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Proc. 155/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. foi demandada no Tribunal Judicial de Vale de Cambra em acção em que era pedida a sua condenação no pagamento da importância relativa ao custo de determinadas obras de construção civil ou, em alternativa, a sua condenação na reparação dos defeitos existentes na fracção dos autores, assim como a pagar-lhes indemnização – a liquidar posteriormente – pelos danos causados na mesma fracção emergentes dos referidos defeitos.
Por sentença daquele Tribunal, proferida em 10 de Dezembro de 2001, a acção foi julgada procedente.
Inconformada, recorreu para a Relação do Porto; por acórdão de 10 de Julho de
2003 aquele Tribunal acabou por negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
É dessa decisão que é interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), invocando-se essencialmente o seguinte:
“Pretende-se que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 1225º, n.º1 do C.C., na medida em que por força de tal interpretação, se pretenda a condenação da Ré na reparação dos tubos de exaustão de fumo, visto que estes não são propriedade dos autores; Pretende-se que o Tribunal na apreciação da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 1225º, n.º1 do C.C. sopese a questão da colisão entre o direito 65º da C.R.P. e o artigo 62º do mesmo Diploma; Foi violado o art. 62º da Constituição da República Portuguesa. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações do Recurso de Apelação intentado pela Ré contra a sentença do Tribunal de Primeira Instância.”
Todavia, o Tribunal Constitucional recusou-se a conhecer do objecto do recurso em decisão tomada ao abrigo ao artigo 78º-A n.º 1 da LTC.
Ponderou-se então, essencialmente, o seguinte:
O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC – como é o presente – tem como objecto norma, ou normas, aplicada na decisão recorrida como razão de decidir e versa sobre a conformidade constitucional dessa norma jurídica.
Não se trata – e este Tribunal tem insistentemente afirmado este princípio – de apurar de eventual ofensa à Constituição provocada pela decisão recorrida enquanto processo concretizador da solução jurídica da causa, mas da aplicação, nessa solução, de uma norma inconstitucional. De modo que o objecto do recurso consiste, em suma, na aferição da conformidade constitucional de uma determinada norma efectivamente aplicada na decisão; está fora desse objecto a apreciação do processo ou do raciocínio lógico-jurídico que tenha presidido à aplicação no caso concreto de uma determinada norma, ainda que o resultado surja como aparentemente desconforme com os princípios ou normas constitucionais. No âmbito deste recurso o Tribunal não aprecia decisões jurisdicionais, pois apenas lhe é lícito exercer um controlo normativo.
Ora, o que verdadeiramente a recorrente visa pôr em causa é o juízo interpretativo e aplicativo da norma do artigo 1225º do Código Civil efectuado na decisão recorrida, cujo resultado é, em seu entender, ofensivo de direitos que estão garantidos na Constituição, designadamente o direito de propriedade. Isto é, não vem questionada a norma adoptada, mas o resultado da aplicação da norma, a decisão jurisdicional.
Deve, portanto, reafirmar-se que é legalmente inadmissível a pronúncia do Tribunal Constitucional sobre o mérito da decisão recorrida, pois apenas lhe é atribuído, no citado artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, um controlo normativo.
É contra tal decisão que reclama a recorrente em pretensão que conclui do seguinte modo:
“Destarte, nos termos do artigo 75º- A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, indica-se o seguinte: a) o presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1,do artigo
70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro; b) pretende-se que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 1225º, n.º1 do C.C., na medida em que por força de tal interpretação, se pretenda a condenação da Ré na reparação dos tubos de exaustão de fumo, visto que estes não são propriedade dos autores; c) Pretende-se que o Tribunal, na apreciação da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 1225.º,n.º1 do C.C., sopese a questão da colisão entre o direito 65º da C.R.P. e o artigo 62.º do mesmo Diploma. d) foi violado o art. 62.º da Constituição da República Portuguesa; e) A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações do Recurso de Apelação intentado pela Ré contra a sentença do Tribunal de Primeira Instância. Termos em que, em face de tudo o exposto, deve o presente recurso ser admitido pronunciando-se o Tribunal Constitucional sobre o seu mérito.”
O fundamento da discordância com o decidido resulta mais esplicitamente do seguinte trecho da reclamação:
“Não obstante, esta douta interpretação [a do acórdão recorrido] esquece que o direito de propriedade não se esgota nas facetas referidas na medida em que é um direito absoluto, oponível erga omnes e exclusivo, pois reserva para o titular do direito de propriedade a possibilidade de dispor das coisas de que é proprietário opondo-se a que qualquer outra pessoa que não seja o dono possa vir dispor ou fazer alterações na sua propriedade, concedendo-lhe a lei meios para o fazer. Sucede que, o douto aresto não tem em conta que o exercício do direito plasmado no artigo 65.º da C.R.P, tem sempre de ser articulado com o direito de propriedade dos condóminos não podendo, em benefício do direito a uma vida com higiene e conforto dos autores, vir a Ré lesar o direito de propriedade, também ele constitucionalmente consagrado, dos condóminos das fracções perpassadas por esses tubos. Do exposto resulta que a interpretação do artigo 1225.º, n.º 1 do C.C., no sentido de condenar a Ré a reparar os tubos da exaustão de fumos, colide com o consagrado no art. 62.º da CRP, na medida em que este estabelece o direito dos condóminos à propriedade privada que abrange os tubos de exaustão da sua fracção, e a interpretação do artigo 1225.º n.º 1 do C.C. feita pelo douto acórdão o contraria. Resulta ainda que a interpretação, feita pelo douto aresto, do artigo 65.º da C.R.P. colide com o art. 62.º da C.R.P ., no sentido em que dela decorre que por todos terem direito a uma vida com higiene e conforto a Ré poderia vir violar o direito de propriedade de terceiros. Pelo que, não podendo a Ré conformar-se com o douto aresto que procedeu à aplicação da aludida norma, interpretando-a de forma manifestamente inconstitucional, interpôs dela recurso para o Tribunal Constitucional.”
“... não pode a recorrente perfilhar tal entendimento [expresso na decisão sumária ora reclamada] porquanto se entende que o objecto do controlo normativo na fiscalização concreta consiste, em última análise, numa avaliação do sentido com que certas normas foram utilizadas numa decisão e também da interpretação que a decisão atribuiu à própria norma constitucional ou a um princípio constitucional nela consagrado, para depois ajuizar da sua conformidade ou desconformidade com o sentido paramétrico da norma constitucional, estabelecido pelo Tribunal Constitucional, daí retirando as legais consequências.”
Pretende-se, portanto, questionar o entendimento sufragado na decisão reclamada segundo o qual o objecto do recurso não incidiria no controlo normativo dos preceitos impugnados, mas na própria decisão recorrida.
A questão que agora se coloca consiste, deste modo, em saber se o recurso interposto, na configuração concreta que é delineada pela recorrente no respectivo requerimento, visa impugnar a própria decisão recorrida ou, diversamente, visa impugnar a norma ou normas que foram aplicadas na decisão recorrida como sua ratio decidendi.
Mas a verdade é que a presente reclamação acentua a já detectada falta de requisitos do recurso e, assim, confere inteira razão à decisão reclamada, pois
é bem patente que embora a censura surja sob a capa da impugnação de normas interpretadas em ofensa da Constituição, o que verdadeiramente a recorrente visa aqui pôr em causa é o juízo de que terá resultado, na opinião da recorrente, ofensa de direitos garantidos na Constituição, designadamente o direito de propriedade, decorrente da aplicação concreta da norma do artigo 1225º do Código Civil.
O Tribunal Constitucional tem, no entanto, insistentemente afirmado que o recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC não visa apurar da ofensa à Constituição provocada pela decisão recorrida enquanto processo concretizador da solução jurídica da causa. Está fora desse objecto a apreciação do processo ou do raciocínio lógico-jurídico que tenha presidido à aplicação no caso concreto de uma determinada norma, ainda que o resultado surja como desconforme com os princípios ou normas constitucionais. Em suma, este recurso não aprecia decisões jurisdicionais, pois visa exercer apenas um controlo normativo.
Sendo inadmissível a fiscalização do Tribunal Constitucional sobre o mérito da decisão recorrida, ainda que nesta se determine um resultado constitucionalmente desconforme, deve aceitar-se que o que é impugnado não é o critério legal generalizante empregue pelo julgador para decidir, mas a actividade de subsunção da norma ao caso concreto, que preenche tipicamente a natureza da própria decisão jurisdicional.
Não pode, portanto, duvidar-se de que nos termos em que se mostra definido o
âmbito do presente recurso, é a própria decisão que constitui o seu objecto, o que é, na verdade, inadmissível por força do disposto na citada alínea b) do n.
1 do artigo 70º da LTC.
Nenhuma crítica merece, em conclusão, a decisão em análise.
Em face do exposto, decide-se manter o despacho de não conhecimento do recurso. Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 20 UC.
Lisboa, 26 de Maio de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos