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Proc. n.º 403/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. impugnou judicialmente a decisão do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa que lhe indeferiu o pedido de apoio judiciário na modalidade de pagamento de honorários a patrono escolhido, mas, por sentença do
4º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, proferida em 17 de Dezembro de 2003, a impugnação foi julgada improcedente.
A A., inconformada, pretende interpor recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de
15 de Novembro (LTC), com vista “à declaração de inconstitucionalidade do artigo
7º n.º5 da Lei 30-E/2000, se entendido como excluindo a sociedades comerciais o benefício de apoio judiciário na modalidade de pagamento de honorários a patrono escolhido, por violação dos princípios da igualdade e acesso ao direito – artigos 20º n.º1 e 13º da Constituição da República Portuguesa”.
O recurso, porém, logo foi julgado improcedente por decisão tomada nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
A decisão começou por recordar o que, sobre a questão de inconstitucionalidade, se dizia na sentença recorrida, nos seguintes termos:
“Como resulta da própria letra da lei, o nº4 refere-se a pessoas colectivas e sociedades, especificando o nº5 um regime para sociedades e pessoas colectivas cujo objecto seja o comércio, isto é, o desenvolvimento de actividade económica com vista à obtenção de lucro. Assim, apenas se pode entender o disposto no art. 7° nº4 [da Lei n.º 30-E/2000 de 20 de Dezembro] como abrangendo as sociedades ou pessoas colectivas que não tenham como objecto a actividade comercial, pois de outra forma estar-se-ia a esvaziar o conteúdo da norma prescrita no nº5. Compreende-se que assim seja, uma vez que as sociedades comerciais têm como objecto o exercício de uma actividade organizada em termos de obtenção de lucro, pelo que existe uma diferença substancial entre o tratamento jurídico a dar a estas entidades e a pessoas singulares ou colectivas sem fins lucrativos. Atento o exposto, entende-se que às sociedades comerciais, como é o caso da recorrente, é aplicável o disposto no nº5 do art. 7°, pelo que apenas lhe pode ser concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa, total ou parcial, ou ao diferimento de pagamento de taxas de justiça e demais encargos, estando vedada a concessão de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono ou pagamento de honorários a patrono escolhido. Mais se considera que tal entendimento não viola qualquer princípio constitucional, nomeadamente o direito à igualdade ou o direito ao acesso ao direito e aos tribunais. Com efeito, o princípio da igualdade plasmado no art. 13° da Constituição prevê o tratamento igual de situações semelhantes. No caso em análise entendeu o legislador tratar de forma diferente realidades distintas, o que é um desenvolvimento lógico do princípio da igualdade. Na verdade, conceder um tratamento preferencial a sociedades com actividade lucrativa, em detrimento de pessoas singulares e pessoas colectivas sem fim lucrativo é que constituiria uma violação ao princípio da igualdade, por não haver razão justificativa para dar o mesmo tratamento a situações diversas. Não é também prejudicado o princípio do acesso ao direito, já que entendeu a lei diferenciar, no plano de acesso aos tribunais, aqueles que o fazem dentro de um plano de exercício de uma actividade dirigida ao lucro e os demais cidadãos, não sendo assim atingido tal princípio constitucional. Nesse sentido decidiu o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº167/99, de
10-03-1999, in D.R., II, 17-02-2000. Como ali doutamente se expende, ‘não decorre do art. 20° da Constituição, nem do seu art. 13º que as sociedades devam ser equiparadas às pessoas singulares, para o efeito de obterem patrocínio oficioso (..)’, pois ‘estando em causa o direito de acesso à justiça, a carência económica não tem o mesmo significado para as pessoas singulares e para as sociedades’. Acresce que tendo as sociedades comerciais a finalidade de obtenção de lucros, não seria equitativo afectar receitas do Estado destinadas a fins de solidariedade social a custos inerentes à actividade da sociedade. Por isso se considera, como no já citado Acórdão, que ‘a diferença de situações justifica a diferença de tratamento jurídico e, bem assim, a restrição ao direito a patrocínio judiciário, quando está em causa uma sociedade’.”
E prosseguiu, desenvolvendo o seguinte raciocínio:
“Ora, conforme se sublinhou na sentença do Tribunal recorrido, o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta questão a respeito de norma idêntica
– o n.º5 do artigo 7º do Decreto-Lei 387-B/87, de 29 de Dezembro, na redacção da Lei 46/96, de 3 de Setembro - tendo sempre concluído pela sua não inconstitucionalidade [cfr. Acórdãos n.ºs 97/99, in DR, II Série, de 10 de Abril de 1999, 167/99, in DR, II Série, de 17 de Fevereiro de 2000, 368/99, in DR, II Série de 9 de Março de 2000, 428/99, 90/00 e 234/01 (inéditos)].
No primeiro dos citados acórdãos escreveu-se:
7. Tendo em conta a delimitação do objecto do recurso precedentemente efectuada, será uma violação do direito de igual acesso aos tribunais, consagrado pelo artigo 20º da Constituição, a já mencionada restrição do apoio judiciário? A esta pergunta responde o Tribunal Constitucional negativamente, em virtude das seguintes considerações: a) Em primeiro lugar, não decorre da Constituição que as entidades com fins lucrativos sejam equiparáveis às pessoas singulares e pessoas colectivas de fim não lucrativo para efeitos de promoção pelo Estado de acesso à justiça; b) Em segundo lugar, as normas sub judicio não esvaziam o direito de acesso à justiça da sua substância, ao não concederem patrocínio judiciário em caso algum
às pessoas colectivas de fim lucrativo; c) Por último, as normas sub judicio não constituem uma restrição desproporcional e injustificada do direito à efectivação do acesso à Justiça.
8. Assim, desde logo, não decorre dos artigos 20º, nºs 1 e 2, e 13º da Constituição que as pessoas colectivas de fins lucrativos devam ser equiparadas
às pessoas singulares quanto ao conteúdo do direito ao patrocínio judiciário. Aliás, é na consagração do próprio princípio da universalidade que o legislador constitucional introduz, desde logo, uma ressalva quanto às pessoas colectivas em geral, determinando que estas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres
“compatíveis com a sua natureza” (artigo 12º, nº 2). Sendo o patrocínio judiciário um instrumento de acesso à justiça, a sua gratuitidade, como forma de protecção jurídica do efectivo exercício daquele direito, corresponde à promoção das condições necessárias para o acesso à Justiça. Ora, a promoção destas condições positivas nos casos de insuficiência económica não tem, necessariamente, a mesma expressão nas pessoas jurídicas com e sem fim lucrativo. Estas últimas, pela sua natureza lucrativa, têm condições para integrar na sua normal actividade económica os custos com profissionais do foro próprios da litigância que nelas é frequente. Assim, tal integração é própria do exercício normal da respectiva actividade económica. Não há, deste modo, uma necessidade lógica e valorativa de equiparar as pessoas singulares, e até mesmo as pessoas colectivas sem fim lucrativo, às pessoas colectivas com fim lucrativo, no que se refere ao direito de que sejam criadas ou promovidas condições de acesso à Justiça através da gratuitidade do patrocínio judiciário, em casos de insuficiência económica. As pessoas colectivas com fim lucrativo integram, pela sua natureza, na estruturação da sua actividade económica esses custos, dispondo, por isso mesmo, de condições para a compensação dos mesmos. E a possibilidade de integração daqueles custos na actividade económica das pessoas colectivas de fim lucrativo não é só uma normalidade, mas é mesmo um pressuposto normativo da própria existência jurídica de tais entidades. A impossibilidade de suportar os custos normais do exercício da actividade económica retira viabilidade a pessoas jurídicas, cuja constituição se justifica apenas para o exercício dessa mesma actividade económica, determinando, porventura, situações de falência e o congelamento da própria actividade económica de tais entidades, como forma de protecção dos interesses patrimoniais de outros e do próprio interesse geral no desenvolvimento saudável da economia. Por outro lado, a protecção jurídica pelo Estado das pessoas colectivas com fim lucrativo através do patrocínio judiciário gratuito corresponderia a uma opção de proteger a litigância de sociedades comerciais e empresas sem condições para assegurar a sua actividade económica, o que não é certamente uma imposição constitucional nem uma prática indiscutível à luz da livre concorrência e do interesse público na protecção da economia.
9. Sendo claro que há uma diferença de posicionamento das pessoas colectivas com fim lucrativo e das outras pessoas jurídicas quanto à necessidade de protecção jurídica condicionante do acesso à Justiça, resta saber se esse diferente posicionamento deixa de existir, em caso de insuficiência económica, quando as pessoas colectivas de fim lucrativo devam litigar em acções não relacionadas com a sua actividade económica normal, como poderia acontecer em casos de danos provocados por acidentes e outras situações inusitadas. Mas também quanto a estas situações há mecanismos de seguro e prevenção que não podem deixar de ser integrados nos custos das sociedades comerciais e na gestão do seu risco, não estando estas, mesmo em tais casos, nas mesmas condições das pessoas singulares ou das pessoas colectivas com fim não lucrativo. Não se pode dizer, por conseguinte, que dos artigos 20º, nºs 1 e 2, e 13º da Constituição resulte a necessidade de equiparação, quanto à protecção jurídica por patrocínio judiciário gratuito, das pessoas colectivas de fim lucrativo ou a estas equiparadas às restantes pessoas jurídicas.
10. Por outro lado, as normas sub judicio também não esvaziam o direito de acesso à justiça da sua substância ao não concederem patrocínio judiciário gratuito, em caso algum, às pessoas colectivas com fim lucrativo. Com efeito, tais normas prevêem a dispensa das custas e preparos em casos em que o respectivo montante seja comprovada e consideravelmente superior às possibilidades económicas daquelas entidades, “aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço”. Assim, nos casos em que o “preço da justiça” seja insuportável para aquelas entidades, impede-se que o acesso à justiça seja impossibilitado por insuficiência económica. Os custos com o patrocínio judiciário são, por outro lado, custos negociáveis e mais previsíveis e controláveis para as sociedades comerciais. Deste modo, e independentemente de saber se é por exigência constitucional que o direito de acesso à justiça implica a dispensa das custas e preparos nos casos previstos no artigo 7º, nº 5, da Lei nº 46/96, através dos modos nele previstos, o certo é que, mesmo na perspectiva de um critério exigente de promoção pelo Estado do acesso à Justiça, existe uma resposta suficiente naquela norma.
11. Em face das considerações anteriores, conclui-se que a igualdade de tratamento entre pessoas colectivas de fim lucrativo e as outras pessoas jurídicas e entidades não lucrativas, em matéria de patrocínio judiciário gratuito, não é imposta pela Constituição. Mas mesmo que se entenda que a diferenciação não pode ser total ou que será necessário respeitar, nas restrições previstas pelas normas sub judicio, uma certa proporcionalidade relativamente às demais situações, dever-se-á, ainda assim, reconhecer que tal diferenciação não só é justificada pela diversidade de condições referida - não sendo, por isso, uma restrição excessiva nem uma diferenciação desproporcionada - como também está sustentada por razões de interesse público. Com efeito, tal restrição do direito ao patrocínio judiciário
é justificável por critérios racionais de gestão do interesse colectivo e de repartição dos encargos públicos, ao dar prioridade e especial protecção no acesso à Justiça às pessoas e entidades sem fim lucrativo e ao exigir que as entidades com fim lucrativo suportem - ou criem mecanismos para isso adequados - os custos da actividade económica de que são beneficiários.
É esta jurisprudência – constante – que aqui se reitera, e que permite desde já concluir pela não inconstitucionalidade da norma do n.º5 do artigo 7º do Lei
30-E/2000 de 20 de Dezembro, quando interpretada no sentido de excluir as sociedades comerciais do benefício de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono ou pagamento de honorários a patrono escolhido.”
Dessa decisão reclama a recorrente, pretendendo que sobre ela recaia acórdão da Conferência, embora sem adiantar motivos ou argumentos que infirmem o despacho ou a doutrina nele perfilhada. Não há, assim, razões para aditar novos fundamentos à decisão reclamada, apenas sendo devido confirmá-la.
Pelo exposto, decide-se negar provimento à reclamação, confirmando a decisão de negar provimento ao recurso interposto.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20UC.
Lisboa, 2 de Junho de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Artur Maurício Maria Helena Brito (vencida, nos termos da declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 368/99). Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos da posição tomada no Acórdão nº
106/2004, que assinei) Luís Nunes de Almeida