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Processo n.º 46/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. interpôs, para o Tribunal da Relação de Guimarães, recurso da sentença do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Guimarães, de 8 de Março de 2002, que o condenou, pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelos artigos 212.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, alínea e), do Código Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 15, no total de € 3000. Nas respectivas alegações, suscitou, além do mais, a questão da inconstitucionalidade da interpretação que teria sido feita, pelo tribunal recorrido, das disposições conjugadas dos artigos 358.º, n.º 1, 361.º, n.º 2,
371.º e 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP), “segundo a qual seria permitido ao Tribunal, já depois de encerrada a discussão e finda a audiência, comunicar ao arguido a «tendência de demonstração» de factos não constantes da acusação e que não implicam uma alteração substancial dos mesmos, concedendo-lhe a faculdade a que alude a parte final do n.º 1 do citado artigo
358.º do CPP”.
Por acórdão de 16 de Setembro de 2002, o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu revogar a sentença recorrida e anular o julgamento
“desde o momento em que finalizou a produção da prova (sem prejuízo, porém, para a renovação dos meios de prova, se acaso tal se revelar necessário ao tribunal)” e determinou “que se cumpra o disposto no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, seguindo-se os demais termos processuais”. Para atingir estes resultados, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães desenvolveu a seguinte argumentação:
“Ponderando que são as conclusões extraídas da motivação pelo recorrente que demarcam o objecto do correspondente recurso (artigo 412.°, n.°
1, do CPP) e em obediência a um critério de lógica e cronologia preclusivas, merecem in casu especial exame as seguintes questões:
– Da nulidade da sentença com os fundamentos a que alude o artigo
379.°, n.º 1, alínea b), do CPP;
– Da inconstitucionalidade dos artigos 358.°, n.° 1, 361.°, n.° 2,
371.° e 319.°, n.º 1, alínea b), do CPP;
– Erro na apreciação da prova;
– Qualificação jurídica dos factos.
Importa, pois, começar por apreciar a questão da invocada nulidade da sentença recorrida. Pretende o arguido que a sentença seja declarada nula por violação do artigo 379.°, n.º 1, alínea b), ex vi do artigo 359.° do CPP, uma vez que veio a ser condenado por factos não constantes da acusação, verificando-se, assim, uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, sendo certo que a comunicação que lhe foi feita dessa alteração foi tardia, já depois de ter sido encerrada a discussão e de ter findado a audiência.
Acentua ainda neste particular o arguido que por resultar claramente do disposto nos artigos 358.° e 359.° do CPP que a eventual alteração dos factos com relevo para a decisão da causa, seja essa alteração substancial ou não substancial, apenas pode ser tida em conta no decurso da audiência e cumpridas que sejam as formalidades estabelecidas nesses preceitos legais, e o defensor do arguido opôs-se expressamente à consideração dos factos que o Tribunal a quo anunciou «tenderem a demonstrar-se».
O Ex.mo Procurador entende quanto a esta matéria que, não tendo o arguido recorrido do despacho proferido a fls. 182, o mesmo transitou em julgado, e, assim sendo, está prejudicada a questão da invocada nulidade da sentença.
Vejamos:
E o que desde já se dirá é que a pretensão do arguido de que a comunicação que lhe foi feita da alteração dos factos descritos na acusação é tardia não pode merecer acolhimento.
De uma banda e desde logo, na medida em que é o próprio arguido que depois de lhe ter sido dada a palavra, nos termos e para os efeitos do artigo
358.°, n.ºs 1 e 3, do CPP, aceita tacitamente a alteração que lhe foi comunicada. E tanto assim é que desde logo o arguido requereu a concessão de prazo suplementar, para a preparação da defesa (cf. Acta de fls.164 e 165).
Depois, porque se o arguido pretendesse reagir contra a falada comunicação que lhe foi feita, deveria tê-lo feito atempadamente (cf. artigo
123.° do CPP), o que não fez.
É que, tendo a aludida comunicação da alteração dos factos descritos na acusação sido efectuada ao arguido no momento em que o foi (já depois de ter sido reaberta a audiência), tal situação traduz, quando muito, uma mera irregularidade (artigos 118.°, n.° 2, e 123.° do CPP), que só determina a invalidade do acto a que se refere quando tiver sido arguida pelo interessado no próprio acto, o que, não tendo acontecido, no caso em apreço, sempre teria por consequência a sanação do vício.
Improcede, pois, o esforço argumentativo do recorrente no sentido de que a aludida comunicação é inoportuna, por haver sido efectuada já depois de terem sido proferidas as alegações orais do Ministério Público e do defensor do arguido.
Avancemos agora para a apreciação do outro fundamento invocado pelo arguido conducente à nulidade da decisão recorrida.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, considerou a M.ma Juiz do Tribunal a quo provado, para além do mais, que:
«A execução dos referidos trabalhos de desaterro mencionados em e) provocou a fracturação e o subsequente desmoronamento da parede do prédio identificado em b), com consequente danificação de um número indeterminado de cadeiras colocadas no interior do salão de culto para utilização pelos fiéis durante as celebrações.
Na ocasião aludida em f), por instruções do arguido, foram parcialmente destruídas as escadas de acesso ao edifício identificado em b).
Ao proceder conforme o supra descrito, o arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, sabendo tratar-se de coisas afectas ao culto religioso.
Ao actuar conforme o descrito em e), o arguido representou a possibilidade de desmoronamento do prédio identificado em b) e de consequente danificação dos objectos de culto que se encontravam no interior do mesmo e actuou conformado com tal possibilidade.
O arguido, conhecedor da situação aludida em b), não ignorava que essa sua conduta era proibida e punida por lei.»
Ora, tal factualidade não consta da acusação (cf. fls. 73 a 76).
Todavia, perante a factualidade dada por provada, a M.ma Juiz do Tribunal a quo subsumiu a conduta do arguido ao crime de dano qualificado talqualmente a incriminação operada no libelo acusatório.
Ora, vindo o arguido acusado pelo crime de dano qualificado dos artigos 212.º e 213.º, alínea e), do Código Penal e tendo sido condenado pelo mesmo crime, apesar de por factos diversos dos constantes na acusação, importa apurar, antes de mais, se tal constitui alteração substancial ou não substancial.
O artigo 1.º, alínea f), do CPP define a alteração substancial dos factos como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Da noção dada neste artigo 1.º, alínea f), retira-se também a de alteração não substancial, que, surgindo como uma modificação dos factos que constam da acusação ou da pronúncia, não tem como efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Dúvidas, pois, não existem de que, in casu, estamos diante de uma situação de alteração não substancial dos factos descritos na acusação, situação que, diga-se, não suscitou qualquer tipo de dúvida no Tribunal a quo.
Mas, como é sabido, o legislador deu relevância tanto às alterações substanciais como às não substanciais (respectivamente artigos 359.° e 358.° do CPP), exigindo do Juiz uma tomada de posição, quer numa quer noutra circunstância, posição que não é deixada na disposição do juiz, mas que se lhe impõe oficiosamente. Por tal, no caso de não substancial (artigo 358.°), o tribunal comunica a alteração ao arguido e concede, a requerimento, prazo para a preparação da defesa; sendo substancial, comunica a alteração ao Ministério Público, para valer como denúncia.
Ora, no caso dos autos, o que sucedeu foi que o M.mo Juiz, ao dar-se conta da aludida alteração dos factos descritos na acusação, efectuou a necessária comunicação ao Ex.mo mandatário do arguido, nos termos e para os efeitos do citado artigo 358.°, n.°s 1 e 3, do CPP, sendo que este, após lhe haver sido dada a palavra, requereu a concessão de prazo suplementar, para a preparação da defesa (cf. Acta de fls. 165).
Na sequência, a Senhora Juiz proferiu então o seguinte despacho: «Em consequência do ora requerido, suspende-se o presente acto, o qual será retomado no próximo dia 14 de Março de 2002, pelas 14.00 horas».
Do que resulta, a nosso ver, e salvo o devido respeito, que a Senhora Juiz não se pronunciou quanto à pretensão formulada pelo mandatário do arguido de lhe ser concedido prazo para a preparação da defesa.
Ora, nos termos do artigo 379.°, n.° 1, alínea b), do CPP, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358.° e 359.°.
Temos assim que a sentença, ao condenar o arguido A. por factualidade diversa da descrita na acusação, nos termos em que o fez, isto é, não se tendo dado estrito cumprimento ao preceituado no artigo 358.° do CPP, padece de nulidade, nos termos prevenidos no citado artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP.
E uma tal nulidade não tem, necessariamente, de ser arguida nos termos prevenidos do artigo 120.° do CPP, podendo sê-lo ainda em motivação de recurso para o Tribunal superior, conforme o disposto no artigo 410.°, n.° 3, do CPP.
Por isso que, não tendo sido cumprido o contraditório imposto pelo citado artigo 358.° do CPP, na sua plenitude, impõe-se a anulação do julgamento realizado, mas apenas a partir do momento em que finalizou a produção da prova.
Como assim, fica prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas no recurso, razão pela qual se torna inútil prosseguir no seu conhecimento.”
Notificado deste acórdão, o arguido veio arguir a sua
“irregularidade”, por entender que, tendo o acto ou omissão que determinou a anulação do julgamento ocorrido no dia designado para a leitura da sentença, quando já em sessão anterior havia findado a produção de prova, seguida das alegações orais e das últimas declarações do arguido, a anulação decretada tinha de se cingir ao acto em que ocorreu o vício e actos subsequentes, e não – como foi determinado – retroagida à fase da produção de prova, sob pena de, a adoptar-se interpretação oposta dos artigos 122.º, n.º 1, 410.º, n.º 2, 426.º, n.º 1, e 428.º do CPP, se violar o disposto nos artigos 32.º, n.ºs 1 e 5, e
20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Esta arguição foi indeferida por acórdão de 18 de Novembro de 2002, onde, após se recordar a fundamentação do acórdão anterior, se consignou:
“6. Ora, salvo o devido respeito, não vemos que haja sido cometida qualquer irregularidade.
Na verdade, se se entendeu que a comunicação que foi feita ao arguido da alteração dos factos descritos na acusação não é tardia (e não vamos aqui discutir novamente as razões que fundamentaram esse entendimento) e que o Tribunal a quo não deu cabal cumprimento ao estatuído no artigo 358.°, então outra alternativa não restaria a este Tribunal senão a de concluir no sentido de facultar ao arguido o direito de preparar a sua defesa.
Cremos que esta decisão não enferma do vício que é apontado pelo recorrente, tanto mais que foi o próprio arguido quem requereu prazo suplementar, para a preparação da defesa (cf. Acta de fls. 165).
E assim sendo, não se percebe a alegação do arguido de que a manter-se o decidido no acórdão, tal acarreta uma diminuição das suas garantias constitucionalmente reconhecidas, uma vez que este Tribunal mais não fez do que dar cobertura legal a actos que foram requeridos pelo próprio arguido, quando lhe foi feita a comunicação da alteração dos factos, situação que havia sido postergada pelo Tribunal a quo.
Em suma, ao ter-se decidido determinar a anulação do julgamento realizado em 1.ª instância, desde o momento em que finalizou a produção da prova (sem prejuízo porém para a renovação dos meios de prova, se acaso tal se revelar necessário ao tribunal), a fim de se dar cumprimento do disposto no artigo 358.°, n.° 1, do CPP, não se violou qualquer norma constitucional, maxime os artigos 32.° e 20.° da Constituição, apontados pelo recorrente.
7. Daí que se conclua pela inverificação da impetrada irregularidade, mantendo-se o acórdão de fls. 304-318, no qual não se fez aplicação de qualquer norma inconstitucional.”
O recorrente interpôs recurso, nos termos artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), tendo por objecto:
“a) a parte em que, no citado acórdão de 16 de Setembro de 2002, se julgou, pelo menos implicitamente, que não enfermava de inconstitucionalidade a norma de cariz interpretativo dos artigos 358.º, n.ºs 1 e 2, 371.º e 379.º, n.º
1, alínea b), todos do CPP, segundo a qual seria permitido ao Tribunal de 1.ª instância, dias após ter sido encerrada a discussão e estar finda a audiência, comunicar ao arguido, já no próprio dia designado para a leitura da sentença, que «a prova produzida em julgamento tendia à demonstração de factos não constantes da hipótese acusatória» que não implicavam uma alteração substancial dos mesmos, concedendo àquele a faculdade a que alude a parte final do n.º 1 do citado artigo 358.º do CPP; e,
b) a parte em que, no referido acórdão de 18 de Novembro de 2002, se julgou explicitamente não ter sido aplicada qualquer norma inconstitucional, v. g., a que se extrai dos artigos 122.°, n.° 1, 410.°, n.° 2, 426.°, n.° 1, e
428.°, todos do CPP, na interpretação de que é possível ao Tribunal da Relação, com fundamento em nulidade que não deva considerar-se sanada, determinar «a anulação do julgamento realizado, mas (...) a partir do momento em que finalizou a produção da prova», fazendo assim retrotrair os efeitos de semelhante anulação a momento anterior àquele em que foi praticado(a) o acto ou omissão causador(a) de tal invalidade e possibilitando dessa forma ao Tribunal de 1.ª instância o estrito cumprimento do preceituado no artigo 358.° do CPP, quando é certo que, na altura em que nele foi cometida a mencionada invalidade, há muito que estava encerrada a discussão e finda a audiência, tendo-se o Tribunal retirado para decidir (de harmonia com o disposto no artigo 361.º, n.º
2, do CPP), com a consequente preclusão da possibilidade legal da comunicação da alteração de factos a que alude o artigo 358.°, n.° 1, do mesmo diploma, por a mesma não ter tido lugar no decurso da audiência.”,
e visando a apreciação da inconstitucionalidade das interpretações normativas referidas, por violação dos artigos 32.º, n.º 5 (princípio acusatório do processo penal), 20.º, n.º 1 (princípio de acesso ao direito e aos tribunais, com garantia de exame da causa por um tribunal independente e imparcial) e 32.º, n.º 1 (princípio da plenitude das garantias de defesa), da CRP, questões de inconstitucionalidade essas que foram suscitadas na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação (quanto à primeira norma) e no requerimento de arguição de irregularidade do acórdão da Relação (quanto à segunda norma).
O recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1.ª) Resulta claramente do disposto nos artigos 358.° e 359.° do CPP que a eventual alteração dos factos com relevo para a decisão da causa, seja essa alteração substancial ou não substancial, apenas pode ser tida em conta no decurso da audiência e cumpridas que sejam as formalidades estabelecidas nesses preceitos legais;
2.ª) Sendo certo que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 361.º, n.° 2, e 371.° do CPP, uma vez encerrada a discussão, a audiência só pode ser reaberta no caso de se tornar necessária a produção de prova suplementar, para determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar – e apenas para isso!
3.ª) Ora, como se vê dos autos, a audiência realizada no 2.° Juízo Criminal de Guimarães findou em 25 de Fevereiro de 2002, com o encerramento da discussão, após ter sido nela produzida toda a prova arrolada pelo Ministério Público e pelo arguido, bem como proferidas as alegações orais a que alude o artigo 360.° do CPP e prestadas, pelo arguido, as suas últimas declarações, em conformidade com o disposto no artigo 361.°, n.° 1, do mesmo diploma;
4.ª) Por isso, estava legalmente vedado ao Tribunal de 1.ª instância, já no próprio dia designado para a leitura da sentença e antes de a mesma ter lugar, anunciar a «tendência de virem a demonstrar-se» os factos enumerados no despacho exarado a fls. 164 e 165 dos referidos autos, que não constavam da acusação – daí a razão pela qual o arguido, através do seu defensor, se tenha oposto de forma expressa a essa anunciada alteração;
5.ª) E só com a leitura da sentença é que o arguido e o seu defensor verificaram que, efectivamente, nela se davam também como provados os tais factos que não constavam da acusação e que o Tribunal de 1.ª instância anunciara «tenderem a demonstrar-se» – razão pela qual foi logo arguido o vício daí resultante;
6.ª) Assim, ao dar também como demonstrados os factos enunciados nas alíneas f), h), i), j) e k) da matéria de facto provada (factos esses que não constavam da acusação), o Tribunal de 1.ª instância sufragou uma interpretação manifestamente inconstitucional dos artigos 358.°, n.° 1, 361.°, n.° 2, 371.° e
379.°, n.° 1, alínea b), todos do CPP, segundo a qual seria permitido ao Tribunal, já depois de encerrada a discussão e finda a audiência, comunicar ao arguido a «tendência de demonstração» de factos não constantes da acusação e que não implicavam uma alteração substancial dos mesmos, concedendo-lhe a faculdade a que alude a parte final do n.° 1 do citado artigo 358.° do CPP;
7.ª) Uma vez que semelhante vicissitude foi expressamente invocada pelo arguido na motivação do recurso que interpôs dessa sentença para o Tribunal da Relação, deveria a 2.ª instância ter declarado a inconstitucionalidade dessa norma interpretativa que se extrai dos mencionados preceitos legais e, em consequência, julgar nula e de nenhum efeito a sentença que condenou o ora recorrente em 1.ª instância por factos não constantes da acusação;
8.ª) Não o tendo feito – rectius, tendo decidido que a comunicação feita ao arguido e ora recorrente não era inoportuna, embora revogando a sentença da 1.ª instância e anulando o julgamento por fundamentos diversos – a Relação de Guimarães julgou, pelo menos implicitamente, que não enfermava de inconstitucionalidade uma tal norma de cariz interpretativo;
9.ª) Assim, não restou ao arguido senão recorrer para este Tribunal, por forma a ver declarada a inconstitucionalidade, com todas as legais consequências, da norma interpretativa enunciada na conclusão 6.ª supra, enquanto admite e não proíbe que, dias após ter sido encerrada a discussão e estar finda a audiência, o Tribunal de 1.ª instância possa comunicar ao arguido, no próprio dia designado para a leitura da sentença, que «a prova produzida em julgamento tendia à demonstração de factos não constantes da hipótese acusatória» que não implicavam a sua alteração substancial, concedendo
àquele a faculdade a que alude a parte final do n.° 1 do citado artigo 358.° do CPP;
10.ª) Semelhante norma, com efeito, viola de modo frontal e directo, entre outros: (a) o artigo 32.°, n.° 5, da CRP, que consagra o princípio fundamental da estrutura acusatória do processo penal; (b) o artigo 20.°, n.°
1, da CRP, que consagra o princípio fundamental do acesso ao direito e aos Tribunais e segundo o qual, para além do mais, a todos é garantido o exame da causa por um Tribunal independente e imparcial; e (c) o artigo 32.°, n.° 1, da CRP, que consagra o princípio da plenitude das garantias de defesa que assistem a qualquer arguido em processo penal;
11.ª) Acresce que, como também consta dos autos, a Relação de Guimarães, no seu acórdão de 16 de Setembro de 2002, unicamente por entender que não havia sido cumprido em toda a sua plenitude o contraditório imposto pelo artigo 358.° do CPP, decretou a anulação do julgamento realizado na 1.ª instância, mas a partir do momento em que finalizou a produção da prova;
12.ª) Porém, como se viu, o acto ou omissão que determinou a anulação decretada pelo Tribunal da Relação foi cometido(a) no próprio dia que estava designado para a leitura da sentença na 1.ª instância e, portanto, muito depois de ter findado a produção de prova e, bem assim, de terem sido produzidas as alegações orais previstas no artigo 360.º do CPP, de o arguido e ora recorrente ter prestado as últimas declarações, em conformidade com o disposto no artigo 361.º, n.º 1, do CPP, e de o Tribunal de 1.ª instância ter declarado encerrada a discussão, nos termos do n.º 2 desse mesmo artigo 361.º;
13.ª) Consequentemente, em obediência ao disposto no artigo 122.º, n.º 1, do CPP, a anulação decretada pela Relação de Guimarães teria necessariamente de se limitar ao acto em que ocorreu o vício em questão e aos actos subsequentes que dele dependessem e que pudessem ser afectados por esse mesmo vício;
14.ª) Tendo a 2.ª instância ido para além do que a lei permite e feito retrotrair a anulação do julgamento – de forma que não pode deixar de considerar-se arbitrária – a um momento muito anterior àquele em que foi praticado(a) o acto e/ou omissão causador(a) da invalidade, acabou por consagrar uma verdadeira «reformatio in pejus», não em sentido próprio (já que não há modificação da sanção), mas em termos processuais, porquanto dá ao Tribunal de
1.ª instância a possibilidade de praticar actos cuja oportunidade legal lhe estava há muito precludida, assim permitindo uma inegável diminuição das garantias de defesa constitucionalmente reconhecidas ao arguido e ora recorrente;
15.ª) Mercê disso, o arguido foi logo arguir o vício daí resultante, invocando também expressamente a inconstitucionalidade da norma que se extrai dos artigos 122.°, n.° 1, 410.°, n.° 2, 426.°, n.° 1, e 428.°, todos do CPP, na interpretação de que é possível ao Tribunal da Relação, com fundamento em nulidade que não deva considerar-se sanada, determinar «a anulação do julgamento realizado, mas (...) a partir do momento em que finalizou a produção da prova”, fazendo assim retrotrair os efeitos de semelhante anulação a momento anterior àquele em que foi praticado(a) o acto ou omissão causador(a) de tal invalidade e possibilitando dessa forma ao Tribunal de 1.ª instância o estrito cumprimento do preceituado no artigo 358.° do CPP, quando é certo que, na altura em que nele foi cometida a mencionada invalidade, há muito que estava encerrada a discussão e finda a audiência, tendo-se o Tribunal retirado para decidir (de harmonia com o disposto no artigo 361.°, n.° 2, do CPP), com a consequente preclusão da possibilidade legal da comunicação da alteração de factos a que alude o artigo 358.°, n.° 1, do mesmo diploma, por a mesma não ter tido lugar no decurso da audiência;
16.ª) Contudo, por meio de Acórdão datado de 18 de Novembro de 2002, a Relação de Guimarães, mantendo na íntegra o decidido pelo anterior aresto, entendeu, além do mais, que «ao ter-se decidido determinar a anulação do julgamento realizado em 1.ª instância, desde o momento em que finalizou a produção de prova (sem prejuízo porém para a renovação dos meios de prova, se acaso tal se revelar necessário ao tribunal), a fim de se dar cumprimento do disposto no artigo 358.°, n.º 1 do CPP, não se violou qualquer norma constitucional, maxime os artigos 32.º e 20.º da Constituição, apontados pelo recorrente»;
17.ª) Daí que também não restasse ao arguido outra alternativa, senão a de recorrer para este Alto Tribunal, por forma a ver igualmente declarada, com todas as legais consequências, a [inconstitucionalidade da] norma interpretativa enunciada na conclusão 15.ª supra, a qual viola também, directa e frontalmente, entre outros, os mesmos preceitos aludidos na conclusão
10.ª supra, que aqui se dão por reproduzidos.”
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou contra-alegações, concluindo:
“1 – Atenta a função instrumental do recurso de constitucionalidade, carece de interesse processual o Tribunal Constitucional conhecer da questão da eventual inconstitucionalidade do cumprimento tardio da comunicação a que alude o artigo 358.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, quando já foi proferida decisão no processo anulando parcialmente o julgamento e reconduzindo-o ao momento em que finalizou a produção de prova;
2 – Não tendo a decisão recorrida interpretado as normas dos artigos
122.°, n.° 1, 410.°, n.° 2, 426.°, n.° 1, e 428.º, todos do Código de Processo Penal, no sentido que lhe é assacado pelo recorrente, também nesta parte não deverá o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso.”
O recorrente respondeu às questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, sustentando, por um lado, o interesse no conhecimento do recurso por, se obtiver provimento, nunca os efeitos da anulação se retrotrairão ao momento em que finalizou a produção da prova, mas sim ao exacto momento em que foi tardiamente cumprida a comunicação a que alude o artigo
358.º, n.º 1, do CPP, e, por outro lado, insistindo em que a anulação decretada fez efectivamente retrotrair os seus efeitos a momento anterior ao acto ou omissão gerador do vício.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Sendo incontroverso que, no presente caso, a alteração, verificada no decurso da audiência, dos factos descritos na acusação, com relevo para a decisão da causa, era uma alteração não substancial, já que dela não derivava a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (artigo 1.º, n.º 1, alínea f), do CPP), é aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 358.º do mesmo Código, que prevê que “o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”.
O recorrente, entendendo que a “audiência” termina com a conclusão da produção da prova, as alegações orais e as últimas declarações do arguido (isto é: fazendo equivaler “audiência de julgamento” com a fase que a lei designa por “discussão” – cf. artigo 361.º do CPP), sustenta a tese que já não é tempestiva a comunicação da alteração dos factos feita no início da sessão designada para leitura da sentença ou acórdão, e que interpretação contrária seria inconstitucional. No entanto, esta “interpretação contrária”, arguida de inconstitucional, não chegou a ser assumida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que, a este respeito, no acórdão de 16 de Setembro de 2002, consignou o seguinte:
“E o que desde já se dirá é que a pretensão do arguido de que a comunicação que lhe foi feita da alteração dos factos descritos na acusação é tardia não pode merecer acolhimento.
De uma banda e desde logo, na medida em que é o próprio arguido que depois de lhe ter sido dada a palavra, nos termos e para os efeitos do artigo
358.°, n.ºs 1 e 3, do CPP, aceita tacitamente a alteração que lhe foi comunicada. E tanto assim é que desde logo o arguido requereu a concessão de prazo suplementar, para a preparação da defesa (cf. Acta de fls.164 e 165).
Depois, porque se o arguido pretendesse reagir contra a falada comunicação que lhe foi feita, deveria tê-lo feito atempadamente (cf. artigo
123.° do CPP), o que não fez.
É que, tendo a aludida comunicação da alteração dos factos descritos na acusação sido efectuada ao arguido no momento em que o foi (já depois de ter sido reaberta a audiência), tal situação traduz, quando muito, uma mera irregularidade (artigos 118.°, n.° 2, e 123.° do CPP), que só determina a invalidade do acto a que se refere quando tiver sido arguida pelo interessado no próprio acto, o que, não tendo acontecido, no caso em apreço, sempre teria por consequência a sanação do vício.
Improcede, pois, o esforço argumentativo do recorrente no sentido de que a aludida comunicação é inoportuna, por haver sido efectuada já depois de terem sido proferidas as alegações orais do Ministério Público e do defensor do arguido.”
Isto é: os motivos determinantes da rejeição da pretensão do recorrente foram, por um lado, a constatação de que ele, através do seu defensor, aceitou tacitamente a alteração comunicada, tanto assim que logo requereu a concessão de prazo suplementar para a preparação da sua defesa, e, por outro lado, o entendimento de que, a considerar-se tardia a comunicação, tal constituiria mera irregularidade, que só determinaria a invalidade do acto se tivesse sido arguida no próprio acto, o que não ocorreu, pelo que esse hipotético vício se deve ter por sanado. O recorrente não questionou – designadamente em sede de constitucionalidade – a correcção deste entendimento, quer no que tange à aceitação da alteração dos factos, quer no que respeita à sanação de eventual irregularidade por falta de oportuna arguição. [Saliente-se, a este propósito, que da acta da sessão de audiência de 8 de Março de 2002, resulta que, após a magistrada judicial ter feito a comunicação da alteração dos factos, “nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do CPP”, o mandatário do arguido requereu “concessão de prazo suplementar, para preparação da defesa”, não correspondendo à realidade documentada nos autos a repetida afirmação do ora recorrente de que o seu defensor se opôs de forma expressa a essa alteração; o que ocorreu foi que, tendo a audiência sido suspensa para ser retomada em 14 de Março de 2002, nesta última data – e não logo após a comunicação da alteração dos factos – é que o mandatário do arguido veio suscitar a questão da intempestividade dessa comunicação feita na sessão de 8 de Março de 2002, tendo por despacho ditado de imediato para a acta sido considerado que, mesmo que se considerasse irregular a comunicação, tal irregularidade se encontrava sanada por falta de oportuna arguição.]
Do exposto resulta não se poder conhecer da primeira questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, quer porque – como se sustentou na contra-alegação do Ministério Público – o eventual juízo de inconstitucionalidade da interpretação do artigo 358.º, n.º 1, do CPP impugnada pelo recorrente nenhuma repercussão teria no desfecho do caso, atenta a concorrência de fundamentos autónomos (a aceitação da comunicação pretensamente tardia e a sanação da hipotética irregularidade por falta de oportuna arguição), por si sós suficientes para alicerçar a mesma decisão, e que não são afectados pelo presente recurso de constitucionalidade, quer porque, em rigor, o acórdão recorrido nem sequer chegou a aplicar, como ratio decidendi, a dimensão normativa ora questionada.
2.2. Quanto à segunda questão de constitucionalidade suscitada, relacionada com os efeitos atribuídos à anulação do julgamento, constata-se que, apesar de ter sido na sequência imediata do requerimento, pelo defensor do arguido, de prazo suplementar para preparação da defesa, que a magistrada judicial ditou para a acta despacho determinando: “Em consequência do ora requerido, suspende-se o presente acto, o qual será retomado no próximo dia 14 de Março de 2002, pelas 14,00 horas” (cf. acta de fls. 164 e 165), o Tribunal da Relação de Guimarães entendeu que “a Senhora Juiz não se pronunciou quanto à pretensão formulada pelo mandatário do arguido de lhe ser concedido prazo para a preparação da defesa”, daqui concluindo não ter sido “dado estrito cumprimento ao preceituado no artigo 358.º do CPP”, pelo que ocorreu a nulidade da sentença prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código (“1. É nula a sentença: (...) b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação (...) fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e
359.º;”).
Ora, neste segmento, como bem se salienta na contra-alegação do Ministério Público, o tribunal recorrido não assumiu a interpretação normativa que o recorrente argui de inconstitucional. É que a questão da tempestividade da comunicação da alteração dos factos já havia sido dada por resolvida em sentido afirmativo. Neste contexto, e uma vez que, como se veio a verificar na subsequente sentença, a prova até então produzida era suficiente para dar por apurados esses novos factos, a mera concessão de prazo suplementar para preparação de defesa de pouco serviria ao arguido se se considerasse definitivamente encerrada a fase da produção de prova. Assim sendo, ao reportar os efeitos da anulação ao momento em que finalizou a produção da prova, sem prejuízo de renovação dos meios de prova, o que se quis acautelar não poderia deixar de ser a eventual necessidade de produção de prova na sequência do que o arguido viesse a aduzir em resposta à comunicação da alteração dos factos. Repete-se: deste segmento do acórdão recorrido não resulta a aplicação da dimensão normativa questionada pelo recorrente, consistente, segundo este, em possibilitar um cumprimento intempestivo do preceituado no artigo 358.º, n.º 1, do CPP.
Não tendo a decisão recorrida interpretado e aplicado as normas invocadas a propósito desta segunda questão no sentido que é impugnado pelo recorrente, também quanto a esta não há que conhecer do objecto do recurso.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 2 de Junho de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos