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Processo n.º 130/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Notificado do Acórdão n.º 196/2004, do Tribunal Constitucional, que não julgou inconstitucional a norma do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, e, consequentemente, negou provimento ao recurso que havia interposto, A. veio aos autos “reclama[r] por nulidade e ped[ir] a aclaração do douto acórdão” nos seguintes termos:
«O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade do n.º 1 do art.º 170º do Código Penal, na medida (e apenas na medida) em que incrimina o fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e autodeterminada. Quaisquer considerações que abstraiam desse ponto de partida e de chegadas, embora possam interessar ao enquadramento genérico da questão, são inadequadas à decisão do caso concreto submetido à apreciação do Tribunal. Ora, toda a argumentação desenvolvida pelo douto Acórdão n.º 144/2004 assenta na ideia força de que aquele tipo legal de crime se reporta aos valores da autonomia e liberdade, que “estão directamente em causa nas condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição”, e devem ser
“protegidos pelo Direito enquanto aspectos de uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em estado de carência social”. Esse leit motiv emerge em várias passagens do douto acórdão, sobretudo na sua décima página, de onde, a título de mero exemplo, pode citar se:
- “opção de natureza criminal [...] justificada sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição”;
- “o facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir da qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desprotecção social”;
- “evitar já o risco de tais situações de exploração [...] na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas”;
- “certa percepção do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social”. O douto acórdão para onde remete aquele de que agora se reclama não tomou, assim, posição sobre a questão que constitui o único tema deste recurso, a saber, a questão da conformidade constitucional do preceito quando reportado a actos de fomento, favorecimento ou facilitação de actos de prostituição de pessoas livres e autodeterminadas, ou seja, de pessoas que, além do mais, não agem num quadro de abandono, necessidade económica ou carência social de qualquer tipo.
É só disso que trata o presente recurso e esta questão não foi resolvida pelo douto acórdão aclarando, na justa medida em que o acórdão para onde remete também a não resolveu. Pelo contrário, e como se disse, este último desenvolve toda a sua erudita fundamentação à volta dum pressuposto antónimo do que constitui a base deste recurso: a prostituição de pessoas em situação de carência e desprotecção social. Ora, como se disse, o Recorrente interpelou o Tribunal para decidir sobre o contrário disto, ao limitar o recurso às condutas de fomento, favorecimento ou facilitação dos actos de prostituição praticados por pessoas livres e autodeterminadas. E fê-lo porque é esse o caso dos autos, onde não surgiu jamais a mais leve suspeita de exploração de situações de carência de qualquer ordem. Bem vistas as coisas, o Acórdão n.º 144/2004 parece mesmo que exclui do âmbito da sua apreciação o caso concreto que integra o objecto do recurso onde se insere esta reclamação, ao afirmar que
“questão diversa [...] é a que se relaciona com a possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação”. Este excerto – que, conferido à luz da presunção de inocência, não deixa de causar algum embaraço e perplexidade – relaciona-se com a construção dogmática do lenocínio como verdadeiro crime de perigo abstracto adoptada pelo douto acórdão em alusão, que está longe de ser pacífica e o Recorrente não subscreve. O mínimo que poderá dizer-se é que esse acórdão suscita as mais justificadas dúvidas sobre se abrange ou não condutas relativas a pessoas que comprovada, livre e esclarecidamente optaram por se prostituir ou praticar actos sexuais de relevo. Mas é destas e só destas condutas que estamos a tratar neste recurso, do ponto de vista do tipo e da respectiva constitucionalidade. Essa questão, pelo que fica dito e salvo o devido respeito por quem pense o contrário, ficou por decidir, assim se tendo cometido a nulidade de omissão de pronúncia prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 668º CPC, aplicável por força do disposto no art.º 69º da LTC. TERMOS EM QUE,
- deve o Tribunal suprir a nulidade e tomar posição definida sobre a constitucionalidade do n.º 1 do art.º 170º, quando aplicado às hipóteses em que os actos sexuais de relevo e ou de prostituição nele mencionados são praticados por pessoas livres e autodeterminadas que, portanto, não agem motivadas ou condicionadas por situações de abandono ou de necessidade económica;
- no mínimo, deve o Tribunal esclarecer se a decisão de constitucionalidade da norma abrange também essas hipóteses em que o agente fomenta, favorece ou facilita a prostituição ou os actos sexuais de relevo por parte de pessoas livres e autodeterminadas, que não agem motivadas nem condicionadas por situações de abandono ou de necessidade económica.» O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado para se pronunciar, veio responder nos seguintes termos:
“1 – Ao contrário do alegado pelo recorrente, a norma do artigo 170º, n.º 1 do Código Penal, resultante das alterações introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, foi apreciada em sede da sua conformidade constitucional.
2 – A previsão do crime de lenocínio, uma vez eliminada a exigência da exploração de situações de abandono ou de necessidade económica, abrange naturalmente o fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição de pessoa livre e auto-determinada.
3 – Tendo este aspecto sido levado em consideração no decidido, não ocorre qualquer nulidade por omissão de pronúncia.” Cumpre decidir. II. Fundamentos
2. Entende o reclamante que o Acórdão reclamado padece de nulidade por não se ter pronunciado sobre questão de que cumpria ao Tribunal Constitucional tomar conhecimento – por omissão de pronúncia. Ora, no recurso de constitucionalidade apreciado pelo aresto reclamado não estava em causa apenas determinada dimensão normativa do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal – designadamente, a interpretação deste no sentido de se aplicar ao fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e autodeterminada –, a qual não foi identificada como tal pelo recorrente, enquanto objecto do recurso. Mas é certo também, por outro lado, que resulta da decisão reclamada, ao não restringir a pronúncia no sentido da inconstitucionalidade e ao remeter para a fundamentação do Acórdão n.º 144/2004, que ela se pronunciou sobre a constitucionalidade do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal sem distinções, incluindo, pois, também, o fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição de pessoa livre e auto determinada. Este aspecto foi devidamente levado em consideração no aresto reclamado, não se verificando qualquer omissão de pronúncia quanto a ele (e isto, independentemente da questão de saber se no caso concreto foi ou não efectuada qualquer prova do não preenchimento dos elementos relevantes para o tipo, questão que não cabe a este Tribunal apreciar, limitado, como está, à apreciação da conformidade constitucional de normas). Como resulta claramente do requerimento de recurso e das respectivas alegações, o objecto do recurso de constitucionalidade em questão era a apreciação da conformidade constitucional do “n.º 1 do art. 170º do Código Penal, com a redacção em vigor a partir da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro”, questão, esta, sobre a qual a decisão reclamada se pronunciou com clareza, no sentido da inexistência de inconstitucionalidade. Era apenas esta a questão que cumpria ao Tribunal decidir, e ela foi decidida.
3. Não se verifica, também, qualquer obscuridade ou falta de clareza objectiva no Acórdão reclamado, o qual se pronunciou claramente no sentido da não inconstitucionalidade, reiterando a orientação seguida anteriormente, no Acórdão n.º 144/2004, e remetendo para este quanto à fundamentação, sendo que, como resulta claramente desta última, incluiu também o aspecto no qual o reclamante vem agora insistir. Nada há, pois, a esclarecer, devendo o pedido de aclaração ser desatendido. III. Decisão Com estes fundamentos, decide-se desatender a reclamação de nulidade e o pedido de aclaração do Acórdão n.º 196/2004 e, em consequência, condenar o reclamante em custas, fixando a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 27 de Abril de 2004
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos