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Processo nº 467/2003
3ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão da 8ª Vara Criminal de Lisboa, de 25 de Outubro de
2001, de fls. 174, A., ora recorrente, e B. foram condenados, cada um, “por um crime de abuso de poder p. e p. pelo artº 382º do Código Penal e por um crime de extorsão agravado p. e p. pelos artºs 223º, n.º 1 e 3, alínea a), com referência ao artº 204º, n.º 2, alínea f), do mesmo Código”.
Após diversas vicissitudes que agora não relevam, esta condenação veio a ser alterada relativamente à extorsão agravada, para condenação por crime de extorsão simples, pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Abril de 2002, de fls. 379. Assim, a primeira instância tinha condenado o recorrente, quanto ao crime de abuso de poder, na pena de 3 anos de prisão, e, quanto ao crime de extorsão agravada, na pena de 9 anos e 6 meses de prisão, condenando-o, em cúmulo jurídico, na pena única de 11 anos de prisão; o Tribunal da Relação de Lisboa alterou a condenação para 3 anos e 6 meses de prisão pelo crime de extorsão simples, previsto no artigo 223º, n.º 1, do Código Penal, para
1 ano e 6 meses de prisão pelo crime de abuso de poder, condenando-o, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão.
Novamente inconformado, A. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso que foi admitido pelo despacho de fls. 469.
Na vista do processo, já no Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público (cfr. parecer de fls. 497) pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade do recurso, em virtude de considerar aplicável o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, já que “a nenhum dos crimes pelos quais foram condenados na Relação ( 223º, n.º 1 e 382º do Código Penal) é aplicável pena de prisão superior a 5 anos”.
Notificado deste parecer, o recorrente veio sustentar, em síntese, que “no processo objecto de recurso para a Relação e em que foi proferido acórdão concedendo parcial provimento, a moldura penal prevista em abstracto era superior a cinco anos, não se enquadrando portanto na previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 400º do CPP” (a fls. 500).
Por acórdão de 12 de Fevereiro de 2003, constante de fls. 502 e seguintes, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso, por inadmissibilidade, aplicando a citada alínea e) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, por entender que “qualquer dos crimes por que os arguidos foram condenados tem uma moldura penal com pena de prisão que não excede os cincos anos, acontecendo até que, em cúmulo, a pena única não excedeu tal limite. Na verdade, contra o que defende um dos recorrentes, é o acórdão da Relação, e não o da primeira instância, que fixa o enquadramento jurídico e, por aí, a moldura penal das infracções”.
2. Notificado do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado, A.
“inconformado com o, aliás, douto Acórdão deste Venerando Tribunal, bem como, com o douto Acórdão da Relação de Lisboa que apenas concedeu parcial provimento”, veio “dos mesmos recorrer para o Venerando Tribunal Constitucional, nos termos do artº 75º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, e ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artº 70º do mesmo diploma”.
No seu requerimento de interposição de recurso, o recorrente disse o seguinte:
“1. Foram aplicadas normas em concurso, em termos, cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações, em conformidade com a alínea b) do n.º 1 do atrás referido artigo 70º.
2. Não é mais passível de recurso ordinário, nos termos do artigo 72º do diploma acima referido.
3. As normas violadas foram os artigos 382º do Código Penal e n.º 5 do artigo
29º da CRP, bem como o princípio fundamental da ordem jurídica portuguesa non bis in idem.
4. As peças processuais em que foi suscitada a inconstitucionalidade referida foram os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça e para o Tribunal da Relação por parte dos arguidos.”
Já neste Tribunal, a Relatora notificou o recorrente do seguinte despacho:
“Nos termos do disposto nos n.ºs 1, 2, 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, convida-se o recorrente A. a indicar, separadamente para cada uma das decisões de que recorre, quais as normas que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, quais as normas ou princípios constitucionais que considera violados e, referindo claramente o local, quais as peças processuais em que suscitou as inconstitucionalidades que quer ver apreciadas.”
Em resposta ao despacho que acaba de ser citado, veio o recorrente indicar o seguinte (cfr. fls. 524 e 525):
“1. A decisão de que recorre é a do Tribunal da Relação que confirmou a do Tribunal a quo, condenando o recorrente por dois crimes distintos, extorsão, p. e p. pelo artigo 223º, n.º 1, do C. P. e abuso de poder, p. e p. pelo artigo
382º do mesmo Código, acolhendo o entendimento de haver concurso real e não concurso aparente como defendem ambos os arguidos.
2. O arguido pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo
382º do C. P. P., com a interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, de os crimes de abuso de poder e extorsão se considerarem em concurso real, afastando o entendimento de aparentemente concorrerem por força da subsidiariedade expressa subjacente à última parte daquele normativo e de tais crimes se encontrarem numa relação de consumpção.
3. O recorrente considera haver violação do princípio non bis in idem por ter havido uma valoração dupla do mesmo facto, n.º 5 do artigo 29º C. R. P. e do n.º
1 do artigo 30º do C. P.
4. As peças processuais em que foram suscitadas as inconstitucionalidades foram respectivamente: a) Recurso do arguido A. dirigido ao Exmo. Sr. Dr. Juiz do tribunal Criminal do Círculo de Lisboa e julgado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º
1978/02. O recorrente, no ponto 26 dessa peça processual, refere expressamente, a linhas 25, que “constituirá uma dupla valoração do mesmo facto”; b) Recurso do arguido A. para o Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º
4202/02-3, decidido em conferência no sentido de não ser admissível recurso do acórdão proferido na Relação. Nesta peça processual o recorrente refere a matéria em causa, entre outros lugares, nos pontos 2 e 3 das conclusões; c) Recurso do arguido B. para o Tribunal da Relação de Lisboa no ponto II.A – Da Dupla Valoração de Factos, e pontos 13 a 23 da conclusões.”
3. Também recorreu para o Tribunal Constitucional, mas somente do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o outro arguido, B., em recurso separado (cfr. requerimento de interposição de recurso de fls. 511). Este recurso já foi, porém, julgado pela decisão sumária de fls. 518.
4. Notificadas para o efeito, as partes apresentarem as respectivas alegações, que o recorrente concluiu da seguinte forma:
“...
31. Deste modo, o acórdão do Tribunal da Relação, na parte que concerne à condenação dos arguidos pelo crime de abuso de poder, ao abrigo do artigo 382º do C. P., aplicou erradamente o direito, violando claramente os princípios legais do concurso de crimes/normas.
32. Deveria o Tribunal da Relação de Lisboa ter considerado unicamente aplicável o crime de extorsão, porque o tipo do crime de abuso de poderes expressamente afasta a sua aplicação quanto o acto punível for enquadrável em outra disposição criminal, cuja moldura penal seja mais grave do que a sua.
33. A dupla valoração criminal de factos idênticos e únicos está vedada pelo princípio non bis in idem e pelas próprias regras do concurso de crimes, concurso aparente de infracções, respectivamente previstos no n.º 5 do artigo 29 da Constituição da república Portuguesa e no artigo 30º, n.º 1, do Código Penal.”
O Ministério Público, por seu turno, concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
“1. A questão de constitucionalidade não foi adequada e tempestivamente suscitada, de modo a que o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, dela estivesse obrigado a conhecer, nos termos do artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, motivo pelo qual não deverá conhecer-se do objecto do recurso.
2. A não se entender assim, a existência de um concurso real de infracções entre o crime de extorsão do artigo 223º, n.º 1, e o crime de abuso de poderes do artigo 382º, ambos do Código Penal, que protegem bens jurídicos diversos, não se traduz na aplicação da norma do artigo 30º, n.º 1, do mesmo compêndio, numa dimensão violadora da Constituição.
3. Com efeito, o princípio constitucional do ne bis in idem não é atingido com uma dupla penalização, no caso de se verificar um concurso real de infracções, que tutelam bens jurídicos diferentes.
4. Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Notificado o recorrente nos termos do disposto no artigo 704º, n.º 2, do Código de Processo Civil, para responder à questão da inadmissibilidade do recurso, suscitada pelo Ministério Público nas suas alegações, este veio fazê-lo conforme consta de fls. 557 a 559. Afirma aí o recorrente ser “inegável que embora em língua portuguesa e não em latim, a dita peça processual [as motivações do recorrente no âmbito do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa] diz explicitamente que há um princípio fundamental da ordem jurídica portuguesa em causa, ou seja, o princípio ne bis in idem.”
5. Como se viu, nas suas alegações, o Ministério Público suscitou a questão do não conhecimento do recurso, pois, no seu entender, “ainda que referindo a existência de uma ‘valoração dupla do mesmo facto’, o recorrente fá-lo numa perspectiva crítica à decisão da primeira instância, à luz do direito infra-constitucional aplicável, não referindo qualquer norma ou princípio constitucional violados”.
No ponto 26 das motivações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente afirma, com efeito, “que os dois tipos de crime, pelos quais o arguido vem condenado, têm elementos semelhantes e comuns como anteriormente já se disse e comprovou. Considerar a relevância do aspecto patrimonial do enriquecimento ilegítimo ou do prejuízo para o ofendido, elementos estes importantes e básicos para a tipificação dos dois crimes, constituirá uma valoração dupla do mesmo facto” (cfr. fls. 275). E nas conclusões da mesma peça processual, o recorrente afirma existir “notoriamente uma relação de consumpção, devendo o arguido ser punido somente pelo crime mais grave, pelo que tem maior conteúdo de ilícito e censurabilidade, ou seja (crime de extorsão)” (cfr. fls. 278).
Posteriormente, nas conclusões 2ª e 3ª da motivação do recurso interposto perante o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente faz nova alusão ao princípio ne bis in idem. Ora a verdade é que, mesmo que se pudesse considerar que tal referência seria equivalente a suscitar a inconstitucionalidade que o recorrente pretende ver apreciada, não poderia ser considerada, porque foi julgado inadmissível o recurso interposto para aquele Supremo Tribunal.
6. É pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo” (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), ou seja, colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Não é, manifestamente, o caso dos autos. Ora a verdade é que, contrariamente ao que sustenta, o recorrente não suscitou a questão de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada neste processo nos termos exigidos como condição de apreciação do recurso. Com efeito, não é possível encontrar na motivação do recurso apresentada perante o Tribunal da Relação de Lisboa, seja no ponto 26, seja em qualquer outra passagem, a alegação da inconstitucionalidade que o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
Assim, decide-se não tomar conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs.
Lisboa, 5 de Maio de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida