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Processo n.º 638/04
3ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. e B. reclamaram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do despacho de 6 de Maio de 2004 (fls. 63), que não admitiu o recurso que interpuseram do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Abril de 2004, que indeferiu a pretensão das recorrentes de reforma e arguição de nulidades do acórdão do mesmo Supremo Tribunal, de 22 de Janeiro de 2004.
O despacho recorrido não admitiu o recurso por considerar que a questão de constitucionalidade não foi suscitada durante o processo, ou seja, antes de proferido o acórdão que julgou o recurso de revista, mas apenas no requerimento de pedido de reforma e de arguição de nulidades.
As reclamantes discordam deste entendimento pelos motivos que assim resumem (conclusão 5, da reclamação) :
“a) As recorrentes, apenas no requerimento de reforma e de arguição de nulidades apresentado no STJ suscitaram as inconstitucionalidades das interpretações dadas pelos Senhores Conselheiros a diversas normas e às violações de diversos princípios constitucionais fundamentais de direito, porque só nessa fase processual tal foi possível, pelo que dessa decisão cabe recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artº 70º, n.º 1 b) da LTC. b) As recorrentes antes de arguirem as inconstitucionalidades não tinham tido a oportunidade processual de as suscitar, dado que estas não sabiam, nem poderiam saber, que tais elementares direitos constitucionais iriam ser frontalmente violados. c) Por conseguinte, não pode às recorrentes ser negado o direito de recorrerem para o Tribunal Constitucional, apenas com o argumento de que a questão da constitucionalidade não foi suscitada antes de proferido determinada decisão, quando após essa decisão, o Tribunal ainda profere outro acórdão em que nega a violação desses direitos constitucionais. d) Isto é, seguindo o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça no presente caso, seria conferir ao Tribunal a oportunidade de decidir definitivamente uma questão de constitucionalidade que, ao contrário do afirmado pelo STJ, foi suscitada durante o processo, e não dando a oportunidade de a parte que recorreu ao Tribunal e que pediu que fosse analisada a questão de constitucionalidade, e uma vez indeferida tal questão, agora pedir ao Tribunal Constitucional de analisar os atropelos do Supremo Tribunal de Justiça. e) É que, ao contrário do afirmado pelo Exmº Senhor Conselheiro do STJ, a questão da constitucionalidade foi suscitada durante o processo; tanto assim é, que o STJ até proferiu um acórdão sobre estas questões. f) Do acórdão recorrido já não cabia qualquer recurso ordinário nos termos do disposto nos n.ºs. 2 e 3 do artº 70º da LTC. g) As recorrentes têm legitimidade para recorrer – artº 72º, n.º 1 b) e n.ºs 2 da LTC. h) As recorrentes indicaram todos os elementos previstos no n.º 2 do artº 75º-A, da LTC.”
A recorrida C. argumenta que o recurso não deve ser admitido, em síntese, porque a decisão que aplicou as normas cuja inconstitucionalidade está em causa foi o acórdão de 22 de Janeiro de 2004 e não o de 15 de Abril do mesmo ano e porque as reclamantes dispuseram de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade, antes de proferido aquele primeiro acórdão, e não o fizeram.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“Tem, com efeito, sido entendido pelo Tribunal Constitucional que o momento adequado para suscitar uma questão de constitucionalidade normativa já não é, em regra, o requerimento de arguição de nulidades. Não só tal regra poderá, porém, admitir excepções, como sempre estariam ressalvadas situações em que o recorrente é confrontado com decisões insólitas ou de todo inesperadas. No caso em apreço, afigura-se-me que o recurso deverá ser admitido, equacionando-se e decidindo-se, na sua pendência, as questões suscitadas.”
2. Para decisão da reclamação interessam os factos e ocorrências processuais seguintes:
a) Por acórdão de 22 de Janeiro de 2004, concedendo provimento a recurso da autora C. e revogando acórdão da Relação favorável às rés, ora reclamantes, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou sentença da primeira instância (Tribunal Cível da Comarca do Porto) que, julgando a acção procedente, decretara a resolução de um contrato de arrendamento e condenara as rés a entregar o local arrendado, livre de pessoas e coisas. b) Por requerimento de 6 de Fevereiro de 2004 (certificado a fls. 23 e segs.), as recorrentes pediram a reforma e arguiram nulidades do acórdão de 22 de Janeiro, além do mais, com argumentos de ordem constitucional (als. E e F do requerimento). c) Por acórdão de 15 de Abril de 2004 (fls. 54/59), o Supremo Tribunal de Justiça decidiu “indeferir a pretensão dos recorridos da reforma do acórdão de fls. 522 a 533, bem como a arguição de nulidades e inconstitucionaldiades”. d) Por requerimento de 30 de Abril de 2004 (fls. 60), as recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, do acórdão de 15 de Abril de 2004, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, do seguinte teor:
“As recorrentes consideram que foram violados as seguintes normas e princípios constitucionais: a) Artºs. 20º nº 1 , 26º, nº 1, 18º, nº 1 e 13º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa; b) e os princípios fundamentais de direito de acesso aos tribunais, de igualdade e da protecção legal contra quaisquer formas de discriminação. As referidas questões de inconstitucionalidade foram suscitadas no requerimento em que as recorrentes requereram a reforma, arguiram nulidades do acórdão e arguiram a nulidade de todo o processado, do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 2004. Por outro lado, as recorrentes até ao momento em que foi proferido o acórdão de
22-1-2004 pelo STJ, não tinham tido oportunidade processual de suscitar as questões de inconstitucionalidade, dado que as recorrentes não sabiam, nem poderiam saber, que tais elementares direitos constitucionais iriam ser frontalmente violados (...).”
e) Este recurso não foi admitido, por despacho de 6 de Maio de 2004, do seguinte teor:
“Porque a questão de constitucionalidade não foi suscitada durante o processo, ou seja, antes de proferido o acórdão final de fls. 522 a 533 verso, mas apenas no requerimento de reforma e arguição de nulidades posterior à qual, não se admite o recurso para o Tribunal Constitucional, interposto a fls. 643 e 644 pelos recorridos A. e B., nos termos dos artigos 28o n.º 1 al, b) da Constituição da República, 75º-A, n.ºs 1 e 2, 70º, n.º 1 al. b) e 76º n.ºs 2 e 1 da Lei Geral sobre a Org. e Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(neste sentido – Acórdão do T. Cons. N.º 155/95 – DR – II Série, de 29/6/95, entre muitos outros e decisão sumária n.º 4/2004 de 05/01/04 no Proc. n.º
858/2003 – 2ª Secção do T. Constitucional).”
3. Antes de apreciar as razões aduzidas pelas reclamantes para convencer de que suscitaram a questão de constitucionalidade em termos processualmente adequados perante o tribunal a quo, coloca-se uma questão, de ordem mais geral e que prejudica aquela apreciação: a identificação da norma cuja constitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie.
O n.º 1 do artigo 75º-A da LTC exige que, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente indique a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie. Essa indicação desempenha um papel essencial, no sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade instituída no direito português, em que a violação de preceitos ou princípios constitucionais tem de ser reportada a normas e não, directamente, à decisão judicial impugnada. É em função dela que vai proceder-se à verificação dos pressupostos específicos do recurso interposto (no caso a prévia suscitação da questão de constitucionalidade). E delimitar-se o objecto do recurso, que pode posteriormente ser restringido mas não ampliado
(artigo 684º, nº3 do Código de Processo Civil), com a consequente determinação dos poderes de cognição do tribunal (artigo 79º-C da LTC).
A falta de tal indicação no requerimento de interposição pode ainda ser suprida, mediante convite, ao abrigo dos n.ºs 5 e 6 do artigo 75º-A da LTC. Mas se o recurso, por qualquer razão, não for admitido, para que a reclamação a que se refere o n.º 4 do artigo 76º da LTC possa prosperar é indispensável que, no momento da decisão da reclamação, a falta se mostre suprida. Efectivamente, nos termos do nº 4 do artigo 77º da LTC, a decisão que revogar o despacho de indeferimento faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso (artigo 77º, n.º 4, da LTC), o que implica que, quando o Tribunal é chamado a decidir, estejam presentes todos os requisitos que são pressuposto desse juízo definitivo. Vale por dizer que o reclamante tem de estar particularmente atento, assegurando-se de que, independentemente da razão pela qual o recurso não foi admitido, não persistem outros obstáculos à admissão do recurso. Se não se verificar qualquer requisito gral ou específico do recurso de constitucionalidade interposto, o Tribunal Constitucional terá de indeferir a reclamação, ainda que, porventura, não acompanhe (ou não chegue a examinar) as razões de indeferimento do requerimento de interposição no tribunal a quo.
Ora, no requerimento de interposição do recurso o recorrente não indica a norma ou normas cuja inconstitucionalidade quer ver apreciada. E também o não faz em qualquer momento posterior, designadamente, na reclamação do despacho de indeferimento. As reclamantes procuram justificar a razão pela qual
“apenas no requerimento de reforma e de arguição de nulidades apresentado no STJ suscitaram as inconstitucionalidades das interpretações dadas pelos Senhores Conselheiros a diversas normas e às violações de diversos princípios constitucionais fundamentais de direito”, mas em nenhum passo dizem quais sejam tais normas (ou um dado segmento ou determinada dimensão ou interpretação normativa).
Acresce que, mesmo que se entendesse possível prescindir de indicação explícita, alcançando-se a vontade do recorrente mediante leitura cruzada das respectivas peças processuais, uma tal flexibilização só seria merecedora de ponderação naqueles casos em que essa via permitisse a identificação inequívoca da norma questionada, em termos de tornar a indicação expressa claramente desnecessária e, portanto, a correspondente consequência manifestamente desproporcionada. O que no caso está muito longe de acontecer, uma vez que no requerimento com o qual pediram a reforma do acórdão de 22 de Janeiro de 2004 e suscitaram nulidades, as ora reclamantes esgrimem com argumentos de inconstitucionalidade em mais de um lugar e a propósito de várias normas, designadamente, na alínea E (fls. 30) e na alínea G (fls. 39) desse requerimento. Nestas circunstâncias, qual seja o objecto do recurso de constitucionalidade que se pretende interpor permanece irremediavelmente obscuro.
Assim, não cumprindo as recorrentes o seu ónus de indicação do objecto do recurso de constitucionalidade como é imposto pelo n.º 1 do artigo 75º-A da LTC, o recurso não pode, agora, ser admitido.
Aliás, em bom rigor, desconhecendo-se qual a norma cuja constitucionalidade se quer ver apreciada, nem sequer é possível averiguar se estão presentes os requisitos específicos do recurso interposto, designadamente se foi oportunamente suscitada, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, uma questão de constitucionalidade normativa ou se se verifica um daqueles casos anómalos ou excepcionais em que tal exigência não pode ser imposta.
Tanto basta para que a reclamação improceda.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação do despacho que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional a que se refere o requerimento das reclamantes certificado a fls. 60/61 e condenar as reclamantes nas custas, com
20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 23 de Junho de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida