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Processo n.º 415/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. Relatório
A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão sumária do relator, de 26 de Abril de 2004, que decidira, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do objecto do recurso, por inadmissibilidade do mesmo.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A. interpôs, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Fevereiro de 2004, que negou provimento a recurso deduzido contra o acórdão do Tribunal Colectivo da 6.ª Vara Criminal de Lisboa, de 6 de Junho de 2003, que o condenara, pela prática de um crime de falsificação de documentos, de um crime de burla agravada e de um crime de peculato, na pena única de 3 anos de prisão e 30 dias de multa à razão diária de € 10,00, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, sob condição de o arguido comprovar ter pago ao Estado, no prazo de 18 meses, a indemnização de € 54
236,74, acrescida de juros vencidos desde 1 de Setembro de 1995 e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Indicou como normas cuja inconstitucionalidade – por pretensa violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) – pretende ver apreciada as constantes dos “artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal actual (artigo 424.º, n.º 1, do Código Penal de 1982) e artigo 376.º do Código Penal actual (artigo 425.º do Código Penal de 1982), na dimensão normativa concreta segundo a qual a apropriação de dinheiro, ainda que devolvido, integra o crime de peculato e não o peculato de uso”.
O presente recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, decisão que não vincula o Tribunal Constitucional
(artigo 76.º, n.º 3, da LTC), e, de facto, entende-se que, no caso, o recurso era inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
2. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o que torna a sua admissibilidade dependente da verificação do requisito de a questão de inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional haver sido suscitada “durante o processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC). Como é sabido, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade (que não conhece figuras equivalentes ao “recurso de amparo” espanhol ou à “queixa constitucional” alemã), apenas podem constituir objecto de controlo por parte do Tribunal Constitucional questões de inconstitucionalidade normativa, isto é, questões de alegada violação de normas ou princípios constitucionais por parte de normas jurídicas (ou de interpretações normativas – hipótese em que incumbe ao recorrente identificar, com clareza e precisão, qual a interpretação normativa que reputa inconstitucional), e já não pretensas violações da Constituição imputáveis directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
No presente caso, o recorrente não suscitou perante o tribunal recorrido, designadamente na motivação do recurso para ele interposto, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Com efeito, em relação ao crime de peculato, o recorrente, nessa motivação, designadamente nos seus n.ºs 27 a 43
(fls. 884 a 887), a que correspondem as conclusões 5.ª e 6.ª, limita-se a imputar ao acórdão recorrido erro de qualificação jurídica dos factos provados, que, no entender do recorrente, deviam ser subsumidos ao artigo 376.º, n.º 1, do Código Penal actual (artigo 425.º, n.º 1, do Código Penal de 1982), e não ao artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal actual (artigo 424.º, n.º 1, do Código Penal de 1982).
Não tendo sido suscitada – como podia e devia ter sido –, perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada, a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa que agora se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, falta o indicado requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o que obsta ao conhecimento do seu objecto.”
1.2. A reclamação deduzida desenvolve a seguinte argumentação:
“1.° – A rejeição do recurso fundamenta-se na falta de invocação, perante o Tribunal recorrido (STJ), da inconstitucionalidade da interpretação normativa agora suscitada junto do Tribunal Constitucional.
2.° – Por esse facto, lê-se na Decisão Sumária, falta o indicado requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, o que obsta ao conhecimento do seu objecto.
3.° – Salvo melhor opinião, o sentido da decisão sumária poderia, e deveria, ter sido diferente.
4.º – É verdade que a questão da inconstitucionalidade não foi levantada junto do STJ. Contudo, tal facto não pode ser entendido de forma a obstar a apreciação do presente recurso.
5.º – Tal como tem sido entendido pela jurisprudência desse Tribunal, existem casos, ainda que excepcionais e/ou anómalos, em que o requisito da arguição da inconstitucionalidade durante o processo pode ser dispensado.
6.º – Dentro das hipóteses a considerar, uma ressalta-nos à vista: não ter sido exigível ao interessado a antevisão da possibilidade de aplicação da norma ao caso concreto, o que afasta o ónus de suscitar a questão da inconstitucionalidade antes da decisão.
7.º – Certo. A ausência de ponderação não é tributária da Jurisprudência do STJ. Tão-pouco da Doutrina.
8.º – Decorre, sim, das circunstâncias do caso concreto e da resposta às alegações – da concreta resposta às concretas alegações – que se logrou oferecer junto do STJ. Vejamos.
9.º – Nas alegações de recurso procurou-se demonstrar, julgamos que com sucesso, a ausência de lógica da solução proposta na primeira instância
(qualificar a utilização de dinheiro público como peculato – apropriação – e não como peculato de uso). Mas sempre no contexto do processo respectivo. Pois bem.
10.° – Ao confirmar a decisão da primeira instância, o STJ mais não fez do que citar Jurisprudência e Doutrina, sem nunca contrariar as concretas motivações do então recorrente.
11.º – Face às concretas alegações do recorrente, ora reclamante, era impossível ponderar a resposta do STJ. Por isso mesmo, a resposta do STJ, ainda que conhecida e apoiada na Jurisprudência e na Doutrina, foi inesperada e insólita, quando confrontada com os circunstancialismos do caso concreto e das alegações que, a esse propósito, foram apresentadas.
12.° – Neste caso, só perante a decisão do STJ é que o reclamante teve possibilidade de ponderar e arguir a questão da inconstitucionalidade, o que fez no primeiro e adequado momento que se lhe impunha fazê-lo.”
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou resposta, propugnando o indeferimento da reclamação por ser “manifestamente infundada”, uma vez que, “não podendo seguramente perspectivar-se como «decisão surpresa» a proferida no julgamento de um recurso, que confirma inteiramente a decisão recorrida”, não existe “qualquer fundamento para dispensar o recorrente do ónus de suscitação, durante o processo, das questões de constitucionalidade que tivesse por pertinentes ou relevantes”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Como flui do precedente relatório, o reclamante não questiona o fundamento pelo qual se decidiu não se conhecer do objecto do recurso: não ter o recorrente suscitado, antes de proferida a decisão recorrida, a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa acolhida nessa decisão, limitando-se a imputar ao acórdão recorrido erro de qualificação jurídica dos factos provados.
Vem agora o reclamante aduzir que se deve considerar dispensado do ónus daquela prévia suscitação por ser inesperada a interpretação normativa acolhida no acórdão impugnado.
Mas – como é evidente – é insusceptível de ser qualificada como inesperada uma decisão de um tribunal superior que se limitou a acolher a confirmar a interpretação normativa seguida na decisão da instância inferior, sujeita ao seu controlo. É óbvio que o recorrente teve oportunidade processual de, na motivação do recurso dessa decisão, suscitar a questão da inconstitucionalidade da interpretação contra a qual reagia. Se o não fez, podendo e devendo tê-lo feito, não se justifica considerá-lo dispensado do aludido ónus.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Maio de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos