais como sendo «entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder “deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras” (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, citado, pág. 364)».
Definido assim o conteúdo genérico do direito fundamental de acesso aos tribunais, que leva implicada a proibição da indefesa, tem-se por seguro que o regime instituído nas normas do artigo 456.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, quando interpretadas no sentido de a condenação em multa por litigância de má fé não pressupor a prévia audição do interessado em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente, sobre uma anunciada e previsível condenação, padecerá de inconstitucionalidade, por ofensa daquele princípio constitucional.
Com efeito, semelhante interpretação priva por completo o interessado de poder apresentar perante o tribunal qualquer tipo de defesa, acabando por ser confrontado com uma decisão condenatória cujos fundamentos de facto e de direito não teve oportunidade de contraditar.
Mas não resulta imperativo que tais preceitos hajam necessariamente de ser julgados inconstitucionais, já que, mostrando-se embora incompatível com a Lei Fundamental a interpretação que lhes foi dada na decisão recorrida, outra existe que os torna constitucionalmente comportáveis.
Com efeito, mostra-se possível e adequada uma interpretação de conformidade constitucional daquelas normas, em termos de condicionar o juízo de condenação ali previsto à prévia notificação do litigante suspeitado de má fé processual, concedendo-lhe um prazo para nos autos responder o que tiver por conveniente.
Com este sentido e alcance, não subsiste naquelas normas qualquer vício constitucional.”
Esta orientação tem sido seguida nos demais Acórdãos deste Tribunal Constitucional atrás citados e serve para iluminar a decisão a proferir nestes autos.
Com efeito, como salienta o representante do Ministério Público, nas alegações por si apresentadas, “afigura-se que uma dimensão relevante e essencial do princípio do contraditório se traduz em não poder ser aplicada ou cominada em qualquer processo uma sanção processual – neste caso, de índole patrimonial, a multa – sem que o visado, a quem é imputado o ilícito que justifica tal sancionamento, tenha tido oportunidade de defesa – e sem que possa invocar-se, para dispensar tal audição, o princípio da celeridade processual, aliás pouco afectado pelo muito escasso tempo necessário para cumprir o contraditório”. Na verdade, é de dois dias o prazo para o mandatário em causa justificar o seu procedimento e não se vislumbra razão para que a tramitação deste incidente interfira com o processamento normal da causa principal. Em suma: não ocorrem razões constitucionalmente relevantes, designadamente relacionadas com a celeridade processual, enquanto pressuposto do “direito a decisão em prazo razoável” (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), que imponham o sacrifício total do direito de defesa.
Entende-se, porém, que, à semelhança do que se tem decidido nos acórdãos que apreciaram a questão da inconstitucionalidade do artigo 456.º (ou do artigo 458.º) do CPC (citados Acórdãos n.ºs 440/94, 103/95,
357/98 e 289/2002), se justifica, no presente caso, o uso da faculdade prevista no artigo 80.º, n.º 3, da LTC. Na verdade, a norma questionada – face à própria literalidade do n.º 1 do artigo 170.º do CPC, da qual resulta a imposição da audição prévia do mandatário sancionando, notificando-o para justificar o seu procedimento – é manifestamente susceptível de uma interpretação conforme à Constituição, que considere não dispensável essa notificação antes da prolação da decisão condenatório em multa.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 170.º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que a condenação em multa do advogado que não proceda à restituição do processo no termo do prazo pelo qual o mesmo lhe foi confiado para exame fora da secretaria do tribunal ter de ser precedida de notificação do visado para, no prazo de dois dias, justificar o seu procedimento; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se, nos termos do n.º 3 do artigo 80.º da Lei do Tribunal Constitucional, a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 19 de Maio de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos