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Processo nº 424/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam, em conferência na 1ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. A. e mulher B., notificados da decisão sumária de fls. 337/345, vêm reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, nº 3 da LTC, apresentando a seguinte fundamentação:
“(...)
1 – Os autores, ora reclamantes, na acção intentada no Tribunal da Comarca de Tondela, invocaram como causa pedir “a ocupação do seu prédio pela ré com um poste e linhas eléctricas”.
2 – Foi esta a interpretação do sr. Juiz do Tribunal da Comarca, como se alcança a fls. 182 [apreciação ponto 7.2.].
3 – E foi essa a questão que o Tribunal da Comarca de Tondela decidiu: a de saber se a ré tinha “direito a tal ocupação” [ponto 7. 4., in fine] e, em caso afirmativo, se “os autores tinham direito a ser ressarcidos, com fundamento nos artºs. 17º al. d) do Dec. Lei nº 99/91, de 02.03 e artº 37º do Dec-Lei nº
43.335, de 19.11.60.
4 – E, mais desenvolvidamente, decidiu o Mº juiz, que a presente acção se insere no “âmbito da defesa da propriedade, configurando-se pela causa de pedir e pedido como uma acção de indemnização baseada na lesão do direito de propriedade” e que “tal lesão, na perspectiva dos autores, decorre da ocupação ilícita do seu terreno (incluindo o espaço aéreo) pela ré, mediante a implantação de um poste e linha de média tensão. E não há dúvidas que essa ocupação se verificou, atenta a matéria de facto provada e a própria posição da ré.
5 – A causa de pedir nunca foi “a demora na remoção”.
6 – Esta interpretação é da responsabilidade do acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Coimbra nos pontos 4. e 5.
7 – Os recorrentes – já o afirmaram inúmeras vezes, não só para o Tribunal recorrido como nas alegações para este Venerado Tribunal – o que puseram em causa foi a ocupação do seu prédio, que a C. não expropriou, mas também não pagou qualquer indemnização.
8 .- E foi por via da interpretação dada no ponto 4 do acórdão pelo Tribunal da Relação que foi arguida a nulidade prevista no artº 668º nº 1 al. d) do CPC.
9 – Repete-se: os autores pediram a indemnização pela ocupação do seu prédio.
10 – Deste modo, a questão última a dilucidar por V. Exas., como se espera – á a de saber se a C., enquanto entidade concessionária, está legitimada a confiscar o prédio dos recorrentes.
11 – Quanto à questão do artº 44º do Dec. Lei nº 43.335, de 19-11, ela surge, exactamente, porque o acórdão recorrido parte do pressuposto, errado, de que os autores intentaram a acção com fundamento na “demora” o que não é verdade, como subjectivamente emana do processo.
12 – Assim, estando em causa a “ocupação”, entendeu o Tribunal recorrido que regia o artº 26º nº 4, como expressamente consta do ponto 5. do acórdão, [fls.
10] ao teorizar sobre a necessidade das autorizações devidas.
13 – E só agora é que a questão da inconstitucionalidade do artº 26º, nº 4, podia ser suscitada, assim se verificando o pressuposto do recurso.
14 – Por último refira-se que as autorizações que a lei prevê, são também (artº
16º, nº 3 do RLIL) as dos proprietários, como não podia deixar de ser.
(...)”
A esta reclamação respondeu a recorrida, pugnando pela confirmação da decisão sumária.
É a seguinte a fundamentação constante da decisão aqui reclamada:
“(...)
2. Decorre do exame preliminar do recurso o não preenchimento dos respectivos pressupostos de admissão, por a norma indicada como objecto não ter sido a que funcionou como ratio decidendi, e, também, por a questão de inconstitucionalidade não ter sido colocada em momento processualmente adequado. Daí a prolação da presente decisão sumária, nos termos do artigo 78º-A, nº 1 da LTC.
2.1. Com efeito – e tratamos agora do primeiro óbice ao conhecimento do recurso
– identificam os recorrentes como questão de inconstitucionalidade normativa, e, consequentemente, como norma objecto do recurso, o disposto no nº 4 do artigo
26º do DL nº 446/76, de 5 de Junho, quando interpretado com o sentido constante da decisão recorrida. Porém, se da leitura do Acórdão da Relação de Coimbra de fls. 267/272 vº, já resultava claro que esse artigo 26º não tinha determinado o sentido da decisão recorrida, isso tornou-se indiscutível com os esclarecimentos prestados no Acórdão de aclaração de fls. 288/289, onde o Tribunal a quo teve o cuidado de indicar, expressamente, que a referência ao artigo 26º, nº 4 do DL nº 446/76, tinha que ver com uma situação hipotética que não era a que se configurava neste processo (v. número 4 do Acórdão de aclaração a fls. 288 vº.). O sentido que se colhe da decisão recorrida assenta no pressuposto de estar em causa a construção de um novo edifício, numa fase posterior à constituição da servidão, e tem como referencial normativo o corpo do artigo 44º do DL nº 43
335, de 19 de Novembro de 1960, do qual o Tribunal extrai a exclusão da obrigação de indemnizar por parte do concessionário da distribuição de energia eléctrica Lê-se, com efeito, no Acórdão recorrido: ”Podemos então concluir que, constituída por via legal a servidão administrativa que permite a um concessionário de produção e distribuição de energia eléctrica instalar linhas de alta tensão e respectivos apoios em terreno alheio, não goza o respectivo proprietário do direito a qualquer indemnização (...). Se (...) pretender construir um novo edifício, o direito a tal exigência [refere-se ao afastamento ou substituição dos apoios das linhas] fica condicionado a uma indemnização do proprietário à concessionária, nos termos do artigo 44º do DL nº 43 335”. A referência ao artigo 26º, nº 4 do DL 446/76, aparece na decisão recorrida
(como o tribunal a quo explicou no Acórdão de aclaração) ilustrando (elencando) possibilidades distintas da configurada neste processo, e enquanto recurso argumentativo de demonstração de que a norma aplicável a esta situação é distinta daquela. A aceitar-se o prosseguimento do recurso, relativamente à norma indicada pelos recorrentes, estaria o Tribunal Constitucional a originar um verdadeiro moot case, em que a decisão, mesmo que viesse a apontar no sentido propugnado pelos recorrentes, não teria qualquer efeito prático, já que dela sempre subsistiria a verdadeira ratio decidendi, consistente no entendimento segundo o qual o corpo do artigo 44º do DL nº 43 335 (e não o artigo 26º, nº 4 do DL nº 446/76) exclui qualquer indemnização por parte do concessionário, nos casos de construção ex novo de edifício, quando a servidão se constituiu anteriormente. Como se referiu, recentemente, no Acórdão nº 564/03 deste Tribunal (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“No processo argumentativo de uma decisão judicial importa distinguir entre o que é directamente determinante dessa decisão e o que, não obstante constar dela, não apresenta esse carácter. No primeiro caso estamos perante a ratio decidendi, no segundo perante um obter dictum, sendo que este – o dictum – não tem a especial cobertura conferida aos pronunciamentos judiciais, não formando caso julgado (v. João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa, 1968, pág. 203), nem legitimando (...) um recurso de constitucionalidade”.
2.2. Para além deste aspecto, como se disse anteriormente, ao recurso sempre faltaria o pressuposto da suscitação da questão de inconstitucionalidade previamente à decisão recorrida. A este respeito convém sublinhar que a suscitação “durante o processo”, de que fala o artigo 280º, nº 1, alínea b) da Constituição (e o artigo 70º, nº 1, alínea b) da LTC), equivale a uma invocação anterior à decisão recorrida, conforme constitui jurisprudência pacífica e uniforme deste Tribunal (v., por todos, o Acórdão nº 19/95; disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Neste recurso a suscitação aparece, apenas, posteriormente ao Acórdão de que se pretende recorrer, na reclamação por nulidade do mesmo (e posteriormente ao próprio pedido de aclaração da decisão recorrida), momento este consabidamente inidóneo para tal suscitação. Com efeito, há que ter em conta que a decisão recorrida, tendo adoptado a interpretação expressa nas alegações de recurso da aí recorrente (aqui recorrida), como decorre do teor das conclusões 15ª e 38ª destas, respectivamente a fls. 222 e 224, limitou-se a decidir com base numa norma (o corpo do artigo 44º do DL 43 335) e interpretação, que, pelo menos desde então, foi previsível para os aqui recorrentes. Estes, porém, responderam a tais alegações, como decorre de fls. 241/250, sem cuidarem de configurar qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, designadamente a do artigo
44º, quando interpretado no sentido de excluir a indemnização pelo concessionário no caso de construção de um novo edifício.
(...)”
2. Decidindo a reclamação, sublinha-se que a mesma não contém quaisquer elementos novos, relativamente às questões tratadas na decisão sumária, que coloquem minimamente em causa o sentido desta, a saber: a) que a norma indicada pelos recorrentes (o artigo 26º, nº 4 do DL nº 446/76 de 5 de Junho) não foi a que funcionou como ratio decidendi no Acórdão recorrido; b) que a questão de constitucionalidade foi tardiamente suscitada.
2. 1. Quanto ao primeiro aspecto, sendo evidente que o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu - em sentido diverso do pretendido pelos recorrentes - em função da interpretação que realizou do artigo 44º do DL nº 43.335, de
19/11/1960 (como aliás, o reafirmou expressamente no Acórdão de aclaração de fls. 277/278), não pode este Tribunal produzir uma decisão relevante para a lide se apreciar (como pretendem os recorrentes) a constitucionalidade do artigo 26º, nº 4 do DL nº 446/76.
Reportando-se o recurso à norma objecto indicada pelos recorrentes é necessário, para que desta possa o Tribunal Constitucional conhecer, que se trate da norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida. A não ser assim, o pronunciamento deste Tribunal apresentar-se-ia despido de efeito prático, pois da decisão apreciada sempre subsistirá o que processualmente resultou da aplicação de uma norma distinta da invocada pelos recorrentes.
A reclamação assenta, a este respeito, numa confusão quanto ao objecto do controlo normativo de constitucionalidade. Trata-se este, com efeito, de um controlo reportado a normas na sua relação com regras ou princípios constitucionais e não referido às próprias decisões recorridas, como os recorrentes parecem sugerir nos números 10 e 11 da respectiva reclamação. O Tribunal Constitucional nunca poderia – porque essa não é a sua função – decidir se o Acórdão recorrido, ao considerar aplicável ao caso o artigo 44º do DL nº
43.335 (e não o artigo 26º, nº 4 do DL nº 446/76), partiu, como afirmam os recorrentes, de um pressuposto errado quanto ao fim visado pela presente acção.
2.2. Para além disto, como se referiu na decisão sumária, a eventual suscitação da questão de inconstitucionalidade, que só apareceu posteriormente à decisão recorrida, tem de ser considerada tardia. É que o Acórdão recorrido aderiu ao ponto de vista de uma das partes (o da C., expresso nas alegações de fls.
211/225; cfr. conclusão 15ª a fls. 222) e, sendo certo que os recorrentes dispuseram de oportunidade processual para objectar a esse entendimento (as alegações de fls. 241/250), era-lhes exigível, desde logo, que configurassem como questão de inconstitucionalidade normativa a aplicação do artigo 44º do DL nº 43.335. Note-se, aliás, que o Tribunal recorrido se limitou, relativamente a esta norma, a aplicá-la com o seu sentido linguístico evidente: exclusão da indemnização ao proprietário no caso de construção de um novo edifício.
3. Assim, pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.
Custas pelos recorrentes/reclamantes, fixando-se a Taxa de Justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Julho de 2004
Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Luís Nunes de Almeida