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Proc. nº 957/03 TC – 1ª Secção Relator: Conselheiro Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A. foi condenado como autor material de um crime de corrupção passiva para acto ilícito p. e p. pelo artigo 372º, nº. 1 do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão efectiva, por acórdão de 20 de Maio de 2003 proferido pela 1ª Vara Criminal de Lisboa.
Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça tendo concluído como segue a sua alegação:
“1º O depoimento de testemunhas que, como razão de ciência, se limitam a referir que ouviram dizer que não tem qualquer valor, nem há que escrevê-lo, como resulta do nº 1 do artº 129º e do artigo 130º, nº. 1 do C.P.P.
2º Já assim devia ser entendido no domínio do C.P.P. de 1939, mormente a partir da entrada em vigor da CRP, artº. 32, nº 5.
3º Ora, o douto acórdão socorreu-se dos depoimentos de B. e C., no que concerne aos factos havidos entre o arguido e a testemunha AUSENTE, D., valorando-os como meio de prova por não poder comparecer.
4º Nestes termos e noutros doutamente supridos por V. Exªs., Venerandos Conselheiros, não podia o tribunal servir-se como meio de prova das testemunhas acima indicadas, por violação do art. 129º, nº. 1 do CPP, tanto mais não consta do acórdão referido (e do subsequente esclarecimento), a impossibilidade definitiva de ouvir o dito D..
5º Se o arguido/testemunha goza, no seu “processo”, do direito de não responder às perguntas que lhe forem feitas, constitui enorme incongruência, enquanto arguido, e ofensiva da moral enquanto pessoa (art. 32º, nº. 8 da Lei Fundamental), exigir que, noutro processo, a correr termos simultaneamente com aquele, em que se discutem os mesmos factos ou factos conexos, ele fosse forçado a depor como testemunha – e, obrigado, necessariamente, a responder com verdade (artº. 132º, nº 1 al. b) e d) CPP), ainda que admitamos nos termos do disposto acima indicado esse depoimento não pudesse fazer prova contra si.
6º Por isso entendemos na esteira do que decidido foi pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1998 in BMJ, nº. 480, pág. 552, onde refere que: “O consentimento a que alude o nº 2 do art. 133º do CPP não pode ser tácito; tem que constar expressamente de acto avulso ou da própria acta de audiência de julgamento”.
7º Por outro lado, só hoje o recorrente teve conhecimento que as testemunhas que serviram para condenar o arguido pela prática do crime de corrupção passiva para acto ilícito foram, e ainda são, arguidos de um crime conexo e que mantêm, ainda, esta qualidade, cfr., respectivamente, fls. 740, 751 e 756 dos presentes autos. Por todo o exposto entendemos que o douto tribunal a quo socorreu-se de métodos proibidos de prova por ofensa da integridade moral desses arguidos/testemunhas e consequentemente do arguido ora recorrente, sendo nulas, não podendo ser assim, utilizadas essas provas e, como tal, declarado por V. Ex.ªs.
8º Interpretar-se o art. 133º, nº. 2 do CPP como válido o consentimento tácito de um co-arguido em processo conexo é inconstitucional nos termos do art. 32º, nº 1 e nº. 8 da Lei Fundamental, na medida em que colide com os direitos de defesa do arguido e com a integridade moral do mesmo e dos co-arguidos enquanto pessoas.
9º Interrogamo-nos, se por ventura não tivesse existido separação de processos se os co-arguidos, poderiam ser ouvidos como testemunhas e sujeitos à disciplina do art. 132º alíneas b) e d) do CPP
10º Dúvidas não haveria que naqueloutro e neste processo as defesas do ora recorrente saíram definitivamente diminuídas por violação ao disposto no art.
32º, nº 1 da CRP .
11º Posto que neste processo foram testemunhas/co-arguidos sem até à presente data o sabermos e, no outro, sabíamos de antemão que nunca poderiam ser co-arguidos/testemunhas!!!
12º Pelo que, consequentemente, o arguido devia ter sido absolvido do crime
único a que foi condenado. Mesmo que assim não se entenda,
13º Atendendo por fim à personalidade do recorrente, pessoa a caminho dos 55 anos de idade, que reportando-se ao momento da decisão o tribunal devia fazer um juízo de prognose favorável em relação ao momento da decisão ao seu comportamento no sentido de a ameaça da pena ser adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição (Acs. S.TJ de 11/5/1995 proc. 4757/3ª) e verificados que estão os respectivos pressupostos, o aliás, douto acórdão recorrido devia ter suspendido a execução da pena, pois esta é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico Acórdão S.TJ de 27/6/96 (CJ, IV, 2, 204).
14º Pelo que, conforme se motivou e parta aí se remete, a pena aplicada deveria ter sido suspensa na sua execução.
15º Ao não ter procedido como se motivou e concluiu, o douto acórdão recorrido violou, por erro de interpretação os artigos 118º nº 3, 126 nº 1 e 2 al. a),
129º nº 1, 132º 1 al. b) c) e d), em conjugação com o artº. 133º nº 1 al. a) e nº 2 e 374º nº 2 todos do C.P.P. e artº. 50º do C:P. e artº. 32º nº 1, 5 e 8 da Lei Fundamental”.
Por acórdão de 20 de Novembro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou, por manifesta improcedência, o recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida.
De novo inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional
“com vista a apreciação da constitucionalidade das normas do art. 133º, nº. 2 do C.P.P., por violação dos artigos 8º e 32º, nº. 1 da C.R.P.”
Nas suas alegações, concluiu:
“A – O arguido ora recorrente tem no mínimo a expectativa jurídica que o arguido conexo, informado do seu direito ao silêncio, venha a exercê-lo. B – Ao não ter sido dado ao arguido conexo a possibilidade de optar pelo silêncio, não só se violou o seu direito, como também as expectativas jurídico-constitucionais do Recorrente. C – Por outro lado, a falta de informação do Direito ao silêncio, não gera, ao contrário do que entende o S.T.J., a ineficácia das declarações prestadas contra o declarante mas sim, a inexistência das mesmas. D – O que gera a impossibilidade das mesmas poderem ser utilizadas quer contra o declarante, que contra terceiros. E – A não se entender assim, o legislador estaria a permitir que as mesmas declarações pudessem servir para condenar quem nelas é visado, e absolver quem nelas confessou a pratica de um crime. F – No caso concreto, servem de fundamento exclusivo à condenação do corrupto, mas não podem servir de prova contra o corruptor. G – Interpretou assim mal, de forma contraria à constituição, o artº. 133º nº 2 ex vi art. 58, nº 4 do C.P.P., pois tal interpretação viola as garantias de defesa do Arguido constantes do art. 32º n. 1 e 8 da C.R.P.”
O Exmº. Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal apresentou contra-alegações, concluindo:
“1 – A norma do nº 2 do artigo 133º do Código de Processo Penal visa essencialmente a protecção dos direitos de defesa do co-arguido, ao exigir o seu consentimento para prestar declarações em processo separado, que não corre termos contra si.
2 – Tendo havido produção de depoimento, sem prévio consentimento expresso, a prova assim produzida, desde que sujeita ao contraditório e não enfermando de nenhum outro vício, não viola as garantias de defesa constitucionalmente consagradas do arguido que está a ser julgado.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso”.
Cumpre apreciar e decidir.
2- O objecto do presente recurso de constitucionalidade circunscreve-se à apreciação da (des)conformidade da norma constante do artigo
133º, nº2 do Código de Processo Penal - interpretada no sentido de ser válido o depoimento prestado por co-arguido de um mesmo crime ou crime conexo em processo separado, sem afirmação do seu consentimento expresso, limitando-se a proibição de valoração do depoimento apenas em relação ao depoente - com o artigo 32º, nºs. 1 e 8 da Constituição da República Portuguesa.
3 - É do seguinte teor a norma em apreciação:
“Artigo 133º
(Impedimentos)
1. Estão impedidos de depor como testemunhas: a) O arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade; b) (...) c) (...)
2. Em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo podem depor como testemunhas, se nisso expressamente consentirem”.
E sobre a aplicação desta norma ao caso, escreveu-se no acórdão recorrido:
(...) das respectivas actas de julgamento não consta que tais testemunhas ainda mantivessem o estatuto de “arguidos” (única situação em que se exigiria que, para intervirem como “testemunhas”, a tanto anuíssem “expressamente”) 10. Nem que, mantendo-o, tivessem dado, para “depor como testemunhas”, o seu
“consentimento expresso”.
5.6.É óbvia a razão de ser de tal “consentimento expresso”: por um lado, o arguido (e, na hipótese, a testemunha continuaria “arguido” de um crime conexo) goza do direito de “não responder a perguntas feitas sobre os factos que lhe forem imputados” (art. 61.1.c do Código de Processo Penal); por outro, “o arguido não presta juramento em caso algum” (art. 140.3) e, tendo embora “o direito de prestar declarações em qualquer momento da audiência”, não é “a tal obrigado” nem “o seu silêncio poderá desfavorecê-lo” (art. 343.1); enfim, “a testemunha não é obrigada a responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal”.
5.7. É esta dupla faceta de “testemunha” num processo e de “arguido” (do mesmo ou de crime conexo) em “processo separado” que o “impede” de depor ali como testemunha (a menos que nisso expressamente consinta). Essa exigência legal destinar-se-á, porém, a proteger não o (co-)arguido do processo em que ele deponha como testemunha mas a protegê-lo a ele próprio do que, como testemunha ajuramentada, possa resultar em prejuízo da sua posição de “arguido” no processo conexo. E daí a dupla protecção que os art.s 132.2 e 133.2 lhe conferem: por um lado, a concedida às “testemunhas” em geral (a de se recusarem a responder a perguntas cuja resposta possa incriminá-las) e, por outro, a concedida aos arguidos (de se recusarem a prestar declarações).
5.8. Mas, prescindindo o “arguido do mesmo crime ou de um crime conexo”, no processo em que não seja “arguido”, da “protecção” (de primeira linha) de, como arguido, “não prestar declarações”, compreende-se – como protecção de segunda linha – a exigência de que seja “expresso” o seu “consentimento” em “depor como testemunha”.
5.9.Só que, assim sendo, a eventual falta desse “consentimento expresso” não inquinará, enquanto “testemunho”, o seu depoimento (cuja validade, no âmbito do processo em que é prestado, sairá intocada), se bem que “impeça” que, em seu desfavor, venha ele a repercutir-se no processo “conexo” em que for arguido “de um mesmo crime ou de um crime conexo”.
5.10. Enquanto os impedimentos ps. na alínea a) do art. 133.1 do Código de Processo Penal (...) implicam a “proibição de todas as declarações prestadas pelo interrogado, as quais não podem utilizar-se contra ele ou contra terceiros”, já, em caso de separação de processos, o depoimento como testemunha de arguido de um mesmo crime ou de crime conexo, sem prévia “expressão” do seu consentimento, apenas proibirá (no “seu” processo) a sua valoração/utilização contra ele'.
4 - A importância de que se reveste a produção de prova em processo penal, enquanto superação de um modelo inquisitorial do processo e conquista basilar do processo de estrutura acusatória, tem subjacente a ideia da existência de limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal, limites que se traduzem nos conceito e regime das proibições de prova.
Costa Andrade, citando Gössel, afirma que “às proibições de prova cabe a importante tarefa de “prevenir que o imperativo da realização da justiça material que dimana do Estado de Direito redunde precisamente no seu contrário”.
(...) “É que, precisa GÖSSEL “do princípio do Estado de Direito decorre o dever de averiguar a verdade e, ao mesmo tempo, a delimitação dessa averiguação””
(cfr. Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, págs. 117 a 119).
Em particular, quanto à liberdade de declaração do arguido, ela é analisada pela
doutrina numa dupla dimensão, positiva e negativa. Pela positiva, abre ao arguido o “mais irrestrito direito de intervenção e declaração em abono da sua defesa” e pela negativa, a liberdade de declaração do arguido veda todas as tentativas de obtenção, por meios enganosos ou por coacção, de declarações auto-incriminatórias.
A vertente negativa (nemo tenetur se ipsum accusare) assume particular relevância em matéria de proibições de prova, não podendo o arguido ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua incriminação.
De novo com Costa Andrade, o que está em jogo “é garantir que qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de autoresponsabilidade.” (cfr. ob cit, pág. 121).
E isto porque, na liberdade de declaração espelha-se o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual decidindo, por força da sua liberdade e responsabilidade, sobre se e como quer pronunciar-se.
Ou, como Esser – autor citado por Costa Andrade – “senhor das suas declarações”.
A lei processual penal dedica várias normas ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare, delas se salientando “um total e absoluto direito ao silêncio” do arguido [cfr. artigos 61º, nº 1, alínea c), 343º, nº 1 e 345º , nº1, todos do CPP].
O conteúdo material do referido princípio (nemo tenetur ...) é assegurado através da imposição dos deveres de esclarecimento ou de advertência às autoridades judiciárias e aos órgãos de polícia criminal [cfr. artigos 58º, nº2;
61º, nº 1, alínea g); 141º, nº 4 e 343º, nº1], estabelecendo-se a sanção de proibição de valoração, nos termos do artigo 58º, nº 4 e da nulidade das provas obtidas mediante tortura, coacção ou ofensa da integridade, física ou moral
(cfr. artigo 126º, nº 1, todos do CPP).
O Código Penal de 1982 concluía a tutela da liberdade de declaração e depoimento com a incriminação da extorsão de depoimento (cfr. artigo 412º do Código Penal), podendo entender-se que hoje tal incriminação resulta das disposições conjugadas dos artigos 155º, nº1, alínea d) e 154º do Código Penal.
A norma do artigo 133º do CPP encontra-se inserida no Livro III do CPP que trata da prova, destacando-se os seguintes meios de prova: prova testemunhal (artigos
128º a 139º), declarações do arguido (artigo 140º a 144º), declarações do assistente e das partes civis (artigo 145º), acareação (artigo 146º), reconhecimento (artigos 147º a 149º), reconstituição do facto (artigo 150º), prova pericial (artigo 151º a 163º) e prova documental (artigos 164º a 170º).
Deste elenco resulta, em primeiro lugar, e como assinala Medina de Seiça ('O conhecimento probatório do co-arguido', Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iurídica n.º 42, Coimbra Editora, 1999, pág. 152), a inexistência nominal e autónoma das declarações do co-arguido.
Com efeito, a referência expressa ao co-arguido insere-se, em sede de “meios de prova”, na prova testemunhal – maxime, no artigo 133º - e na prova por acareação
(cfr. artigo 146º).
Na fase de audiência de discussão e julgamento, em especial na fase de produção da prova em audiência de discussão e julgamento, encontram-se no Código de Processo Penal referências ao co-arguido nos artigos 343º, nº 4 (“declarações do arguido”); 344º, nº 3, alínea a) (“confissão”) e 348º, nº6 (“inquirição das testemunhas”).
Segundo Medina de Seiça, a norma constante do artigo 133º do CPP - impedimento para depor como testemunha – representa “uma das regras que caracterizam em maior medida a actual disciplina da prova testemunhal” e “constitui o vértice da concepção global sobre a função ou posição processual que ao co-arguido se deve reconhecer no quadro do direito probatório” (cfr. ob., cit., pág. 17).
A consagração de um impedimento em sede de obtenção/produção de prova implica forçosamente uma limitação à aquisição de material probatório.
A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a que acima se fez referência e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação (cfr. neste sentido, Costa Andrade, ob. cit., pág. 121).
A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação dos mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal, constitui expressão do privilégio contra a auto-incriminação.
O alargamento do impedimento – alargamento do direito do arguido ao silêncio – ao próprio co-arguido arranca desta mesma matriz da garantia contra a auto-incriminação, enquanto expressão do direito de defesa, entendida como a exigência de assegurar ao co-arguido o direito a defender-se, sem que, através do testemunho sobre facto de outro, ele comprometa sua própria posição processual, auto-incriminando-se (cfr. neste sentido, Medina de Seiça, ob. cit., págs. 36 e 37).
A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à “colaboração forçada” na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma investigação.
O modelo do testemunho consentido, previsto no artigo 133º, nº2 do CPP, pretende satisfazer a exigência de trazer o conhecimento probatório do co-arguido a um processo em que ele não se encontra a responder, sem eliminar a garantia do impedimento: a não sujeição dos arguidos do mesmo crime ao constrangimento característico da prova testemunhal.
Ao cometer ao co-arguido a decisão sobre o exercício concreto da protecção, o impedimento deixa de ser absoluto e passa a relativo (ainda neste sentido Costa Andrade, ob. cit. pág. 121 e Medina de Seiça ob. cit. pág. 123)
5 - O que se deixa dito permite-nos agora abordar, directamente, e com a limitação dos poderes de cognição deste Tribunal (no caso, aceitando que o co-arguido não deixara ainda de ser arguido, pelo mesmo crime, em processo separado e que não consentiu, expressamente, em depor como testemunha), a questão de constitucionalidade em causa: saber se a admissão e valoração do referido meio de prova contra o arguido no processo em que é prestado o depoimento, tal como resulta da interpretação feita pelo acórdão recorrido da norma do artigo 132º n.º 2 do CPP, ofende a Constituição
E, desde logo, a de saber se se verifica a violação do artigo 32º n.º 1 da CRP.
Ora, o Tribunal entende que a norma que estabelece o assinalado impedimento relativo visa, exclusivamente a protecção dos direitos do co-arguido, enquanto tal, no processo pertinente, em ordem a garantir o seu direito de se não auto-incriminar.
Para assim concluir o Tribunal tem, antes do mais, em conta que o impedimento cessa no caso de o co-arguido deixar de o ser no processo separado, por qualquer forma por que o procedimento criminal se pode extinguir.
E, por outro lado, faz relevar o facto de o consentimento expresso do mesmo co-arguido ser suficiente para a legalidade deste meio de prova.
O que significa, por outras palavras, que o arguido, no processo onde o depoimento é prestado nada pode opor, no estrito plano do direito infraconstitucional e verificado o consentimento expresso do depoente, à inquirição do co-arguido como testemunha.
Mas, sendo assim - como é - não pode, desde logo, conceber-se que a eventual ofensa do disposto no artigo 133º n.º 2 do CPP, por o co-arguido não ter expressado o seu consentimento - implique a violação das garantias de defesa, constitucionalmente asseguradas, do arguido que está a ser julgado no processo onde o depoimento é prestado.
Se violação dessas garantias de defesa ocorre, ela só pode operar relativamente ao co-arguido/depoente no processo separado, no ponto em que o depoimento funcione como prova da sua auto-incriminação.
E é isto mesmo que o acórdão recorrido não deixa de expressar.
O recorrente apercebe-se, aliás, do bem que é tutelado pela norma do artigo 133º n.º 2 do CPP.
E é por isso que ele intenta abranger no círculo de garantias em causa os seus próprios direitos de defesa como arguido, aludindo à suas 'expectativas' ao exercício do direito ao silêncio por parte do co-arguido que, por falta do consentimento expresso, não teria sido devidamente assegurado.
A verdade é que, muito embora o arguido, na sua estratégia de defesa, possa ponderar a eventualidade de um co-arguido, chamado a depor no processo como testemunha, se recusar a fazê-lo (ou não dar, para o efeito, o seu consentimento) não pode considerar-se que tal se compreenda no seu 'direito' de defesa, nem mesmo numa expectativa jurídica constitucionalmente tutelada.
Em suma, pois, não se mostra violado o disposto no artigo 32º n.º 1 da CRP..
6 - Invoca, ainda, o recorrente a violação do artigo 32º n.º 8 da CRP.
Mas também sem razão.
E para assim entender não se torna sequer necessário decidir a questão de saber, no plano do direito ordinário, qual o tipo de cominação aplicável a um depoimento de co-arguido, prestado nas referidas condições (sem expresso consentimento) - nulidade, anulabilidade ou mera irregularidade - não deixando, no entanto, de referir que, na edição de 1993 da sua obra 'Curso de Processo Penal', II, pág. 123, o Prof. Germano Marques da Silva sustenta que se está perante um 'mera irregularidade'.
E poderá igualmente ficar em aberto a questão de saber se, a admitir-se que se configura uma 'proibição de prova' que visa tutelar os direitos do co-arguido chamado a depor como testemunha, ela tenha também como efeito, no mesmo plano do direito ordinário, a impossibilidade de a prova ser oposta ao arguido.
É que, no âmbito do artigo 32º n.º 8 da CRP, só está compreendida a nulidade de determinados meios de obtenção de prova, ali especificados ('tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na visa privada, no domicílio, na correspondência ou nas comunicações').
Ora, em nenhum destes casos se pode integrar a prova testemunhal prestada por co-arguido em processo separado sem que o depoimento seja antecedido da afirmação expressa do consentimento por parte do depoente, o que tanto basta para julgar improcedente a invocada incosntitucionalidade.
7 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 Ucs.
Lisboa, 5 de Maio de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida
10 Aliás, todas elas, ao responderem aos costumes, disseram “nada”. E, obviamente, seria este o momento normal para o juiz verificar se existia ou não o impedimento em virtude de o declarante ser arguido, noutro processo, do mesmo crime ou de crime conexo ao do arguido que estava a ser julgado” (idem, p. 125).