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Processo n.º 587/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Em 17 de Março de 2003, A., melhor identificado nos autos, intentou, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, processo de intimação judicial contra a Câmara Municipal de Setúbal, com vista a obter desta a aprovação do projecto de arquitectura correspondente ao processo de licenciamento n.º
-----/02, com fundamento em que a publicação do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro, impondo a reclassificação dos Parques Naturais – e, portanto, do Parque Natural da Arrábida – de acordo com os seus critérios, teve lugar com o Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14 de Outubro, que previu expressamente um prazo máximo de três anos para a aprovação de um Plano de Ordenamento do Território para o Parque Natural da Arrábida. Como tal Plano não foi aprovado dentro desse prazo, teria ocorrido “a caducidade da classificação do PNA como Área Protegida”, o que dispensaria a requerida da obtenção de parecer prévio do Parque Natural da Arrábida sobre o pedido de licenciamento (de uma habitação) entrado em 25 de Outubro de 2002 na Câmara Municipal de Setúbal. Por decisão de 28 de Abril de 2003, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa indeferiu o pedido de intimação judicial, baseando-se na argumentação expendida pela requerida, e sufragada no “visto” do Ministério Público – que o requerente, por antecipação, quisera desqualificar por entender que o Decreto-Lei n.º 204/02, de 1 de Outubro, não tinha a virtualidade de repristinar uma classificação caducada, ex lege, sendo inconstitucional – por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 3, e 65.º, n.ºs 4 e 5, da Constituição – e ilegal
– por violação do disposto no artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil – um tal entendimento. Ao invés, escreveu-se na referida decisão:
“Tal entendimento está conforme às regras de sucessão de leis no tempo, visto que a própria lei dispôs no sentido da sua eficácia retroactiva ao manter a classificação constante dos diplomas anteriores, o que não viola qualquer disposição constitucional.”
2.Insatisfeito, o requerente interpôs recurso de tal decisão, insistindo na argumentação de que “a morte do direito, pela caducidade, é alcançada de modo irreversível”, e que caducada uma classificação como Parque Natural, só “através da tramitação legal, prevista nos artigos 13.º e seguintes, do D.L. 19/93” poderá haver nova classificação, acrescentando, no que ora mais importa:
«K – O acto de classificação de um Parque Natural implica a restrição/limitação do direito de propriedade, que está consagrado no artigo 62.º da CRP, dos proprietários de terrenos situados na sua área de intervenção, como é o caso da ora recorrente. L – É manifesta a inconstitucionalidade do D.L. 204/2002, já que assume características de verdadeira “lei medida”, violando o disposto no artigo 18.º, n.º 3, da C.R.P. N – O vazio legal criado pela caducidade do PNA gerou para os particulares proprietários de terrenos situados na área do Parque expectativas legítimas e direitos merecedores de tutela jurídica.
(...) P – A sentença de que ora se recorre viola, assim, as seguintes disposições: artigos 2.º, 18.º, n.º 3, 62.º, 65.º, n.ºs 4 e 5, e 66.º, n.º 2, alíneas b) e c), da CRP; o artigo 12.º, n.º 1, do C.C., o artigo 13.º, n.º 2, do D.L. 19/93; e o artigo 112.º do D.L. 555/99.» Por acórdão de 2 de Julho de 2003, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, considerando, depois de invocar os Acórdãos n.ºs 517/99,
329/99 e 95/92 do Tribunal Constitucional (publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44º vol., págs. 89 e segs., Diário da República, II série, de 20 de Julho de 1999, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs.. 341 e segs.), que:
“não existe uma proibição geral de leis retroactivas e estas só são inadmissíveis quando afectarem, de forma injustificada, arbitrária e intolerável, a certeza e a confiança dos cidadãos na ordem jurídica vigente.
É patente que a retroactividade do DL n.º 204/02 não afecta tais valores, tanto mais que, no caso em apreço, quando o ora recorrente se apresentou a requerer a aprovação do projecto já aquele diploma se encontrava em vigor, sendo que nenhuma garantia tinha de que pudesse construir no local em causa.”
3.Trouxe então o recorrente o presente recurso ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com fundamento em que “[a] interpretação consagrada no Acórdão recorrido da aplicação do Decreto-Lei n.º 204/02, de 1 de Outubro, do artigo
12.º, n.º 1, do Código Civil e do artigo 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 13/93, de 23 de Janeiro, viola os princípios e normas constitucionais, nomeadamente, os artigos 2.º, 18.º, n.º 3, 62.º, 65.º, n.ºs 4 e 5, 66.º, n.º 2, alíneas b) e c), e 112.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”. Nas suas alegações, concluiu assim:
“A. O entendimento dado pelo STA ao DL 204/02, no sentido de que o Governo pode repor a classificação já caducada de uma área protegida de interesse nacional, como é o caso do PNA, sem que haja envolvimento e participação dos cidadãos, viola o princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território, consagrado nos n.ºs 4 e 5 do artigo 65.º da CRP, e, em especial, na criação de parques naturais, consagrado nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 66.º da CRP. B. Esse entendimento viola também o princípio constitucional da democracia participativa, consagrado no artigo 2.º da CRP. C. A caducidade da classificação do PNA está reconhecida no Preâmbulo do DL
204/03. D. A caducidade acarreta a obrigatoriedade de nova classificação do PNA como
área protegida. E. O entendimento do Acórdão do STA, ao ignorar o disposto nos artigos 12.º e
13.º, n.ºs 3, 4 e 5, do D.L. n.º 19/93, viola o princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território e na criação de parques naturais, consagrado nos artigos 65.º e 66.º da CRP. F. O Acórdão do STA, ao permitir a reposição de uma classificação já caducada, através do mecanismo da retroactividade, reduz ao grau zero a participação dos cidadãos no processo de classificação de áreas protegidas, violando, frontal e grosseiramente, o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 65.º e n.º 2 do artigo 66.º, ambos da CRP. G. A reclassificação do PNA operada pelo Dec. Reg. 23/98, nos termos do artigo
32.º, n.º 2, do DL 19/93, tem carácter excepcional. H. A interpretação dada pelo Acórdão do STA ao DL 204/02 possibilita a manutenção do carácter excepcional da disposição atrás citada, por tempo indefinido, em violação flagrante do princípio constitucional do direito da participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território e na criação de parques naturais (artigos 2º, 65.º e 66.º da CRP) I. O Acórdão do STA, ao aceitar a retroactividade do DL 204/02, no pressuposto da protecção de valores ambientais, ignorou que ao Governo se impunha lançar mão das medidas previstas no artigo 8.º da Lei dos Solos – por remissão do artigo
107.º, n.º 8, do D.L. 380/99 – para protecção das áreas, cuja classificação caducou, o que teria, eficazmente, salvaguardado as zonas em causa, sem violação de qualquer princípio constitucional. J. A interpretação consagrada no Acórdão do STA admite que, por via da retroactividade, nunca se viesse a verificar a caducidade da classificação de uma zona como área protegida, o que implica a negação do princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território (artigo 65.º da CRP) e, em especial, na criação de parques naturais (artigo 66.º da CRP), e ainda, e mais amplamente, a negação do princípio da democracia participativa, consagrado no artigo 2.º da CRP. K. O direito à democracia participativa está amplamente consagrado na jurisprudência do Tribunal Constitucional, no que respeita ao direito de participação dos trabalhadores. L. Nos termos do artigo 2.º da CRP, o aprofundamento da democracia participativa não distingue, nem privilegia, o direito dos trabalhadores face ao direito dos cidadãos. M. O entendimento dado pelo STA ao DL 204/02, no sentido de que é dispensável a participação dos cidadãos para a criação de um parque natural, viola o princípio constitucional da não retroactividade das leis restritivas dos direitos e garantias dos cidadãos, consagrado no artigo 18.º, n.º 3, da CRP. N. O acto de classificação de um parque natural implica, também, a restrição/limitação de direitos dos cidadãos, razão pela qual se garante, constitucional e legalmente, a correcta ponderação dos interesses público e privado. O. A obrigatoriedade desta ponderação, espelhada na necessidade do envolvimento e participação dos cidadãos, mais não é do que um corolário do princípio da imparcialidade da administração e um reforço do princípio democrático. P. Toda e qualquer lei restritiva de direitos fundamentais terá de revestir carácter geral e abstracto e jamais poderá ser retroactiva – cfr. artigo 18.º, n.º 3, da CRP. Q. A CRP proíbe a retroactividade quando se verifique a restrição de um direito fundamental. R. É manifesto que a retroactividade do DL 204/02 restringe o direito fundamental dos cidadãos à participação, consagrado nos artigos 2.º, 65.º e 66.º da CRP. S. A retroactividade do DL 204/2002, no que respeita ao prolongamento dos prazos para aprovação dos planos de ordenamento das áreas protegidas, cuja classificação ainda não tivesse caducado à data da sua publicação, é perfeitamente válida. T. O STA, ao efectuar a interpretação da possibilidade de aplicação retroactiva do DL 204/02, repondo em vigor a classificação caducada, está a violar o princípio da participação democrática – artigo 2.º da CRP –, o princípio constitucional da não retroactividade das leis restritivas dos direitos e garantias dos cidadãos – artigo 18.º, n.º 3, da CRP –, e o princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território – n.ºs 4 e 5 do artigo 65.º da CRP –, e na criação de parques naturais – alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo
66.º da CRP.” A entidade recorrida não apresentou contra-alegações. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.Nas suas alegações – e também nas conclusões, que delimitam o objecto do recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil (cfr., v.g., os Acórdãos n.ºs 379/96, 20/97 e 243/97, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., págs. 595-609, o primeiro, e 36º vol., págs.
193-201 e 609-614, os restantes) –, o recorrente não manteve a imputação de inconstitucionalidade ao artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil, nem ao artigo
13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 13/93, de 23 de Janeiro. Aliás, como resulta das transcrições efectuadas das conclusões das alegações de recurso apreciadas pelo Supremo Tribunal Administrativo, nenhuma dessas normas tinha sido então impugnada, muito menos sob a perspectiva da sua conformidade constitucional. Bem ao contrário, como se vê pela “Conclusão P”, acima transcrita, tais normas – bem como a do artigo 112.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro (aliás não mencionado em nenhum outro passo dessas alegações) – foram apresentadas como parâmetros fundamentadores de um vício de ilegalidade, a par das normas constitucionais invocadas, essas, sim como parâmetros de inconstitucionalidade. Como quer que seja, tendo sido excluídas das conclusões das alegações de recurso, delas não se cuidará, circunscrevendo-se, pois, o objecto do recurso à questão da “retroactividade” do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro – rectius, à norma do seu artigo único, cuja redacção é a seguinte:
“1. Mantém-se em vigor a classificação de áreas protegidas operada pelos diplomas que procedem à sua criação ou à respectiva reclassificação nos termos do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro.
2. No prazo de dois anos, a partir da entrada em vigor do presente diploma, devem ser aprovados os planos de ordenamento das áreas protegidas que ainda não disponham de tais instrumentos especiais de gestão territorial.
3. Os efeitos do presente diploma retroagem ao termo dos prazos fixados nos diplomas mencionados no n.º 1 do presente artigo, para elaboração dos planos de ordenamento e respectivos regulamentos.”
5.Logo se vê, porém, que a norma do n.º 2 não tem aplicação no caso, pelo que o que se tem de averiguar é se a “manutenção retroactiva da reclassificação de uma
área protegida”, operada ao abrigo do Decreto-Lei n.º 19/93, é conforme à Constituição. No caso – o que pode não ser indiferente – há a considerar, também, que a apresentação do pedido de licenciamento em que tal reclassificação se repercute ocorreu depois da entrada em vigor do referido Decreto-Lei n.º 204/2002.
6.Os argumentos apresentados pelo recorrente no sentido da inconstitucionalidade são, como se viu, e em síntese: a) a falta de generalidade e abstracção e a retroactividade das referidas normas, enquanto restritivas de direitos e garantias dos cidadãos (artigo 18.º, n.º 3, da Constituição); b) a violação do princípio da participação democrática (artigo 2º da Constituição); c) a violação do “direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território – n.ºs. 4 e 5 do artigo 65.º da Constituição –, e na criação de parques naturais – alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 66.º da Constituição.” Vejamos cada um deles.
7.Em relação à falta de generalidade e abstracção do Decreto-Lei n.º 204/2002, diga-se, antes de mais, que, se nas alegações apresentadas no tribunal a quo se caracterizava o diploma como uma “lei medida”, nas que foram apresentadas no Tribunal Constitucional faz-se apenas referência à necessidade de “qualquer lei restritiva de direitos fundamentais (...) revestir carácter geral e abstracto”, a par, aliás, de “jamais poder ser retroactiva”. O Decreto-Lei n.º 204/2002 dispôs, no entanto, para todas as áreas protegidas que ainda não dispunham de planos de ordenamento, e não apenas para o Parque Natural da Arrábida, ou para a situação do recorrente, não se vendo como se lhe pode recusar carácter “geral e abstracto”. Por outro lado, quanto à “retroactividade” o Tribunal Constitucional tem afirmado (assim, no Acórdão n.º 329/99, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 44º , págs. 129-167) que
“fora do domínio penal, em que a retroactividade in peius é constitucionalmente inadmissível (cf. artigo 29º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição); do domínio fiscal, em que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroactiva (cf. artigo 103º, n.º 3, da Constituição); e, bem assim, do domínio das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, em que a lei não pode ser retroactiva (cf. artigo 18º, n.º 3, da Constituição); este Tribunal tem sempre entendido que uma lei retroactiva não é, em si mesma, inconstitucional
[cf. Acórdão n.º 95/92 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 21º, página 341 e seguintes)]. Fora dos domínios apontados - e isto é o que acontece no presente caso, como decorre do que se disse atrás -, uma lei retroactiva só será inconstitucional, se violar princípios ou disposições constitucionais autónomos. Será o que sucede, quando a lei afecta, de forma
“inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa” direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos. Num tal caso, com efeito, a lei viola aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, de facto, que organize a “protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida” [cf. Acórdão n.º 330/90 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas 277 e seguintes). Cf. também os Acórdãos n.ºs 574/98 (por publicar) e 575/98 (publicado no Diário da República, II série, de 26 de Fevereiro de 1999)]. Por conseguinte, apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático [cf., entre outros, o Acórdão n.º 11/83 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 1º, páginas 11 e seguintes), o citado Acórdão n.º 287/90, o Acórdão n.º 486/96 (publicado no Diário da República, II série, de
17 de Outubro de 1997) e os Acórdãos n.ºs 574/98 e 575/98, citados por último].” Acresce que, de uma forma ou de outra, o que aqui se discute está fora do âmbito do invocado artigo 18.º, n.º 3, da Constituição, por não se poder tomar como um regime restritivo dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, mesmo para quem “entenda que o ius aedificandi constitui parte integrante do direito de propriedade privada”. Como se escreveu no citado Acórdão n.º 329/99:
«É que, apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no Acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 7 de Novembro de
1991), cabem na reserva legislativa parlamentar “as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias”. Ora, no que concerne ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública - e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, n.ºs 1 e 2, da Constituição). Já, porém, se não incluem nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa. E, assim, como só pode construir-se ali onde os planos urbanísticos o consentirem; e o território nacional tende a estar, todo ele, por imposição constitucional, integralmente planificado [cf. artigos 9º, alínea e),
65º, n.º 4, e 66º, n.º 2, alínea b)]; o direito de edificar, mesmo entendendo-se que é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, para além de ter que ser exercido nos termos desses planos, acaba, verdadeiramente, por só existir nos solos que estes qualifiquem como solos urbanos. Atenta a função social da propriedade privada e os relevantes interesses públicos que confluem na decisão de quais sejam os solos urbanizáveis, o direito de edificar vem, assim, a ser inteiramente modelado pelos planos urbanísticos. FERNANDO ALVES CORREIA fala do direito de propriedade urbana como “um direito planificado”; e afirma que os planos urbanísticos são instrumentos que definem
‘o conteúdo e limites do direito de propriedade do solo’, sem que, ao menos em regra, tenham natureza expropriativa (Estudos cit., páginas 47 e 50).”» E isto, note-se, numa situação em que
“a licença em causa nos autos já (tinha) sido concedida no momento da edição das normas sub iudicio – e de, assim, se estar perante uma ablação de um direito (no caso, do direito de lotear) que, uma vez validamente concedido, passou a integrar a esfera patrimonial (é dizer, a propriedade) do titular da licença. De facto, a ablação desse direito, sendo, embora, susceptível de originar uma obrigação de indemnizar, não tem a virtualidade de transmudar a essência do direito de propriedade, por forma a fazer incluir nela faculdades que a garantia constitucional não cobre (recte, as faculdades de lotear, urbanizar e construir).” Falece, pois, o primeiro argumento erguido contra a conformidade constitucional das normas do Decreto-Lei n.º 204/2002, como continuaria a claudicar se, em vez do disposto no artigo 18º, n.º 3, da Constituição, se tivesse invocado “o princípio da protecção da confiança, que vai implicado na ideia de Estado de Direito, entendido aquele princípio como garantia de um direito dos cidadãos à segurança jurídica – da segurança que assenta no facto de os cidadãos poderem confiar na ordem jurídica para, nos limites dela, ordenarem e programarem as suas vidas.” Como se decidiu no citado Acórdão n.º 329/99, também aqui
“a mutação introduzida na ordem jurídica por essas normas tem a justificá-la um relevante interesse público: o interesse público de um correcto ordenamento do território.”
À mesma conclusão de inexistência de violação do artigo 18º, n.º 3, da Constituição, pela norma do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, chegou, aliás, recentemente, este Tribunal, no Acórdão n.º 360/2004, tirado em 19 de Maio de 2004 nesta 2ª Secção (sendo de notar que, embora reportada apenas ao n.º 3 daquele artigo único, a questão era exactamente a mesma que está em causa no presente processo). Remetendo, para além do que se disse, para tal aresto, de que se junta cópia, há, pois, apenas que reiterar o entendimento aí seguido.
8.Quanto à violação do princípio da participação democrática, que o recorrente desentranha do artigo 2º da Constituição, é de notar que “o aprofundamento da democracia participativa” com consagração no texto constitucional teve já uma expressão directamente relevante para o caso com a introdução do actual n.º 5 do artigo 65.º e do aditamento da parte final do artigo 66.º da Constituição, pela Revisão Constitucional de 1997. Avulta, portanto, a eventual violação do direito
(constitucionalmente reconhecido) de participação dos cidadãos na criação e desenvolvimento de parques naturais (artigo 66.º, n.º 2, alínea c), da Constituição). Isto, porque a moratória concedida para a aprovação do plano de ordenamento (no n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002) não dispensa o processo normal de participação dos interessados, tal como consagrado no artigo 65.º, n.º
5, da Constituição. É dizer que o que pode estar em causa é um défice de participação na reconstituição retroactiva do Parque Natural, não em qualquer outro instrumento de planeamento, designadamente nos respeitantes à definição das “regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos” (artigo 65.º, n.º 4, da Constituição), que os solos dos Parques Naturais não são, nem no Plano relativo ao Parque da Arrábida, enquanto integrado na Rede Nacional de Áreas Protegidas, previsto no Decreto-Lei n.º 19/93 (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs
213/97, de 16 de Agosto, e 151/95, de 24 de Junho), e que, com os Planos de Ordenamento da Orla Costeira (Decreto-Lei n.º 309/93, de 2 de Setembro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 218/94, de 20 de Agosto, 151/95, de 24 de Junho, e
113/97, de 10 de Maio) e os Planos de Albufeiras de Águas Públicas (Decreto-Lei n.º 45/94, de 22 de Fevereiro), constituem os três tipos de Planos Especiais de Ordenamento do Território previstos na Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto (artigo
33º), e regulados no Decreto-Lei n.º 151/95 (alterado pela Lei n.º 5/96, de 29 de Fevereiro). Aquele Plano relativo ao Parque da Arrábida está sujeito a prévia apreciação pública (artigo 21º da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território – Lei n.º 48/98). Ora, a participação dos interessados está constitucionalmente prevista em quaisquer instrumentos de planeamento físico do território (artigo 65º, n.º 5, da Constituição), mas apenas na sua elaboração, e só a criação e desenvolvimento de parques naturais (e reservas, e parques de recreio) obriga ao envolvimento e participação dos cidadãos (artigo 66.º, n.º 2, alínea c), da Constituição).
É dizer que a prorrogação do regime pré-existente, não sendo este constitucionalmente definido como transitório, não carece, à face da Constituição, de participação obrigatória dos cidadãos. Aliás, as próprias razões que depõem a favor da criação de Parques Naturais depõem a favor da sua natureza permanente, salvo circunstâncias excepcionais, e sem prejuízo da alteração do regime que lhes é aplicável (quer no sentido de o flexibilizar, ou reduzir, quer no sentido de o endurecer, ou aumentar), justificando-se então, de novo, a participação dos cidadãos, como constitucionalmente previsto (“criação e desenvolvimento de parques naturais”). Não é, portanto, ao contrário do que invoca o requerente, a natureza retroactiva da prorrogação de um regime que inicialmente se previu como transitório salvo aprovação de outro instrumento de planeamento que obsta ao cumprimento de uma obrigação constitucional. Tendo-se já estabelecido que a retroactividade não estava vedada ao legislador, vê-se agora que ela não interferiu com uma qualquer obrigação de renovar a participação pública na prorrogação do estatuto de Parque Natural já anteriormente conferido: por um lado, porque a Constituição não o impõe senão no momento inicial (criação) ou numa sua alteração significativa
(desenvolvimento). Por outro lado, porque a natureza transitória do regime atribuído ao Parque o foi por opção do legislador, sem interferência constitucional, razão pela qual o legislador pôde, legitimamente, alterar-lhe essa natureza – e pôde fazê-lo, já o vimos, com eficácia retroactiva. Nem se diga que a pendência indefinida do mesmo regime coarcta o direito de participação dos cidadãos, porque, ainda que assim fosse, não haveria desconformidade constitucional, por a Constituição o admitir exactamente nesses termos a propósito do que está em causa: o envolvimento e participação dos cidadãos na criação e desenvolvimento de parques naturais, não no prolongamento do seu regime. E nem se diga, também, que a prorrogação, retroactiva, de um regime já caducado, importa antes uma nova “criação” dos parques naturais em causa. Se, do ponto de vista da melhor aplicação do Direito, a questão pode ter pertinência, do ponto de vista da aferição constitucional da solução, a resposta a tal problema dilui-se na da legitimidade constitucional da atribuição de eficácia retroactiva
à prorrogação do regime – e esta já foi estabelecida. Não cabe aqui, pois, nenhum simile com os direitos de participação dos trabalhadores, que têm contornos constitucionais diversos (artigos 54º e 56º da Constituição, designadamente). Em sentido convergente com o que se disse, de inexistência de violação de garantias constitucionais de participação, escreveu-se, aliás, também no citado Acórdão n.º 360/2004:
«Quanto à garantia de “participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território” (artigo 65.º, n.º 5, da CRP) e de
“participação dos cidadãos” no desempenho, pelo Estado, da sua incumbência de criar e desenvolver reservas e parques naturais (artigo 66.º, n.º 2, corpo e alínea c), da CRP), para além de não estar em causa uma dimensão desse “direito fundamental” que seja de qualificar como “análoga” aos “direitos, liberdades e garantias”, acresce que não radica na norma impugnada a alegada “restrição retroactiva” desse direito. Quanto ao primeiro aspecto, entende-se, com José Carlos Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 2.ª edição, Almedina, 2001, pág. 193), que tal “analogia de natureza deve
(...) respeitar, cumulativamente, a dois elementos: tratar-se de uma posição subjectiva individual ou de uma garantia que possa ser referida de modo imediato e essencial à ideia de dignidade da pessoa humana, isto é, que integre a matéria constitucional dos direitos fundamentais; e poder essa posição subjectiva ou garantia ser determinada a um nível que deva ser considerado materialmente constitucional”. E, quanto ao segundo, assinale-se que a norma em causa não procedeu, ela mesma, a qualquer classificação de áreas protegidas, limitando-se a fazer retroagir o alargamento do prazo de aprovação dos planos de ordenamento dessas áreas, com manutenção em vigor das anteriores classificações; e depois, importa ter presente que o n.º 2 do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 19/93 declara inaplicável o disposto no n.º 3 do seu artigo 13.º (que prevê a realização de inquérito público prévio) relativamente aos decretos regulamentares que venham a proceder à reclassificação de áreas protegidas já existentes, designadamente
àquelas cuja classificação fora feita ao abrigo da Lei n.º 9/70, de 19 de Junho, lei ao abrigo da qual foi emitido o Decreto-Lei n.º 622/76, de 28 de Julho, que criou o Parque Nacional da Arrábida. Não radica, assim, na norma agora impugnada a dispensa de inquérito público relativamente ao decreto regulamentar, nem ela afecta que, quanto ao subsequente plano de ordenamento do território e seu regulamento, o direito de participação dos interessados se efective quando os respectivos projectos forem concluídos e colocados em discussão pública.»
É também este entendimento que cumpre reiterar no presente processo, concluindo pela não inconstitucionalidade das normas em questão. III. Decisão Pelos fundamentos expostos decide-se: a) Não julgar inconstitucionais as normas dos n.ºs 1 e 3 do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro; b) Em consequência, negar provimento ao recurso e condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Junho de 2004 Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos