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Processo n.º 840/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. e B. vêm reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão sumária do relator, de 24 de Agosto de 2004, que decidira, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do objecto dos recursos por eles interpostos.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A. e B. interpuseram recursos para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de
26 de Fevereiro (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14 de Julho de 2004, que negou provimento ao recurso por eles interposto do acórdão do
2.º Juízo Criminal da Comarca de Leiria, que condenou o primeiro recorrente, como autor de um crime de receptação e de dois crimes de falsificação de documento, na pena única de dois anos e três meses de prisão, e o segundo recorrente, como autor de um crime de receptação e de dois crimes de falsificação de documento, na pena única de dois anos e cinco meses de prisão, pretendendo ver apreciada:
«a inconstitucionalidade dos artigos 231.º, n.º 1, do Código Penal e 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação aplicada na decisão recorrida, no primeiro caso, no sentido em que se analisaram as características do bem em causa e as circunstâncias da sua aquisição que deveriam ter produzido uma suspeita sobre a proveniência ilícita do objecto, posteriormente, considerando-se estar preenchida a tipificação do crime de receptação na sua forma dolosa sem necessidade por parte do agente de um conhecimento concreto da privação, bastando o saber da subtracção à revelia e contra a vontade dos legítimos donos do bem e a vontade de realização ou aceitação do resultado constante das diferentes modalidades de dolo, com a intenção de obter um benefício ilegítimo. Na segunda situação, atendendo ao facto de o recorrente ter sido condenado com base nas suas declarações e nas que foram prestadas por outro co-arguido, valorando-se com carácter quase exclusivo a nível probatório as mesmas com ausência de outros meios de prova que lhe conferissem credibilidade.»
Segundo os recorrentes, «as aludidas normas legais na mencionada interpretação violam o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa». O recurso foi admitido pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra, decisão que não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC). E, com efeito, entende-se que o presente recurso é inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas (como acontece com o recurso de amparo espanhol ou a queixa constitucional alemã), ou a condutas ou omissões processuais. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
No presente caso, nas duas «dimensões» das questões de inconstitucionalidade suscitadas pelos recorrentes jamais se questiona a conformidade constitucional de qualquer norma ou interpretação normativa erigidas em critérios de decisão (critérios abstractos e genéricos e, por isso, susceptíveis de aplicação a uma generalidade de casos), mas antes a própria correcção da concreta subsunção dos factos e da valoração das provas feita pelo acórdão recorrido, atentas as especificidades irrepetíveis do caso concreto.
Esse controlo, tendo por objecto directo a decisão judicial recorrida, em si mesma considerada, não cabe no âmbito do recurso de constitucionalidade.
Assim, os presentes recursos surgem como inadmissíveis, o que dispensa a apreciação da verificação dos demais requisitos de admissibilidade desses recursos, designadamente o ter sido adequadamente suscitada, antes de proferida a decisão recorrida, uma questão de inconstitucionalidade normativa, em termos processualmente adequados a constituir o tribunal recorrido na obrigação de dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), e ter o acórdão recorrido feito aplicação, como ratio decidendi, dos «critérios normativos» impugnados.
3. Em face do exposto, decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º-A da LTC, não conhecer do objecto dos recursos.”
1.2. A reclamação apresentada pelos recorrentes contra o despacho do relator desenvolve a seguinte argumentação:
“a) Quanto à interpretação do n.º 1 do artigo 231.º do Código Penal,
1.º – Os recorrentes, ora reclamantes, foram condenados em juízo pela forma mais grave e principal do crime de receptação.
2.º – A fundamentação da decisão condenatória assentou nas características das viaturas automóveis e das circunstâncias da sua aquisição que deveriam ter levado os reclamantes a suspeitar da proveniência ilícita dos bens em causa. Ora,
3.º – Tal interpretação é desenquadrada da alçada do n.º l do artigo 231.º do Código Penal, sendo claramente violadora dos direitos, liberdades e garantias de dois cidadãos que são os reclamantes.
4.º – Mais grave se torna a posição do Tribunal Colectivo que julgou e condenou os reclamantes se no futuro aplicar os mesmos critérios a situações semelhantes que sejam sujeitas ao seu crivo analítico. Porquanto,
5.º – O n.º l do artigo 231.º do Código Penal estabelece de uma forma clara e taxativa o tipo de casos que abrange.
6.º – O legislador determinou na norma em apreço um elemento volitivo directo do agente do crime em pretender praticar o acto da receptação, ou seja, teríamos de estar perante uma vontade dolosa frontal dos reclamantes. Acontece que,
7.º – O julgador ao exigir àqueles que julga que os mesmos deveriam ter suspeitado da qualidade do bem, da condição de quem lhes propôs o negócio em termos de compra e de preço, estamos a sair da alçada do n.º 1 do artigo 231.º do Código Penal.
8.º – Quando aos alegados receptadores se pede o dever de se terem assegurado da proveniência dos bens e que os mesmos deveriam ter sido mais diligentes na obtenção da respectiva documentação em falta, não falamos, certamente, do n.º l do artigo 231.° do Código Penal.
9.º – Estamos confrontados com uma qualificação jurídica errónea, criando um precedente interpretativo com consequências gravosas para casos futuros.
10.º – Atendendo à interpretação da decisão o preceito legal a aplicar à situação que se determinou em sentença condenatória seria o n.º 2 do artigo
231.º do Código Penal.
11.º – Somente atendendo a um juízo preconcebido de condenação, independentemente da fundamentação para tal, é que podemos entender a actuação em apreço do julgador.
12.º – Esta atitude interpretativa assumida pelo julgador está em clara violação do n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, que, a manter-se, põe em causa o posicionamento adequado do Direito para casos semelhantes ao dos reclamantes.
b) Quanto à interpretação do artigo 127.º do Código de Processo Penal,
13.º – Os reclamantes não põem em causa o princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador.
Contudo,
14.º – O que parece ser algo ultrapassado no tempo e na História é uma valoração exclusiva das declarações dos arguidos em detrimento da restante prova.
15.º – Compete ao Ministério Público a apresentação de meios de prova que pusessem em causa a presunção de inocência, de forma a que se a acusação não desse frutos e os reclamantes negassem a prática dos factos criminosos, a consequência necessária e directa teria de passar pela sua absolvição.
16.º – Caso contrário, estaríamos a violar a «proibição da atribuição do ónus da prova ao arguido», incumbindo tal tarefa à acusação.
17.º – Face às dúvidas levantadas na apreciação da matéria de facto, a decisão de quem julgou os reclamantes apenas deveria ter obedecido ao princípio do in dubio pro reo.
No entanto,
18.º – Os reclamantes foram condenados atendendo-se às suas declarações não confessionais em obediência ao princípio da «livre apreciação da prova», consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Assim,
19.º – Atendendo às declarações dos reclamantes e de um arguido e à falta de confissões verificada, tornava-se necessário o julgador fundamentar a decisão condenatória em produção de prova complementar que não se produziu e tal não sucedeu.
20.º – Certo é que os depoimentos dos arguidos são um meio de prova aceitável (cf. artigos 125.º e 126.º, ambos do Código de Processo Penal) e de verdadeira utilidade para o processo em apreço, não impedindo a sua valoração pelo tribunal, nos termos do princípio da livre apreciação da prova.
Contudo,
21.º – A sua credibilidade e solidez são subalternas, em comparação com outros meios de prova e devido ao seu menor valor, em abstracto, as declarações dos arguidos não devem ser isoladamente valoradas pelo tribunal a quo, não podendo fundamentar, por si só, uma decisão condenatória, a sua ponderação deverá ser feita tendo em conta adicionais meios de prova admitidos no processo, que, caso não existissem, poderia o julgador ordenar a sua produção suplementar – cf. artigo 340.º do Código de Processo Penal.
22.º – São sim elementos de mera complementaridade controlada, podendo, nomeadamente, servir de alerta para factos ainda não ponderados pelo tribunal, mas não ser a substância da condenação de alguém em juízo. Assim,
23.º – A interpretação conferida pelos Julgadores a quo ao artigo 127.º do Código de Processo Penal, novamente, ofende o «princípio da presunção da inocência» dos reclamantes, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, sendo estes prejudicados em termos jurídico-penais pela valoração errada de declarações de co-arguidos, que conforme foi supra defendido não podem sustentar a base de uma condenação com um carácter quase exclusivo.
De igual modo,
24.º – Ao aceitar-se esta actuação decisória estaremos a criar novo precedente que dispensa a complementaridade de outros meios de prova para sustentar algo que carece de uma confirmação externa aos próprios interessados.
25.º – Tal forma de julgar revela um perigo de arbitrariedade em novos casos que sejam submetidos à douta apreciação do julgador em questão.
Termos em que,
Requer-se a V. Ex.as se dignem resolver a admissão do recurso em devido tempo interposto.”
1.3. O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional respondeu, considerando a presente reclamação “manifestamente improcedente”, já que “em nada foram abalados os fundamentos que estiveram na base da decisão sumária proferida nos autos”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como resulta da leitura da reclamação dos recorrentes, estes não aduzem qualquer argumento novo capaz de abalar os fundamentos da decisão sumária impugnada.
Relativamente ao que designam por “primeira situação”, o que questionam é a correcção da concreta subsunção efectuada pelo tribunal recorrido, que, com base nos factos tidos por provados, entendeu que a conduta dos recorrentes integrava a autoria do crime previsto no n.º 1 do artigo 231.º do Código Penal (“Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”), quando, no entender dos recorrentes, o juízo subsuntivo correcto seria o de julgar verificado o tipo previsto no n.º 2 do mesmo preceito (“Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias”).
Os recorrentes não identificam nenhum critério normativo que o tribunal teria adoptado e que fosse constitucionalmente desconforme, mas apenas contestam a justeza da operação judicial de subsunção jurídica dos factos do caso concreto, o que não constitui objecto idóneo de recurso de constitucionalidade.
O mesmo ocorre quanto à “segunda situação”, em que a alegada violação do princípio da presunção de inocência não é reportada a qualquer interpretação normativa, mas apenas ao valor – excessivo, no entender dos recorrentes – que o tribunal terá conferido às declarações de co-arguidos, em sede de decisão da matéria de facto dada por provada, o que, de novo, não constitui objecto admissível do recurso de constitucionalidade.
O invocado risco de o mesmo tribunal, em situações similares à presente, vir a reincidir nos erros de julgamento em que pretensamente terá incorrido no presente caso é manifestamente insuficiente para transformar uma questão de decisão da matéria de facto e de qualificação jurídico-criminal dos factos apurados, indissociável das particularidades do caso concreto, numa questão de interpretação normativa.
É, assim, de manter a decisão sumária reclamada.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, por cada um.
Lisboa, 15 de Setembro de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Moura Ramos