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Processo n.º 792/03
3ª Secção Relatora: Conselheiro Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., impugnou judicialmente o acto de liquidação e cobrança da taxa urbanística, no valor de Esc. 138.683.475$00, efectuado em 20 de Abril de
1998 pela Câmara Municipal do Porto.
Por sentença do 3º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto de 21 de Maio de 2001, de fls. 166 e seguintes, a impugnação foi julgada improcedente com fundamento na “inimpugnabilidade judicial do acto de liquidação
– por não haver a impugnante esgotados os meios de reacção perante os órgãos executivos autárquicos”, nos termos do disposto no artigo 22º, n.º 2, da Lei n.º
1/87, de 6 de Janeiro.
Inconformada, a impugnante interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, o qual, por acórdão de 8 de Maio de 2002, de fls. 212 e 213, negou provimento ao recurso.
A impugnante recorreu, então, para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, invocando oposição entre o decidido e acórdão de 20 de Dezembro de 2000, proferido no recurso n.º 24.167
(fls. 221 e 229). Verificada a oposição, o Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 24 de Setembro de 2003, de fls. 330 e seguintes, concedeu provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, nos seguintes termos:
“Para que seja admissível recurso para o Pleno por oposição de acórdãos torna-se necessário que os arestos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação, que respeitem à mesma questão fundamental de direito e que perfilhem soluções opostas (artigo 30º alínea b) do ETAF).
A questão fundamental de direito aqui em causa que os acórdãos decidiram de modo oposto reporta-se à necessidade ou não de reclamação para o
órgãos executivo da autarquia como condição prévia para a interposição de recurso. Não acompanhamos por isso o parecer do Ministério Público no sentido de não ocorrer oposição. Sendo as taxas de urbanização em causa liquidadas em 1997
(a do acórdão fundamento) e 1998 ( a do acórdão recorrido) estava em vigor em ambos os casos a Lei 1/87 de 6 de Janeiro e o DL 448/91 com as redacções que lhe foram dadas pelo DL 334/95 de 28 de Dezembro e Lei 26/96 de 1 de Agosto.(...).
O Decreto-Lei n.º 448/91 não revogou a Lei n.º 1/87. Ambos vigoraram simultaneamente já que este segundo se reportava apenas às taxas que expressamente referia mantendo-se aquela lei aplicável para todas as demais. Ora, nas situações aqui em confronto estava em causa a mesma taxa cobrada pela realização de infra-estruturas urbanísticas na sequência de alvará de loteamento. Tal taxa vem expressamente prevista no artigo 32º, n.º 1, alínea a), do DL 448/91 com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 334/95 e Lei
26/96. Tal diploma é, por isso, especial em relação à Lei 1/87 no que a estas taxas se refere, prevendo o n.º 6 do referido artigo 32º, na redacção do DL
334/95, a imediata impugnabilidade de tais taxas. Não pode pois, pelo que fica dito, manter-se o acórdão recorrido que não tomou em consideração tal legislação aplicável, não obstante a mesma ter sido expressamente invocada.”
2. Veio então a Câmara Municipal do Porto recorrer para o Tribunal Constitucional, “com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da eventual inconstitucionalidade do n.º 4 do artigo 32º do DL 448/91, de 29/11, com a redacção introduzida pelo DL 334/95, de
28/11 e ratificado pela Lei 26/96, de 1 de Agosto” e invocando a violação “do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição da República Portuguesa, do disposto no n.º 2 do art. 115º (actual 112º) e n.º 2 do art. 168º
(actual artigo 165º) da C.R.P., na redacção introduzida pelas RC/82 e 89; e ainda na violação do disposto na alínea q) do art. 168º (actual art. 165º) da C.R.P., por violação da lei de autorização legislativa, na redacção das RC de 82 e 89”.
Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações, que a Câmara Municipal do Porto concluiu do seguinte modo:
“1. É jurisprudência pacífica do Tribunal recorrido e do Tribunal Constitucional que no domínio da Lei 1/87, de 6/01, a impugnação de taxas cobradas pelas autarquias locais dependia de prévia e necessária reclamação graciosa para os respectivos órgãos executivos, sendo que este regime legal vigorou até ao dia 1 de Janeiro de 1999, altura em que entrou em vigor o artigo 30º da Lei 42/98, de
6/08 (...).
2. Nem o Código de Processo Tributário, nem o n.º 6 (actual n.º 4) do art. 32º do DL 448/91, de 29711, expressa ou tacitamente revogaram o regime especial da prévia e necessária reclamação graciosa no âmbito da liquidação de taxas autárquicas.
3. Outra interpretação das referidas normas, como delas fez, salvo o devido respeito, o Acórdão recorrido, revela-se desde logo inconstitucional por violação do princípio da igualdade (art. 13º da CRP).
4. Não parece admissível nem justo, à luz do referido princípio, que alguns munícipes, no domínio da vigência da Lei 1/87, de 6/01, tenham o ónus de reclamar graciosamente perante os órgãos executivos das autarquias locais para puderem impugnar os tributos que lhes são liquidados por aquelas entidades (por exemplo taxas de ocupação da via pública).
5. E outros munícipes, apenas porque se encontram no âmbito de um processo de loteamento, possam, perante a mesma entidade, das liquidações, recorrer imediata e directamente para os Tribunais Tributários de 1ª Instância.
6. A admissão de tal situação na lei, constitui discriminação a favor dos segundos em prejuízo dos primeiros.
7. A interpretação do Tribunal recorrido viola ainda a lei de autorização legislativa (n.º 2 do art. 115º e n.º 2 do art. 168º da CRP, na redacção introduzida pela RC 82 e 89 – actuais n.ºs 2 dos arts. 112º e 165º da CRP), sendo certo que a redacção do n.º 6 do art. 32º do DL 448/91, de 29/11, foi introduzida pelo DL 334/95, de 28/12, no uso de autorização legislativa concedida pela Lei 90/95, de 1/09.
8. Ora, esta lei, que autorizou o Governo a legislar sobre o regime jurídico das operações de loteamento, não previu qualquer alteração ao n.º 2 do art. 22º da Lei 1/87, de 610, pelo que, aceitando um regime especial diferente, haveria inconstitucionalidade formal por violação de lei de autorização legislativa.
9. Finalmente, a interpretação do Tribunal recorrido padece de inconstitucionalidade orgânica por violação da reserva relativa de competência legislativa da assembleia da República em matéria de regime das finanças locais
(alínea q) do n.º 1 do art. 168º da CRP, na redacção introduzida pela RC 82 e 89
– actual art. 165º).
10. Sendo, como cremos que é, o Regime das Finanças Locais, pressupostos normativo e lei que deve ser respeitada em matéria de tributos locais pelos restantes regimes jurídicos, designadamente o regime jurídico dos loteamentos
(art. 112º, n.º 3, da CRP).”
A recorrida apresentou igualmente alegações, concluindo que “a norma do n.º 4 do art. 32º do Decreto-Lei n.º 448/91, na redacção introduzida pela Lei n.º 26/96, de 1 de Agosto, – norma aplicada no Acórdão recorrido – não sofre de inconstitucionalidade, material, formal ou orgânica, não merecendo, por isso, censura o mesmo douto acórdão recorrido.”
3. Cabe começar por fixar o respectivo objecto. No final das suas alegações, a recorrente diz pretender de que este Tribunal se pronuncie “pela inconstitucionalidade do n.º 6 do art. 32º do DL 448/91, de 29/11, introduzido pelo DL 334/95, de 28/12 (alterado para n.º 4 com a Lei 26/96, de 1/08)”. Todavia, no requerimento de interposição de recurso, a norma cuja inconstitucionalidade é suscitada é – correctamente, por ser a versão em vigor à data da liquidação, como expressamente se observa no acórdão recorrido – identificada como sendo a do “n.º 4 do art.32º do DL 448/91, de 29/11, com a redacção introduzida pelo DL 334/95, de 28/12, e ratificado pela Lei 26/96, de
1/08”.
Note-se, aliás, que o texto foi mantido pela Lei n.º 26/96.
É o seguinte o referido texto da norma do n.º 4 do artigo 32º citado:
Artigo 32º Taxas
(...)
4 – Da liquidação das taxas cabe recurso para os tribunais tributários de 1ª instância, nos termos e com os efeitos previstos no Código de Processo Tributário.
A recorrente entende que a norma em causa, nos termos em que foi interpretada e aplicada pelo acórdão recorrido, no sentido de admitir a imediata e directa recorribilidade contenciosa do acto de liquidação de taxas em processos de loteamento, sofre de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 13º da Constituição, de inconstitucionalidade formal, por violação dos artigos 115º, n.º 2 (actual artigo 112º, n.º 2) e 168º, n.º 2, (actual artigo
165º, n.º 2) e ainda de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea q) (actual artigo 165º, n.º 1, alínea q)), todos da Constituição.
Acrescentou ainda, nas alegações apresentadas no presente recurso, que a mesma norma viola o “Regime de Finanças Locais, pressuposto normativo e Lei que deve ser respeitada em matéria de tributos locais pelos restantes regimes jurídicos, designadamente o Regime Jurídico dos Loteamentos (art. 112º, n.º 3 da C.R.P)”.
4. Cumpre, antes do mais, observar que não podem ser consideradas no
âmbito do presente recurso, interposto, não ao abrigo do disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, mas ao abrigo do disposto na alínea b) do mesmo nº 1, dois dos vícios que a recorrente atribui à norma que constitui o seu objecto.
Em primeiro lugar, o vício que identifica como uma inconstitucionalidade formal, consistente no facto de a Lei n.º 90/95, ao abrigo da qual foi emitido o Decreto-Lei n.º 334/95, não prever qualquer alteração ao regime do artigo 22º da Lei n.º 1/87, pelo que a norma impugnada violaria o disposto nos artigos 112º, n.º 2, e 165º, n.º 2, da Constituição. Segundo a própria recorrente, o vício de inconstitucionalidade formal assim identificado consistiria na violação da lei de autorização legislativa. Importa aqui esclarecer, antes de mais, se com este vício a recorrente tem em mente uma questão de legalidade ou uma questão de constitucionalidade. É que a violação da lei de autorização não configuraria em caso algum um caso de inconstitucionalidade formal, como pretende a recorrente; poder-se-ia colocar a questão de saber se o vício poderia ser antes qualificado como um vício de ilegalidade; mas, nesse caso, a ilegalidade não poderia ser conhecida neste recurso.
Com efeito, como se afirmou no Acórdão n.º 249/02 (publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Julho de 2002),
“o recurso de constitucionalidade, que tem por fundamento uma violação da Constituição, não pode ser considerado, simultaneamente, um recurso de legalidade como o previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento na violação de leis de valor reforçado. Ora, tendo sido interposto apenas um recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a questão da desconformidade entre um decreto-lei e a respectiva lei de autorização legislativa não poderia ser apreciada e decidida por este Tribunal por violação de lei de valor reforçado, enquanto esta tem como resultado uma ilegalidade. Apenas se poderá apreciar a inconstitucionalidade resultante da invasão da área de competência reservada da Assembleia da República por um diploma (não autorizado) do Governo, por faltar credencial parlamentar para intervir numa esfera de competência reservada, ou, em alguns casos, resultante do desrespeito pela lei de autorização legislativa.”
Do mesmo modo, no caso dos autos, em que estamos igualmente perante um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, o pretenso de vício de inconstitucionalidade formal invocado pela recorrente não se distingue, pelas razões apontadas, de um vício de inconstitucionalidade orgânica, isto é, da questão de saber se o Governo, através do Decreto-Lei n.º
334/95, invadiu uma esfera de competência legislativa reservada à Assembleia da República.
Em segundo lugar, também não pode ser apreciada a alegada violação do “Regime das Finanças Locais”, nos termos colocados pela recorrente, já que igualmente se traduziria na apreciação de uma questão de eventual ilegalidade, por violação de lei com valor reforçado.
5. Há, pois, que apreciar a alegação de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, e de inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Relativamente à inconstitucionalidade material, o Tribunal entende que se não pode considerar que a norma impugnada viole o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. Para a recorrente, tal violação resultaria de tal norma permitir que alguns particulares, “apenas porque se encontram no âmbito de um processo de loteamento”, possam “recorrer imediata e directamente para os Tribunais Tributários de 1ª Instância” das liquidações das taxas correspondentes enquanto os demais, que igualmente pretendam reagir contra actos de liquidações por outras taxas devidas à mesma entidade têm “o ónus de reclamar graciosamente perante os órgãos executivos das autarquias locais”. Ora, tal afirmação está longe de ser suficiente para demonstrar que o legislador, ao regular em especial as taxas municipais cobradas no âmbito do processo de loteamento – e em particular as taxas por infra-estruturas urbanísticas, como é a que agora releva – esteja impedido de pretender “reforçar as garantias dos particulares” (artigo 2º, nº 1, da Lei nº 90/95, de 1 de Setembro, ao definir sentido da autorização legislativa) através da dispensa da reclamação graciosa prévia à interposição de recurso contencioso. Assim como também não demonstra que, a ocorrer inconstitucionalidade por violação daquele princípio, seria na norma agora em causa e não na que consta do artigo 22º da Lei nº 1/87, que a recorrente apresenta como menos favorável aos particulares. Como se escreveu, por exemplo, no Acórdão n.º 200/2001 (Diário da República, II série, de 27 de Junho de 2001),
«10. É sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções. Proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta, aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf., por exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e
683/99, publicados, nos ATC, respectivamente, vol. 11º, pp. 233 e ss.,vol. 23º, pp. 369 e ss., vol. 24º, pp. 549 e ss., vol. 36º, pp. 793 e ss., e no DR, II Série, de 25 de Março de 1999, e de 3 de Fevereiro de 2000). Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante. Ao impor ao legislador que trate de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual, esse princípio supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade, e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder considerar tal justificação para a distinção como razoável, constitucionalmente relevante. O princípio da igualdade apresenta-se, assim, como um limite à liberdade de conformação do legislador. Como se salientou no Acórdão n.º 425/87 (ATC, vol.
10º, pp. 451 e ss.),
“O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange diversas dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 2ª ed., Coimbra, 1984, pp. 149 e segs.). A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo do controlo. Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada. Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria.”
Ora, sabido como é que as taxas podem ter contrapartidas de diferente natureza
(cfr. n.º 2 do artigo 4º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º
398/98, de 17 de Dezembro), mesmo quando essa contrapartida se traduz na prestação de um “serviço público”, nada se encontra que impeça o legislador de fazer distinções relativamente aos pressupostos de acesso ao tribunal pelos particulares que queiram impugnar os actos de liquidação correspondentes. Desde logo, basta pensar, por exemplo, nos valores especialmente elevados que as taxas por realização de infra-estruturas urbanísticas, como é o caso, podem alcançar, para aceitar que o legislador tenha em conta que a celeridade processual do regime da respectiva impugnação pode apresentar-se como crítica para os particulares interessados.
6. A recorrente sustenta por último que a norma impugnada, na interpretação do acórdão recorrido, padece do vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de regime das finanças locais (alínea q) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, actual alínea q) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição).
O simples modo como a recorrente identifica a norma objecto do recurso, isto é, a norma do “n.º 6 do artigo 32º do Decreto-Lei n.º 448/91, de
29 de Novembro, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28 de Dezembro
(alterado para n.º 4 com a Lei n.º 26/96, de 1 de Agosto)” permite desde logo concluir pela inexistência de qualquer vício de inconstitucionalidade orgânica que eventualmente se pudesse configurar. De facto, se a norma impugnada foi expressamente assumida pela Lei n.º 26/96, de
1 de Agosto, verificando-se assim uma novação da respectiva fonte, mesmo independentemente da questão de saber se a conformação constitucional do instituto da ratificação, após a revisão de 1982, permite afirmar que a lei de ratificação tem como efeito, genericamente, inviabilizar que, para o futuro possa ser invocada a eventual inconstitucionalidade orgânica de qualquer das suas normas (cfr., a propósito, o Acórdão n.º 415/89, in Acórdãos do tribunal Constitucional, 13º vol., tomo I, págs. 507 e seguintes). Como se escreveu no Acórdão n.º 368/2002 (Diário da República, II série, de 25 de Outubro de 2002),
«O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre os efeitos da aprovação de uma lei de emendas, naquele quadro, ou seja, no quadro jurídico-constitucional anterior às alterações introduzidas pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro que determinaram a actual redacção do actual artigo 169º da CRP.
Fê-lo nos Acórdãos nºs 415/89 e 786/96 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 13º vol., tomo I, pág. 507 e 34º vol., pág. 23, respectivamente.
No primeiro, depois de se citar as diversas doutrinas defendidas sobre o estatuto da ratificação de decretos-leis (na versão originária da Constituição) na perspectiva do efeito da ratificação expressa de decretos-leis organicamente inconstitucionais por invasão governamental das matérias de exclusiva competência da Assembleia da República (Rui Machete, “Ratificação de decretos-leis organicamente inconstitucionais” in Estudos sobre a Constituição, vol. I, pp. 281 e segs, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 1980, pp. 347/348, Jorge Miranda, “A ratificação no direito constitucional português” in Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 547 e segs., Luís Nunes de Almeida, “O problema da ratificação parlamentar de decretos-leis organicamente inconstitucionais” in Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 619 e segs.), bem como a jurisprudência produzida quer pela Comissão Constitucional (Parecer nº 7/79, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7º, p. 308) quer pelo Tribunal Constitucional (Acórdãos nºs
174/87 e 266/87 in Diário da República II Série, de 14 de Julho de 1987 e I Série, de 28 de Agosto de 1987, respectivamente) e de referidas as profundas alterações introduzidas nos artigos 172º e 165º alínea c) da Constituição, com a revisão constitucional de 1982 – designadamente o facto de ter deixado de existir um acto positivo de ratificação, pois apenas se passou a prever a recusa de ratificação e a alteração do decreto-lei – dando lugar a uma orientação doutrinal dominante no sentido da não convalidação de decretos-leis organicamente inconstitucionais (Gomes Canotilho “Direito Constitucional”, 4ª ed. p. 654, Jorge Miranda “Funções, Órgãos e Actos do Estado”, pp. 231 /232, António Nadais, António Vitorino e Vitalino Canas “Constituição da República Portuguesa”, p. 203, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. p. 222 e Jorge Simão “Da ratificação dos Decretos-Leis”, p. 32), escreveu-se:
“Não se afigura indispensável para a solução do caso dos autos resolver expressamente questões como a de saber se, face ao texto constitucional saído da revisão de 1982, ainda se pode falar de ratificação expressa, ou, até, se no caso de ser aprovada uma lei de alteração ao decreto-lei ratificando, tal lei tem como efeito, genericamente, inviabilizar que, para o futuro possa ser invocada a eventual inconstitucionalidade orgânica de qualquer das suas normas. Na verdade, ainda que se admita que a figura da ratificação expressa deixou de ter assento constitucional – como parece resultar do que se escreveu no citado Acórdão nº 266/87 – e que a mera aprovação de uma lei de alterações, na sequência de um processo desencadeado ao abrigo do artigo 172º da Constituição, não pode ter como efeito impedir a invocação, a partir da entrada em vigor dessa lei, de eventuais inconstitucionalidades orgânicas que afectassem originariamente normas do decreto-lei ratificando, a questão não fica inteiramente resolvida para todos os casos.”» Com efeito, sempre será necessário ressalvar, pelo menos, a hipótese de a lei de alterações reproduzir as normas organicamente inconstitucionais do decreto-lei submetido à sua apreciação. Em tal caso, é inegável que a Assembleia da República assume ou adopta tais normas como suas ao mantê-las inalteradas de forma expressa e inequívoca. E, assim sendo, tais normas não podem mais ser arguidas de organicamente inconstitucionais, até porque se verifica, quanto a elas, uma novação da respectiva fonte.
7. Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão de constitucionalidade
Lisboa, 5 de Maio de 2004 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão
Bravo Serra Luís Nunes de Almeida