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Processo n.º 933/03
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Inconformada com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de Outubro de 2002 (a fls. 445 e seguintes), que manteve a decisão da 1ª instância
(Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia), graduando os créditos dos trabalhadores da sociedade A., declarada falida, com prioridade em relação à hipoteca que esta sociedade constituíra em favor de determinados Bancos, por entender que aqueles créditos dos trabalhadores se encontravam garantidos por privilégio imobiliário geral, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 464).
Nas alegações deste recurso (fls. 531 e seguintes), foram formuladas as seguintes conclusões:
“A) O Código Civil que entrou em vigor em 1 de Junho de 1967 apenas prevê a constituição de privilégios imobiliários especiais – n.º 3 do art. 735°; B) Assim, o privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos laborais dos trabalhadores, previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 12° da Lei n.º 17/86, de
14 de Junho, e no art. 4° da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, constitui uma derrogação ao princípio geral consagrado no n.° 3 do art. 735° do Código Civil de que os privilégios imobiliários são sempre especiais; C) Porque a citada Lei n.º [17]/86 não regula o concurso de tal privilégio com outras garantias reais, in casu, a hipoteca, nem esclarece a sua relação com os direitos de terceiros, nem o Código Civil contém a regra relativa a tal graduação haverá que recorrer aos casos análogos, previstos no Código Civil
(art. 10º C. Civil). D) A similitude entre os privilégios mobiliários gerais e os privilégios imobiliários gerais justifica que se aplique a estes últimos o regime legal expressamente previsto para aqueles. E) Assim, haverá que encarar o privilégio imobiliário geral como mero direito de prioridade que prevalece apenas sobre os créditos comuns, aplicando-se-lhe o regime fixado nos arts. 749º e 686º do C. Civil e graduando-se os créditos que dele gozem só após os créditos garantidos por hipoteca. F) Ainda que assim não fosse e se entendesse e se concluísse que a lei ordinária impunha graduação diversa, concedendo preferência ao crédito garantido por privilégio imobiliário geral sobre o crédito hipotecário, haveria, então, que afastar tal norma, por violadora de direitos e princípios com assento constitucional. G) Concretamente, tal interpretação violaria o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2° da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da proporcionalidade previsto no n° 1 do art. 18° do mesmo normativo constitucional; H) Decidindo de modo diferente, o douto acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 686º, n° 1, 749º, 10º do C. Civil e as normas constitucionais acima citadas.”
Por sua vez, os credores reclamantes B. e outros concluíram assim as respectivas contra-alegações (fls. 574 e seguintes):
“A. O privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos laborais dos trabalhadores, previsto na alínea b) do n° 1 do art. 12º da Lei 17/86 de 14 de Junho e no n° 4 da Lei 96/2001 de 20 de Agosto deverá ser graduado de acordo com o disposto no artigo 751º do C.C.; B. Isso mesmo é imposto pela natureza do crédito que se pretende privilegiar, crédito de natureza essencialmente alimentícia; C. De igual modo, a teleologia da norma que consagra esse privilégio impõe que a graduação seja feita de acordo com o artigo 751º do C.C., só assim se privilegiando os trabalhadores vítimas de situação considerada pelo legislador como «jurídica, social e moralmente inaceitável»; D. E esta causa do crédito impõe igualmente que o privilégio não possa ser especial, mas deve antes ser geral pela correlação que tem com todo o património do empregador; E. Acresce que as normas jurídicas em apreciação são distintas das versadas nos arestos do Tribunal Constitucional, citados pelo recorrente; F. Distintas quanto à origem e natureza bem como quanto aos sujeitos desses direitos; G. Os privilégios creditórios consagrados no art. 12° da Lei 17/86 de 14 de Junho e no art. 4° da Lei 96/2001, não originam quaisquer ónus escondidos ou ocultos; H. Não fica, assim, afectada de maneira alguma a confiança e segurança do comércio jurídico; I. De facto, na constituição da hipoteca voluntária domina o princípio da autonomia da vontade das partes, podendo estas trocar toda a informação, documentos, balanços e declarações que reputem suficiente para acautelar os seus interesses; J. Não vigora, pois, entre as partes contratantes o princípio da confidencialidade tributária; K. Todas estas informações podem ser renovadas com a periodicidade que o credor hipotecário entenda conveniente, face à realidade concreta existente, podendo sempre socorrer-se dos mecanismos legalmente previstos, designadamente nos arts.
701º e 725º do C.C., para acautelar o seu direito de crédito; L. Não podem quaisquer que sejam os agentes económicos exigir que o ordenamento jurídico elimine a margem de risco que naturalmente decorre de qualquer actividade comercial, industrial, financeira ou outra; M. Os privilégios creditórios dos trabalhadores são a emanação directa de direitos constitucionalmente consagrados, art. 59º, n° 3 da Constituição da República; N. O legislador constitucional atribui ao salário relevância fundamental, atenta a natureza essencialmente alimentícia que o mesmo reveste para a dignificação e realização da pessoa humana; O. Razão de ser e base onde assenta a ideia do Estado de direito democrático
(arts. 1° e 2° da C.R.); P. A prevalecer a posição do recorrente, então sim, seriam postos em causa direitos constitucionais, como do direito à retribuição do trabalho e a segurança no emprego (arts. 59º, 1.a e 53º da C.R.); Q. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo fez uma correcta interpretação do direito aplicável, não tendo a interpretação das normas jurídicas em apreço, ferido qualquer norma ou princípio constitucional.”
O representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer no sentido da não inconstitucionalidade da norma constante do artigo 12º, n.º 1, da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, “interpretada em termos de o privilégio imobiliário geral, outorgado aos trabalhadores de entidade declarada falida com vista à garantia dos “salários em atraso” e indemnizações por despedimento devidas, prevalecer, ao abrigo do disposto no artigo 751º do Código Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada” (fls. 615 e seguintes).
2. Por acórdão de 4 de Novembro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu a revista interposta pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., invocando os seguintes fundamentos (fls. 623 e seguintes):
“[...] Delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões da recorrente começaremos por dizer que ela tem razão. Com efeito, o que cabe aqui resolver é a questão da posição relativa dos créditos desta recorrente e dos outros recorrentes trabalhadores. O que tudo se resume a saber se os privilégios gerais conferidos a estes últimos prevalecem sobre a hipoteca de que aquela beneficia. Ora esse confronto deve ser resolvido no sentido de que os créditos dos trabalhadores não têm preferência sobre crédito de terceiro garantido por hipoteca anteriormente registada (v. Ac. deste STJ de 27/6/02 – C.J. X, II, 146, de 27/09/02 desta 6ª secção – Rev. 272/02 e de 12/6/03). A esta questão não dão resposta nem a Lei 17/86 nem a Lei 96/01 (nem qualquer Lei posterior), sendo, por outro lado, de salientar, que a solução oposta ofende o princípio constitucional da protecção da confiança (art. 2° CRP) do credor hipotecário, que veria neutralizada a eficácia da sua hipoteca, por uma garantia até oculta ou por ele ignorada. Seriam em tal caso violadas a garantia e a segurança proporcionada pelo registo predial... Assim, e sem necessidade de mais amplas considerações por demasiado debatida e decidida a questão fulcral deste recurso, procede este último.
[...].”
3. Deste acórdão vieram C. e outros interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos artigos 735º, n.º 3, 749º e 686º, todos do Código Civil, por violação do disposto nos artigos 1º, 2º e 59º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Constituição
(fls. 631 e seguinte).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 633.
Também B. e outros interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie “a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Acórdão recorrido aos arts. 12º n.º 1 alínea b) da Lei
17/86 de 14 de Junho, art. 4º da Lei 96/2001 de 20 de Agosto quando conjugado com o disposto no art. 751º do Código Civil e art. 2º da Constituição da República Portuguesa”, por violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1º da Constituição e dos artigos 59º, n.º 1, alínea a), e 53º, também da Constituição (fls. 634 e seguintes).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 644.
4. Nas alegações do recurso interposto por C. e outros (fls. 662 e seguintes), os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
“[...] Em síntese e para concluir: O privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos laborais, previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 12º da Lei n.º 17/86 de 14 de [Junho] e no art. 4º da Lei n.º 96/2001 de 20 de Agosto, não constitui uma derrogação ao princípio geral consagrado no n.º 3 do art. 735º do Cód. Civil, que diz que os privilégios imobiliários são sempre especiais. Está-se porem, de acordo que é urgente determinar o regime legal para o privilégio imobiliário geral não previsto no Cód. Civil, essencialmente quando em confronto com outro tipo de garantias, in casu, com a hipoteca. Discorda-se no entanto, que o regime legal a eleger como análogo, para efeitos de regulamentação seja o regime dos privilégios imobiliários gerais fixado nos arts. 749º e 686º do Cód. Civil, em detrimento do regime dos privilégios imobiliários especiais, encarando apenas aqueles como mero direito de prioridade que prevalecem apenas sobre os créditos comuns e graduando-se os créditos que dele gozem só após os créditos garantidos por hipoteca. Se atendermos à natureza e aos fins que visam os privilégios imobiliários gerais, à causa da sua criação, como garante dos créditos de natureza laboral, para efeitos de determinação do regime análogo a aplicar na graduação dos privilégios creditórios em confronto com outras garantias obrigacionais, aquele tem que residir no carácter imobiliário dos mesmos, não na sua natureza geral. Ao analisarmos a norma que na lei dos salários em atraso, criou os privilégios imobiliários gerais, somos forçados a concluir que o regime de tais privilégios, embora gerais, terá que ser o dos privilégios imobiliários especiais e não o regime dos privilégios gerais regulados no art. 749º do Código Civil. Os privilégios creditórios dos trabalhadores são a emanação directa dos direitos constitucionalmente consagrados (art. 59º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa). O legislador constitucional atribui ao salário uma relevância fundamental, atenta a sua natureza essencialmente alimentícia, e que é inerente à dignificação e realização da pessoa humana (art. 1º da Const. da Repúbl. Portuguesa). Esta é a razão de ser e base que sustenta a ideia de Estado de Direito Democrático (art. 2º da Const. da Repúbl. Portuguesa). A prevalecer a interpretação dada pelo Douto Acórdão recorrido às normas legais em causa, então sim, são postos em causa direitos constitucionalmente garantidos, tais como, o direito à retribuição do trabalho e à segurança no emprego (arts. 59º n.º 1 a) e 53º da Const. da Repúbl. Portuguesa). Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação do direito aplicável, tendo a interpretação das normas jurídicas em apreço ferido os princípios constitucionais supra referenciados. Assim, e com o sempre mui douto suprimento de Vªs Exas, deve ser declarada a inconstitucionalidade das normas supra referenciadas, por contenderem e violarem preceitos constitucionais.
[...].”
Por sua vez, B. e outros concluíram assim as suas alegações de recurso (fls. 669 e seguintes):
“A) Os privilégios creditórios consagrados no art. 12º da Lei 17/86, de 14 de Junho e no art. 4° da Lei 96/2001 não originam quaisquer ónus escondidos ou ocultos; B) Não fica, pois, afectada de maneira alguma a confiança e segurança do comércio jurídico; C) De facto, na constituição de hipoteca voluntária, situação dos autos, domina o princípio da autonomia da vontade das partes, podendo estas trocar toda a informação, documentos, balanços e declarações que reputem suficientes para acautelar os seus interesses; D) Não vigora, pois, entre as partes contratantes o princípio da confidencialidade tributária; E) Todas estas informações podem ser renovadas com a periodicidade que o credor hipotecário entenda conveniente, face à realidade concreta existente, podendo sempre socorrer-se dos mecanismos legalmente previstos, designadamente dos artigos 701º e 725º do C.C., para acautelar o seu crédito; F) Não podem quaisquer que sejam os agentes económicos exigir que o ordenamento jurídico elimine a margem de risco que naturalmente decorre de qualquer actividade comercial, industrial, ou financeira; G) Assim, com a prevalência dos créditos laborais sobre a hipoteca não é ofendido qualquer princípio constitucional, nomeadamente o da protecção da confiança; H) A entender-se o contrário, então, ao privilegiar a hipoteca em detrimento dos privilégios referidos, estaria a ofender-se, agora sim, o princípio da dignidade humana. I) Tal princípio previsto no art. 1º da Constituição da Republica Portuguesa é a pedra angular, fundamento e fim do próprio Estado. J) A dignidade da pessoa humana está antes de tudo, nada tendo sentido nomeadamente a consagração de quaisquer direitos se não houver um sujeito que os possa usufruir com dignidade. K) A dignidade da pessoa humana pressupõe autonomia vital e daí as diversas emanações constitucionais, nomeadamente o direito à retribuição do trabalho de forma a garantir uma existência digna (art. 59º n° 1 al. a)) e o direito à segurança no emprego (art. 53º); L) E visando o salário a possibilidade de subsistência e independência da pessoa humana, na sua dimensão de trabalhador, as garantias que àquele reportam devem prevalecer sobre quaisquer outro tipo de garantias ou tutelas; M) O acórdão sub judice ao decidir como decidiu fez prevalecer «o ter» sobre «o ser». Os direitos de natureza económica sobre o princípio absoluto da dignidade da pessoa humana; N) E é exactamente para pôr cobro a uma situação de calamidade que grassava pela década de 80, com o surgir galopante dos salários em atraso que o legislador ordinário criou os privilégios relativamente aos créditos dos trabalhadores; O) Privilegiar a hipoteca face aos créditos dos recorrentes, seria, no mínimo como se pode ler no referido acórdão da Relação do Porto, «dar com a mão esquerda ao trabalhador o que, de imediato e com suprema hipocrisia, lhe retiraria com a mão direita». P) Assim, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, art. 59º, 1 a) e 53º todos da Constituição, impõe uma interpretação oposta à dada pelo tribunal a quo, fazendo prevalecer os privilégios imobiliários que assistem aos créditos dos recorrentes sobre a hipoteca; Q) Ao decidir como decidiu o tribunal a quo fez uma interpretação inconstitucional dos artigos 12º, n° 1 al. b) da Lei 17/86 de 14 de Junho e artigo 4º da Lei 96/2001 de 20 de Agosto quando conjugados com o artigo 751º do C.C. por violação dos imperativos constitucionais da dignidade da pessoa humana previsto no art. 1° da C.R.P. e nos artigos 59º n° 1 a) e artigo 53º também da C.R.P.”
5. Na sua resposta às alegações do recurso interposto por C. e outros, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. disse, em síntese, o seguinte (fls. 694 e seguintes):
a) Parece dever concluir-se das alegações dos recorrentes que estes pretendem que seja declarada a inconstitucionalidade da interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça efectuou da norma do artigo 12º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 17/86; b) O Supremo Tribunal de Justiça efectuou tal interpretação da norma, não por entender inconstitucional a interpretação contrária, mas porque era essa a interpretação conforme ao direito ordinário vigente; c) A decisão proferida só seria susceptível de alteração, caso se entendesse ser inconstitucional a interpretação feita pelo Supremo, segundo a qual a alínea b) do n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, concede apenas aos seus titulares um direito de prioridade sobre os créditos comuns, aplicando-se-lhe o regime fixado nos artigos 749º e 686º do Código Civil, e graduando-se os mesmos após a hipoteca; d) Ora, aceitando-se que o direito à retribuição do trabalho, de forma a garantir uma existência condigna, encontra assento constitucional (artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição), não é menos verdade que o direito do credor hipotecário tem protecção constitucional, designadamente através do princípio do estado de direito (artigo 2º da Constituição), no qual cabe não só o princípio da segurança jurídica e do comércio jurídico, como o princípio da confiança; e) A prevalência dada ao direito do credor hipotecário nunca será excessiva, pelo menos nos casos, como o presente, em que o crédito hipotecário é muito anterior aos créditos dos recorrentes; f) Uma tão intensa protecção dos créditos dos trabalhadores acabaria por acarretar efeitos perversos, na medida em que, na prática, iria provocar uma forte retracção na concessão de crédito a empresas com elevado número de trabalhadores; g) Ainda que se concluísse dever ser dada primazia ao direito dos trabalhadores, o privilégio em causa deveria ser sempre limitado ao crédito, não sendo extensivo às indemnizações.
Na resposta às alegações do recurso interposto por B. e outros, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. repetiu as alegações apresentadas quanto ao outro recurso (fls. 713 e seguintes), tendo acrescentado que “não será a tese sufragada pelos recorrentes que – em termos gerais e abstractos – se revela mais adequada à protecção dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa e do direito ao salário”.
O recorrido banco D., não alegou (fls. 709).
6. Nos termos do artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil, foi notificado às partes o despacho em que a relatora admitia que o Tribunal Constitucional viesse a não tomar conhecimento do recurso, pelas seguintes razões (despacho de fls. 731 e seguintes):
“Ambos os recursos interpostos nos presentes autos se fundamentam na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional cabe das decisões dos tribunais «que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo». Constituem pressupostos do recurso fundado nessa disposição: a invocação pelos recorrentes, durante o processo, da inconstitucionalidade da norma (ou da norma, numa certa interpretação) que se pretende que este Tribunal aprecie e a aplicação de tal norma (ou de tal norma, com essa interpretação) no julgamento da causa, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhe foi dirigida. Ora estes pressupostos processuais do recurso interposto não estão verificados no caso dos autos. Quanto ao recurso interposto por C. e outros, em que é pedida a apreciação da inconstitucionalidade das «normas dos artigos 735º, n.º 3, 749º e 686º, todos do Código Civil», por violação do disposto nos artigos 1º, 2º e 59º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Constituição: Verifica-se que pelo menos algumas das normas identificadas pelos recorrentes foram tomadas em consideração na decisão aqui recorrida. Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que remete para as alegações da Caixa Geral de Depósitos quando procede à fundamentação de direito, faz assentar a sua decisão em regime extraído de normas do Código Civil, que haviam sido referidas nessas alegações da Caixa Geral de Depósitos e que depois foram identificadas pelos recorrentes no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. A esta mesma conclusão se chega analisando as anteriores decisões do Supremo que são invocadas como precedente no acórdão recorrido (cfr. a parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, constante de fls. 625/626, transcrita supra, 2.). Todavia, estes recorrentes não suscitaram a inconstitucionalidade de tais normas durante o processo. Na verdade, estes recorrentes não alegaram perante o Supremo Tribunal de Justiça. E, nas contra-alegações de recurso que apresentaram no Tribunal da Relação do Porto (no recurso interposto pelo D. da sentença do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia) – que, de todo o modo, não seriam momento adequado para considerar cumprido o ónus de invocação da inconstitucionalidade durante o processo, a que se referem os artigos 70º, n.º
1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional –, limitaram-se a refutar a inconstitucionalidade das normas do artigo 12º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, e do artigo 4º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, sustentada, nesse recurso, por aquele Banco (cfr. fls. 38 e seguintes). Não tendo sido suscitada pelos recorrentes, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade relativamente às normas dos artigos
735º, n.º 3, 749º e 686º, do Código Civil, não pode dar-se como verificado, no caso em apreço, um dos pressupostos de admissibilidade do recurso interposto por C. e outros – a invocação pelos recorrentes, durante o processo, da inconstitucionalidade da norma que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Quanto ao recurso interposto por B. e outros, em que é pedida a apreciação da inconstitucionalidade da «interpretação dada pelo Acórdão recorrido aos arts.
12º n.º 1 alínea b) da Lei 17/86 de 14 de Junho, art. 4º da Lei n.º 96/2001 de
20 de Agosto quando conjugado com o disposto no art. 751º do Código Civil e art.
2º da Constituição da República Portuguesa», por violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1º da Constituição e dos artigos 59º, n.º 1, alínea a), e 53º, também da Constituição: Verifica-se que os recorrentes B. e outros abordaram, nas alegações para o Supremo, a questão da inconstitucionalidade das normas que agora impugnam (cfr. sobretudo conclusões G, H, P, a fls. 585/586, transcritas supra, 1.). Só que as normas indicadas como objecto do recurso, e questionadas durante o processo pelos recorrentes, não constituíram o fundamento da decisão recorrida. Na verdade, o tribunal recorrido não aplicou nem a Lei n.º 17/86 nem a Lei n.º
96/01. Lê-se, a este propósito, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (fls.
626):
«[...] A esta questão não dão resposta nem a Lei 17/86 nem a Lei 96/01 (nem qualquer Lei posterior), sendo, por outro lado, de salientar, que a solução oposta ofende o princípio constitucional da protecção da confiança (art. 2° CRP) do credor hipotecário, que veria neutralizada a eficácia da sua hipoteca, por uma garantia até oculta ou por ele ignorada.
[...].». Como antes se disse [...], a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça assentou em regime extraído de normas do Código Civil a propósito das relações entre os privilégios e a hipoteca. Não tendo a decisão recorrida aplicado, como seu fundamento normativo, os artigos 12º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, nem o artigo 4º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, conclui-se que não pode dar-se como verificado, no caso em apreço, um dos pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a aplicação, no julgamento da causa, da norma que se pretende que este Tribunal aprecie, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhe foi dirigida. Assim, não podendo, pelos fundamentos expostos, dar-se como verificados os pressupostos de admissibilidade dos recursos, entende-se como plausível que o Tribunal Constitucional venha a proferir uma decisão de não conhecimento do respectivo objecto.”
7. Os recorrentes C. e outros vieram “reclamar para a conferência” do despacho da relatora, limitando-se a requerer que sobre tal despacho seja proferido acórdão (requerimento de fls. 751).
Por sua vez, os recorrentes B. e outros responderam através da reclamação de fls. 754 e seguintes, em que sustentam:
“[...]
4. [...] o Supremo Tribunal de Justiça ao proferir o acórdão em crise, considerando que a hipoteca deve prevalecer sobre os privilégios imobiliários gerais conferidos aos trabalhadores, está inexoravelmente a interpretar o art.
12° da Lei 17/86 e o art. 4° da Lei 96/2001.
5. É que foram estes os diplomas que vieram criar o privilégio imobiliário geral, sendo só a partir deles que se passou a colocar a relevância do cotejo entre ambos: a hipoteca e o privilégio imobiliário geral.
6. Assim, ao decidir-se que algum deles prevalece sobre o outro está-se a interpretar os referidos arts. 12° e 4° dos diplomas também citados.
7. É que, quando o Supremo Tribunal de Justiça afirma no acórdão em crise, quanto a saber-se qual das garantias prevalece sobre a outra, que «a esta questão não dão resposta nem a Lei 17/86 nem a Lei 96/01...» daqui não pode concluir-se que aquele Tribunal não está a interpretar aqueles diplomas.
[...]
9. Portanto, o Supremo Tribunal de Justiça ao considerar que as Leis 17/86 e
96/2001 são omissas quanto à graduação está, em sentido lato, a interpretar aquelas normas (arts. 12° e 4°), resultando, assim, que segundo a versão dos ora reclamantes, essa interpretação possa ser inconstitucional, donde resulta verificar-se o pressuposto da admissibilidade do recurso (alínea b) do n.° 1 do art. 70° da Lei do Tribunal Constitucional).
10. Acresce que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fundamentar esta decisão, remete para suas anteriores decisões, nomeadamente a de 27/06/02 publicada in CJ, X, 11, 146 de 2/09/02 da 6ª Secção.
11. E nesta última decisão, para onde remete o acórdão em crise, a norma do art.
751° do C.Civil foi tomada em consideração no julgamento da questão em causa: qual das garantias, hipoteca ou privilégio imobiliário geral, prevalece sobre a outra.
12. E os reclamantes suscitaram também a inconstitucionalidade desta norma, na interpretação dada, durante o processo, como resulta das conclusões das suas alegações de recurso (nomeadamente alínea Q).
13. Verifica-se, pois, a existência do pressuposto previsto na alínea b) do n.º
1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional [certamente por lapso, indica-se o artigo 20º], para que seja admitido o presente recurso.
[...].”
Notificados os recorridos das “reclamações” apresentadas pelos recorrentes, só a Caixa Geral de Depósitos, S.A. respondeu, pronunciando-se no sentido do indeferimento de tais reclamações, nos seguintes termos (fls. 774 e seguintes):
“[...] Quanto à reclamação dos recorrentes C. e outros: A falta de qualquer fundamentação expressa que pudesse suportar tal reclamação inviabiliza, em absoluto, qualquer resposta por parte da recorrida que se limitará, por isso, a aderir aos fundamentos do douto despacho que os mesmos pretendem pôr em crise. Quanto à reclamação dos recorrentes B. e outros: De acordo com o douto despacho em causa, a decisão do STJ não aplicou os artigos
12º, n.° 1 alínea b) da Lei 17/86 de 14/6 e 4° da Lei 96/2001 de 20/Agosto, normas cujo pedido de declaração de inconstitucionalidade era objecto do recurso para o Tribunal Constitucional. Contra tal entendimento se insurgem os reclamantes, considerando que o STJ, ao decidir que a hipoteca deve prevalecer sobre os privilégios imobiliários gerais conferidos aos trabalhadores está «inexoravelmente» a interpretar o art. 12º da Lei 17/86 e o art. 4º da Lei 96/2001.
[...] Todavia, decorre expressamente do acórdão recorrido que a decisão encontrada para graduar o crédito dos trabalhadores não fez uso das normas (artigos 12º, n.° 1 alínea b) da Lei 17/86 de 14/6 e 4° da Lei 96/2001 de 20/Agosto) cuja declaração de inconstitucionalidade se pretende. Com efeito, nesse acórdão se diz expressamente que a busca da solução legal para a graduação desses créditos não encontra qualquer resposta nem na Lei 17/96, nem na Lei 96/01. Por isso, o STJ não aplicou tais normas na graduação dos créditos dos recorrentes. Maior clareza não era possível! Assim, o douto aresto em crise, para graduar os créditos dos trabalhadores recorreu apenas ao disposto nos arts. 749º e 686º do C. Civil, valorizando, pois, não a natureza de «imobiliários» do privilégio fixado nos artigos 12º, n.º
1 alínea b) da Lei 17/86 de 14/6 e 4º da Lei 96/2001 de 20/Agosto, mas sim a natureza de «geral», em detrimento da solução oposta que valorizaria a característica de «imobiliário» desse privilégio, aplicando o regime constante do art. 751º do C Civil. Por conseguinte, o douto acórdão do STJ não fez, de facto, qualquer interpretação dos artigos 12º, n.° 1 alínea b) da Lei 17/86 de 14/6 e 4° da Lei
96/2001 de 20/Agosto. De acordo com o aí decidido e que, de facto, se afigura inequívoco, aqueles artigos limitam-se a atribuir um privilégio imobiliário geral aos créditos nele previstos e, como é óbvio, essa regulamentação é, constitucionalmente, neutra ou indiferente. Em vez disso, o que o douto acórdão do STJ decidiu foi interpretar os arts. 749º e 686º do C Civil considerando que a sua amplitude ou estatuição cobria a figura de todos e quaisquer privilégios ainda que imobiliários desde que gerais. Deste modo, em face da fundamentação do douto acórdão do STJ e atento o disposto no art. 70º, n.° 1 b) da Lei do Tribunal Constitucional, os recorrentes B. e outros apenas poderiam suscitar, perante este Tribunal, a inconstitucionalidade dos arts. 749º e 686º do C Civil, quando interpretados no sentido de o seu regime ser aplicável ao privilégio imobiliário geral concedido ao crédito dos trabalhadores. Só que nem os recorrentes suscitaram tal inconstitucionalidade, nem, à imagem do que ocorreu com o outro dos recursos interpostos, estaria, então, preenchido o pressuposto a que alude o art. 70º, n.° 1 b) da Lei do Tribunal Constitucional: a inconstitucionalidade dessa norma nunca fora suscitada na pendência do processo. E nem se diga, como o fazem os reclamantes, que o STJ «para fundamentar esta decisão, remete para as suas anteriores decisões, nomeadamente a de 27/06/02 publicada in C. Jurisp X, II, 146 de 2/09/02 da 6ª secção. E nesta última decisão... a norma do art. 751º foi tomada em consideração no julgamento da questão em causa: qual das garantias, hipoteca ou privilégio imobiliários geral prevalece sobre a outra». Por um lado, nesse acórdão de 27/6/2002, o STJ aplicou os arts. 749º e 646º do C Civil, como se conclui do parágrafo que antecede a parte decisória e que se cita: «Ao confronto entre privilégio imobiliário geral e hipoteca, seja qual seja a antiguidade relativa, deve, pois, ser aplicado, por analogia, o disposto no art. 749 C C». Além de que os reclamantes nem sequer suscitaram a inconstitucionalidade desse art. 751º, antes e apenas a inconstitucionalidade da interpretação feita aos arts. 12º, n.° 1, alínea b) da Lei 17/86 de 14/6 e 4° da Lei 96/2001 de
20/Agosto, «...quando conjugados com o artigo 751º do C Civil...».
[...].”
8. As respostas dos recorrentes não abalaram as razões invocadas no despacho da relatora.
O requerimento apresentado pelos recorrentes C. e outros, limitando-se a requerer que sobre tal despacho seja proferido acórdão, não aduz qualquer argumento que ponha em causa a fundamentação invocada para o não conhecimento do recurso quanto às normas indicadas no requerimento de interposição do recurso – as normas dos artigos 735º, n.º 3, 749º e 686º do Código Civil.
No requerimento apresentado pelos recorrentes B. e outros, pretende-se justificar que a decisão recorrida aplicou os artigos 12º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, e 4º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto.
Só que, como se demonstrou no despacho de fls. 731 e seguintes, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão aqui sob recurso, não aplicou tais normas.
Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça, ao discutir a questão de
“saber se os privilégios gerais conferidos a estes últimos prevalecem sobre a hipoteca de que aquela beneficia”, afirmou que “a esta questão não dão resposta nem a Lei 17/86 nem a Lei 96/01 (nem qualquer Lei posterior), sendo, por outro lado, de salientar, que a solução oposta ofende o princípio constitucional da protecção da confiança (art. 2° CRP) do credor hipotecário, que veria neutralizada a eficácia da sua hipoteca, por uma garantia até oculta ou por ele ignorada”.
O Supremo Tribunal de Justiça entendeu portanto – bem ou mal, não compete a este Tribunal apreciar – que a questão jurídica suscitada no processo não encontrava resposta na Lei n.º 17/86 nem na Lei n.º 96/2001, acrescentando ainda que a solução oposta (ou seja, a solução que consistisse em aplicar alguma das referidas leis) ofenderia o princípio constitucional da protecção da confiança consagrado no artigo 2° da Constituição, já que o credor hipotecário
“veria neutralizada a eficácia da sua hipoteca, por uma garantia até oculta ou por ele ignorada”.
Esta argumentação do acórdão recorrido não é todavia compatível com o recurso interposto no caso dos autos pelos recorrentes B. e outros, isto é, com o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
9. Nestes termos, e pelas razões constantes do despacho da relatora, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento dos recursos.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15
(quinze) unidades de conta, por cada um, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 20 de Outubro de 2004
Maria Helena Brito Artur Maurício Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos