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Proc. n.º 829/03
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. intentou, em 17 de Março de 2003, junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, processo de intimação judicial contra a Câmara Municipal de Setúbal, pretendendo obter o despacho de aprovação de um projecto de arquitectura respeitante à construção de uma moradia.
Alegou, entre o mais (cfr. fls. 6 e 7), que o Decreto-Lei n.º
204/2002, de 1 de Outubro, embora prolongando validamente os prazos para a elaboração dos planos de ordenamento e respectivos regulamentos das áreas protegidas, cuja classificação se encontrava ainda em vigor à data da sua publicação, não podia repor uma classificação como área protegida já caducada ex lege, como é o caso do Parque Natural da Arrábida (PNA), sobretudo tendo em conta que a classificação das áreas protegidas está sujeita a tramitação legal, prevista nos artigos 13º e seguintes do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro; entendimento diverso violaria o disposto no artigo 12º, n.º 1, do Código Civil e nos artigos 18º, n.º 3, e 65º, n.ºs 4 e 5, da Constituição.
Na resposta (fls. 18 e seguintes), a Câmara Municipal de Setúbal sustentou que a intimação deveria ser julgada improcedente e mantida a tramitação procedimental em curso.
O Ministério Público emitiu parecer (fls. 24 e seguintes), também no sentido da improcedência do pedido de intimação formulado pela requerente.
2. Por sentença de 24 de Abril de 2003 (fls. 35 e seguintes), o juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa indeferiu o referido pedido de intimação judicial, pelos seguintes fundamentos:
“[...] O DL 204/02, de 1.10, veio, no n.º 1 do seu artigo único, manter em vigor a classificação das áreas protegidas operadas pelos diplomas que procederam à sua criação ou à respectiva classificação nos termos do DL 19/93, de 23.1, tendo previsto no n.º 3 desse artigo a aplicação retroactiva dos seus efeitos jurídicos até ao termo dos prazos fixados para a elaboração dos Planos de Ordenamento e respectivos regulamentos e concedendo, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, um novo prazo de dois anos para aprovação dos Planos de Ordenamento das Áreas Protegidas que ainda não disponham de tais instrumentos de gestão territorial. Ora, atento o teor do preâmbulo deste diploma legal, resulta clara a intenção do legislador de, por respeito aos valores a preservar, protegidos constitucionalmente, pretender abranger todas as situações possíveis atentos os atrasos na elaboração dos instrumentos especiais de gestão territorial, como é o caso do PNA. Assim, mantém-se em vigor, quer a classificação da área em questão como Parque Natural, quer as competências da Comissão Directiva para emitir pareceres no que respeita aos projectos de obras de edificação. Tal entendimento está conforme às regras de sucessão de leis no tempo, visto que a própria lei dispôs no sentido da sua eficácia retroactiva ao manter a classificação constante dos diplomas anteriores, o que não viola qualquer disposição constitucional. Nesta conformidade, tendo a entidade requerida procedido à consulta obrigatória da Comissão Directiva do PNA e aguardando resposta desta, não decorreu ainda o prazo legal para a apreciação do projecto de arquitectura, pelo que não pode a Câmara Municipal de Setúbal ser judicialmente intimada a praticar o acto requerido, impondo-se o indeferimento do presente pedido.
[...].”
3. A. interpôs recurso jurisdicional desta sentença para o Supremo Tribunal Administrativo, tendo na motivação respectiva (fls. 40 e seguintes) concluído do seguinte modo:
“A - O D.L. 19/93, que criou o novo quadro de classificação das Áreas Protegidas Nacionais, impôs a reclassificação do P .N .A., segundo os critérios por ele estabelecidos. B - Estabelece o D.L. 19/93, no seu artigo 13°, n.º 2, de forma peremptória e inequívoca, que a classificação de Área Protegida caduca pelo não cumprimento do prazo de elaboração do Plano de Ordenamento e respectivo regulamento. C - O Decreto Regulamentar 23/98, que reclassificou o PNA, no seu artigo 18°, estipulou, expressamente, que, no prazo máximo de 3 anos a contar da sua publicação (14 de Outubro de 1998), o PNA seria dotado de um Plano de Ordenamento do Território. D - O prazo de 3 anos esgotou-se em 14 de Outubro de 2001, sem que até hoje tenha sido elaborado e publicado o Plano de Ordenamento do Território do PNA. E - O desrespeito por tal prazo e a omissão da elaboração e publicação do referido Plano de Ordenamento do Território acarretam a caducidade ope legis da classificação do PNA como Área Protegida F - A caducidade da classificação como Área Protegida do PNA determina a extinção da vigência e eficácia [...] do Decreto Regulamentar 23/98, o que implica o apagamento de todos os efeitos jurídicos decorrentes das anteriores classificação e reclassificação do PNA, como Área Protegida. G - Não existe, pois, suporte legal, desde 14 de Outubro de 2001, para exigência de pedido de parecer prévio do PNA. H - O D.L. 204/2002 não tem a virtualidade de repor uma classificação já caducada ex lege, como no caso do PNA. I - A morte do direito, pela caducidade, é alcançada de modo irreversível e os diplomas atingidos pela caducidade não podem ser repostos em vigor. J - Caducada a classificação o Parque Natural da Arrábida só poderá vir a ser novamente classificado, como Área Protegida, através da tramitação legal, prevista nos artigos 13° e seguintes, do D.L. 19/93. K - O acto de classificação de um Parque Natural implica a restrição/limitação do direito de propriedade, que está consagrado no artigo 62° da CRP, dos proprietários de terrenos situados na sua área de intervenção, como é o caso da ora recorrente. L - É manifesta a inconstitucionalidade do D.L. 204/2002, já que assume características de verdadeira «lei medida», violando o disposto no artigo 18°, n.º 3 da CRP. M - O D.L. 204/2002 não respeita a proibição da retroactividade, imposta pelo artigo 18°, n.º 3 da CRP. N - O vazio legal criado pela caducidade da classificação do PNA gerou para os particulares proprietários de terrenos situados na área do Parque expectativas legítimas e direitos merecedores de tutela jurídica. O - A entrada do pedido de licenciamento na Câmara Municipal de Setúbal, em 17 de Setembro de 2002, ocorreu em data anterior à publicação, em 1 de Outubro, do D.L. 204/2002, pelo que o referido D.L. nunca poderia aplicar-se ao caso vertente. P - Uma vez que inexiste a necessidade de qualquer parecer prévio, e que está largamente ultrapassado o prazo de 45 dias, legalmente fixado, deveria o tribunal «a quo» ter decidido no sentido de mandar proceder à intimação da Câmara Municipal de Setúbal para aprovar o projecto de arquitectura. Q - A decisão ora recorrida veio dar como provado que a requerida efectuou a consulta prévia ao PNA no âmbito do processo de licenciamento, ora em causa. R - Ora, à data da interposição do processo de intimação, a Câmara Municipal de Setúbal ainda não tinha efectuado tal consulta. S - Pelo que a decisão, ora recorrida, ao ter como fundamento uma matéria que não poderia ser dada como provada, padece de vício de nulidade. T - A sentença de que ora se recorre viola, assim, as seguintes disposições: artigos 2°, 18º, n.º 3, 62°, 65°, n.º 4 e 5, e 66°, n.º 2, alíneas b) e c), da CRP; o artigo 12°, n.º 1 do C.C., o artigo 13°, n.º 2, do D.L. 19/93; o artigo
112° do D.L. 555/99 e o artigo 688°, n.º 1, alínea c) do C.P.C.”
A Câmara Municipal de Setúbal, nas contra-alegações que produziu
(fls. 58 e seguintes), concluiu por sua vez do seguinte modo:
“I. O Decreto-Lei n° 204/02, de 1 de Outubro, manteve «em vigor a classificação das áreas protegidas operada pelos diplomas que procederam à criação ou à respectiva reclassificação nos termos do Decreto-Lei n° 19/93, de 23 de Janeiro»
(cfr. n° 1 do artigo único do Decreto-Lei n° 204/02). II. Este diploma foi elaborado, aprovado, promulgado e entrado em vigor, o disposto no Decreto-Lei n° 204/02, precisamente com o objectivo de salvaguardar
«de imediato, as componentes ambientais naturais que justificam que estas áreas se encontrem sujeitas a um especial estatuto de protecção», mesmo relativamente aos prazos constantes dos instrumentos regulamentares que já tivessem expirado
(cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n° 204/02). III. A expressa aplicação retroactiva, operada pelo n° 3 do artigo único do Decreto-Lei n° 204/02, parece ser suficiente para contrariar todos os argumentos invocados a propósito da caducidade, tendo aquela operado com o intuito de manter a classificação do PNA, interpretação, esta, realizada nos termos do artigo 9°, n° 1, do CC. IV. Atendendo ao pensamento legislativo, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, o que se retira da leitura do preâmbulo do Decreto-Lei n°
204/02, é a clareza da intenção do legislador em abranger todas as situações possíveis, incluindo aquela que ora está em causa. V. Foi clara intenção do legislador em manter a situação em apreço, em face dos atrasos na elaboração dos instrumentos especiais de gestão territorial, termos em que deve entender-se que se mantém em vigor, quer a classificação da área como Parque Natural, quer as competências da Comissão Directiva para emitir pareceres exactamente nos mesmos termos em que sempre vigoraram por, nos termos do Decreto-Lei n° 204/02, nunca terem deixado de produzir efeitos os diplomas que os regulavam, não se tratando de repor qualquer classificação, mas apenas de a manter. VI. Outra situação, viria a deixar desprotegida a área de implementação do Parque Natural da Arrábida e, necessariamente, os valores naturais a preservar, protegidos constitucionalmente. VII. Foram estas as razões pelas quais a Alegante continuou a requerer o parecer da Comissão Directiva do PNA, relativamente a assuntos que estejam sob a alçada da sua competência, legalmente estabelecida. VIII. O diploma aqui chamado à colação, não se dirige apenas ao PNA: trata-se de um diploma a aplicar a todas as áreas sujeitas a um estatuto especial de protecção, integradas na Rede Nacional de Áreas Protegidas. IX. Está em causa a defesa do ambiente, erigido em direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, nos termos do artigo 66° da CRP, e em tarefa fundamental do Estado, nos termos do artigo 9°, als. d) e e). X. Assim o é, em termos que condicionam necessariamente o direito de propriedade invocado pelo Recorrente, na medida em que este direito, o de propriedade, está longe de ser considerado absoluto, como resulta do próprio artigo 66° da CRP. XI. A retroactividade estabelecida no n.º 3 do artigo único do Decreto-Lei n°
204/02, não é de molde a ferir o artigo 18°, n.° 3 da CRP, na medida em que, em bom rigor, não ocorreu qualquer restrição aos direitos, liberdades e garantias com efeito retroactivo. XII. O que sucedeu foi a manutenção em vigor, quer [d]a classificação da área como Parque Natural, quer [d]as competências da Comissão Directiva para emitir pareceres exactamente nos mesmos termos em que sempre vigoraram por, nos termos do Decreto-Lei n° 204/02, nunca terem deixado de produzir efeitos os diplomas que os regulavam, não se tratando de repor qualquer classificação, ou criá-la ex novo, mas apenas de a manter. XIII. Isto mesmo resulta das regras de aplicação e sucessão da lei no tempo, não colocando em causa qualquer disposição legal. XIV. Por outro lado, de nada serve alegar a violação do princípio da confiança, se a mesma não é demonstrada, sendo certo que existem determinados requisitos, cujo preenchimento é necessário para que se atribua qualquer efeito a tal violação [...]. XV. Não assiste qualquer relevância ao processo em causa, saber se a ora Alegante pediu o devido parecer à Comissão Directiva do PNA, devendo manter-se a totalidade das conclusões formuladas; XVI. Assim é por, de todo o modo, não ter sido reunido o pressuposto do termo do prazo para a prática do acto, sem o qual não poderia proceder a intimação requerida. XVII. Finalmente, não se compreende em que termos resultaram violados os artigos
62°, 65°, n.ºs 4 e 5 e 66°, n° 2, als. b) e c) da CRP, pela douta sentença recorrida.”
O Ministério Público emitiu parecer do seguinte teor (fls. 71):
“[...]
[...] ainda que se possa admitir o entendimento defendido pela recorrente segundo o qual a classificação em causa caducou em 14.10.2001, o certo é que para a apreciação da situação sub judicio apenas releva o disposto no DL
204/2002 de 01.10, porquanto vigente na data em que o processo de licenciamento formulado pela ora recorrente se encontrava pendente na Câmara Municipal requerida. E como claramente resulta da leitura deste diploma, e atentos os ponderosos motivos invocados no respectivo preâmbulo, por efeitos da publicação deste diploma (e apenas deste) manteve-se em vigor a classificação das áreas protegidas anteriormente operada, com todas as legais consequências daí decorrentes sobre os pedidos de licenciamento então pendentes, nomeadamente no que respeita à necessidade de prévia consulta da Comissão Directiva respectiva. Afigura-se-nos, assim, que a decisão recorrida, ao indeferir o pedido de intimação formulado pela ora recorrente com fundamento na aplicação ao caso do regime instituído pelo DL 204/2002 de 01.10, não pode merecer censura.
[...].”
4. Por acórdão de 16 de Julho de 2003 (fls. 78 e seguintes), o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso jurisdicional.
Neste acórdão, o Supremo Tribunal Administrativo começou por fazer o enquadramento legal da questão, nos termos constantes de decisão anteriormente proferida pelo mesmo tribunal em caso semelhante, no recurso n° 1048/03, afirmando continuar a sufragar a doutrina expressa em tal decisão.
Analisando seguidamente o artigo único do Decreto-Lei n.º 204/02, de
1 de Outubro, disse o Supremo Tribunal Administrativo:
“[...] Resulta claro da disposição transcrita que foi intenção expressa do legislador derrogar, com efeitos retroactivos, para além do mais, a norma que impunha a caducidade da classificação das áreas protegidas. Assim, tudo está em saber se, neste âmbito, é possível a retroactividade da lei.
Ora, a caducidade é um efeito jurídico, nada obstando, em princípio, que o legislador, na sua liberdade de conformação legislativa, possa obstar retroactivamente à produção de tais efeitos, tanto mais que esse desiderato legal tem por fundamento a protecção de valores ambientais tão caros à comunidade e que têm até expressa consagração constitucional (cfr. artº 6º da CRP). Tudo está em saber se tal retroactividade fere algum outro princípio constitucional, designadamente os constantes dos arts. 2°, 18°, n° 3, 62°, 65°, n.ºs 4 e 5 e 66°, n.° 2, als. b) e c) da CRP, referidos pelo recorrente na sua alegação. Dir-se-á desde já que quanto a estes últimos, como já se deixou antever, não faz sentido a alegação do recorrente, pois, na base do DL 204/02, está precisamente a protecção dos valores ambientais.
[...]
É evidente que ao manter em vigor a classificação dos parques naturais com a publicação do DL 204/02, o desiderato do legislador foi precisamente a salvaguarda daquelas áreas e do direito ao ambiente e à qualidade de vida, não fazendo qualquer sentido a alegada violação daquelas normas pelo recorrente. O que há que definir é se do confronto de tais valores com os restantes princípios invocados pelo recorrente, designadamente o princípio da confiança, do estado de direito democrático, e do direito de propriedade privada são estes que devem prevalecer.
[...].”
Depois de assim equacionar o problema, o Supremo Tribunal Administrativo afastou a alegada violação das normas constitucionais invocadas no recurso, remetendo para a jurisprudência do Tribunal Constitucional, concretamente para o aAórdão n.º 517/99.
5. A. pediu a aclaração do acórdão (fls. 96 e seguinte), invocando
“manifesta contradição entre a matéria dada como assente e o pressuposto factual que serviu de base ao acórdão”.
Por acórdão de 30 de Setembro de 2003 (fls. 105 e seguintes), foi o pedido de aclaração deferido, nos seguintes termos:
“[...]
É verdade que se deu como provado o facto referido em 1 pela requerente. Porém referiu-se também no acórdão aclarando, relativamente à matéria do pedido de intimação nele apreciado, que «tendo a Câmara Municipal de Setúbal, conforme consta da matéria de facto, pedido à recorrente elementos em falta no processo que só foram entregues em 8.11.2002, só a partir desta data começaria a contar o prazo para a deliberação sobre o projecto de arquitectura» donde decorre que o prazo do invocado deferimento tácito já decorreu na vigência do DL 204/02 cuja aplicabilidade está em apreciação. As asserções contidas nos pontos 2 e 3 do pedido de aclaração constituem transcrição do acórdão do STA, proferido no recurso n° 1048/83 referente a outro caso semelhante, cuja doutrina se julgou aplicável ao caso em apreço embora a matéria de facto, como é normal e resulta do texto, designadamente das passagens indicadas pela requerente, não seja exactamente igual. Os factos atinentes ao caso em apreço são os acima indicados, tendo-se entendido que, quando o pedido da recorrente, através da junção de elementos que lhe foram solicitados pela C.M. de Setúbal, ficou apto a ser apreciado, em termos de poder ser deferido ou indeferido, já estava em vigor o DL 204/02 tendo decorrido, também na sua vigência, o prazo do alegado deferimento tácito, pelo que, atendendo ainda à conformidade constitucional e legal da aplicação retroactiva daquele diploma, era aplicável a doutrina do acórdão transcrito referente a caso em que idêntico pedido de aprovação do projecto de arquitectura deu entrada na CM de Sesimbra já na vigência do DL 204/02. Não há, pois, qualquer contradição ou ambiguidade, sendo certo que se justifica a eventual dificuldade na interpretação do acórdão aclarando, ainda que a transcrição do acórdão cuja doutrina se considerou aplicável e ao qual se reportam os factos descritos em 2 e 3 do pedido de aclaração esteja assinalada por aspas ou comas (“...”) a indicar que se trata de uma transcrição de caso não necessariamente igual, mas cuja doutrina é aplicável ao caso «sub judice».
[...].”
6. A. interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 111), nos seguintes termos:
“[...]
1. O recurso é interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70º, da Lei 28/82.
2. A interpretação consagrada no acórdão recorrido da aplicação do Decreto-Lei
204/02, de 1 de Outubro, do artigo 12º, n.º 1 do Código Civil e do artigo 13º, n.º 2, do Decreto-Lei 19/93, de 23 de Janeiro, viola os princípios e normas constitucionais, nomeadamente, os artigos 2º, 18º, n.º 3, 62º, 65º, n.ºs 4 e 5,
66º, n.º 2, alíneas b) e c), 112º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
3. Tais inconstitucionalidades e ilegalidades foram suscitadas no requerimento inicial e nas alegações de recurso, como consta a fls. dos autos.
[...].”
O recurso foi admitido por despacho de fls. 115.
7. Já no Tribunal Constitucional, foi a recorrente convidada a indicar a interpretação perfilhada no acórdão recorrido que, do seu ponto de vista, seria inconstitucional (fls. 119), o que a recorrente fez, nos seguintes termos (fls.
121):
“a) O entendimento consagrado no acórdão do TCA quanto à validade da retroactividade do DL 204/02, no sentido de que o Governo pode repor a classificação já caducada de uma área protegida de interesse nacional, como é o caso do PNA, sem que haja envolvimento e participação dos cidadãos, viola o princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território, consagrado nos n.ºs 4 e 5, do artigo 65° da CRP, e, em especial, na criação de parques naturais, consagrado nas alíneas b) e c) do n.º 2, do artigo 66° da CRP, bem como o princípio constitucional da democracia participativa, consagrado no artigo 2° da CRP. b) O entendimento consagrado no acórdão do TCA quanto à validade da retroactividade do DL 204/02, no sentido de que é dispensável a participação dos cidadãos para a criação de um parque natural, viola o princípio constitucional da não retroactividade das leis restritivas dos direitos e garantias dos cidadãos, consagrado no artigo 18°, n.º 3 da CRP.”
8. Nas alegações que produziu (fls. 124 e seguintes), concluiu assim a recorrente:
“A. O entendimento dado pelo STA ao DL 204/02, no sentido de que o Governo pode repor a classificação já caducada de uma área protegida de interesse nacional, como é o caso do PNA, sem que haja envolvimento e participação dos cidadãos, viola o princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território, consagrado nos n.ºs 4 e 5, do artigo 65° da CRP, e, em especial, na criação de parques naturais, consagrado nas alíneas b) e c) do n.º 2, do artigo 66° da CRP. B. Esse entendimento viola também o princípio constitucional da democracia participativa, consagrado no artigo 2° da CRP. C. A caducidade da classificação do PNA está reconhecida no Preâmbulo do DL
204/03. D. A caducidade acarreta a obrigatoriedade de nova classificação do PNA como
área protegida. E. O entendimento do acórdão do STA, ao ignorar o disposto nos artigos 12° e
13°, n.ºs 3, 4 e 5, do D.L. 19/93, viola o princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território e na criação de parques naturais, consagrado nos artigos 65° e 66° da CRP. F. O acórdão do STA, ao permitir a reposição de uma classificação já caducada, através do mecanismo da retroactividade, reduz ao grau zero a participação dos cidadãos no processo de classificação de áreas protegidas, violando frontal e grosseiramente o disposto nos n.ºs 4 e 5, do artigo 65°e no n.º 2 do artigo 66°, ambos da CRP. G. A reclassificação do PNA operada pelo Dec. Reg. 23/98, nos termos do artigo
32°, n.º 2, do DL 19/93, tem carácter excepcional. H. A interpretação dada pelo acórdão do STA ao DL 204/02 possibilita a manutenção do carácter excepcional da disposição atrás citada, por tempo indefinido, em violação flagrante do princípio constitucional do direito da participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território e na criação de parques naturais (artigos 2°, 65° e 66° da CRP). I. O acórdão do STA, ao aceitar a retroactividade do DL 204/02, no pressuposto da protecção de valores ambientais, ignorou que ao Governo se impunha lançar mão das medidas previstas no artigo 8° da Lei dos Solos – por remissão do artigo
107°, n.º 8 do D.L. 380/99 – para protecção das áreas, cuja classificação caducou, o que teria, eficazmente, salvaguardado as zonas em causa, sem violação de qualquer princípio constitucional. J. A interpretação consagrada no acórdão do STA admite que, por via da retroactividade, nunca se viesse a verificar a caducidade da classificação de uma zona como área protegida, o que implica a negação do princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território (artigo 65° da CRP) e, em especial, na criação de parques naturais (artigo 66° da CRP), e ainda, e mais amplamente, a negação do princípio da democracia participativa, consagrado no artigo 2° da CRP. K. O direito à democracia participativa está amplamente consagrado na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, no que respeita ao direito de participação dos trabalhadores. L. Nos termos do artigo 2° da CRP o aprofundamento da democracia participativa não distingue, nem privilegia, o direito dos trabalhadores face ao direito dos cidadãos. M. O entendimento dado pelo STA ao DL 204/02, no sentido de que é dispensável a participação dos cidadãos para a criação de um parque natural, viola o princípio constitucional da não retroactividade das leis restritivas dos direitos e garantias dos cidadãos, consagrado no artigo 18°, n.º 3 da CRP. N. O acto de classificação de um parque natural implica, também, a restrição/limitação de direitos dos cidadãos, razão pela qual se garante, constitucional e legalmente, a correcta ponderação dos interesses público e privado só conseguida através da discussão pública. O. A obrigatoriedade desta ponderação, espelhada na necessidade do envolvimento e participação dos cidadãos, mais não é do que um corolário do princípio da imparcialidade da administração e um reforço do princípio democrático. P. Toda e qualquer lei restritiva de direitos fundamentais terá de revestir carácter geral e abstracto e jamais poderá ser retroactiva – cfr. artigo 18°, n.º 3, da CRP. Q. A CRP proíbe a retroactividade quando se verifique a restrição de um direito fundamental. R. É manifesto que a retroactividade do DL 204/02 restringe o direito fundamental dos cidadãos à participação, consagrado nos artigos 2°, 65° e 66° da CRP. S. A retroactividade do DL 204/2002, no que respeita ao prolongamento dos prazos para aprovação dos planos de ordenamento das áreas protegidas, cuja classificação ainda não tivesse caducado à data da sua publicação, é perfeitamente válida. T. O STA, ao efectuar a interpretação da possibilidade de aplicação retroactiva do DL 204/02, repondo em vigor a classificação caducada, está a violar o princípio da participação democrática – artigo 2° da CRP –, o princípio constitucional da não retroactividade das leis restritivas dos direitos e garantias dos cidadãos – artigo 18°, n° 3 da CRP –, e o princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território – n.ºs 4 e 5, do artigo 65° da CRP –, e na criação de parques naturais – alíneas b ) e c) do n.º 2, do artigo
66° da CRP.”
A recorrida não alegou (fls. 157).
Cumpre apreciar. II
9. Na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (supra, 7.), a recorrente indicou como objecto do recurso dois entendimentos (ou interpretações), reportados apenas ao Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro.
Isto significa que, nessa resposta, a recorrente delimitou o objecto do recurso que resultava do teor do respectivo requerimento de interposição: é que neste requerimento se pretendia a apreciação de uma determinada interpretação, não só daquele Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, mas também do artigo 12º, n.º 1, do Código Civil e do artigo 13º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro.
Face a tal delimitação do objecto do recurso, conclui-se que o Tribunal Constitucional apenas poderá apreciar certo entendimento (ou certos entendimentos) reportado ao Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro.
10. A delimitação do objecto do recurso, tal como resulta da resposta ao despacho de aperfeiçoamento, carece ainda, todavia, de algumas precisões.
Na verdade, apesar de o Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, conter um artigo único, este artigo único inclui várias normas. Dispõe o seguinte:
“Artigo único
1 – Mantém-se em vigor a classificação das áreas protegidas operada pelos diplomas que procederam à sua criação ou à respectiva reclassificação nos termos do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro.
2 – No prazo de dois anos, a partir da data da entrada em vigor do presente diploma, devem ser aprovados os planos de ordenamento das áreas protegidas que ainda não disponham de tais instrumentos especiais de gestão territorial.
3 – Os efeitos do presente diploma retroagem ao termo dos prazos fixados nos diplomas mencionados no n.º 1 do presente artigo, para elaboração dos planos de ordenamento e respectivos regulamentos.”
Nem todas as normas do artigo transcrito foram aplicadas na decisão recorrida. Apenas o foram as dos seus n.ºs 1 e 3, pelo que só estas podem estar em causa no presente recurso. Na verdade, um dos pressupostos processuais do recurso interposto é a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou normas cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie
(cfr. artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional).
Impõe-se, pois, uma segunda conclusão: o Tribunal Constitucional apenas poderá apreciar certo entendimento (ou certos entendimentos) reportado aos n.ºs 1 e 3 do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro.
11. Mas que entendimento será esse?
Como ficou dito, a recorrente referiu-se a dois entendimentos (ou interpretações), na resposta ao despacho de aperfeiçoamento.
No entanto, tais entendimentos reconduzem-se a um só, se bem que perspectivados à luz de princípios constitucionais diversos.
Essencialmente, no presente recurso apenas está em causa a interpretação que, logo no pedido formulado perante o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (supra, 1.), a recorrente censurou, e que consiste em considerar que um Decreto-Lei (o Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro) possa repor uma classificação como área protegida já caducada ex lege (como seria o caso do PNA).
Repare-se que considerar que esta interpretação (ou entendimento) é susceptível de, por um lado, violar o direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território e o princípio da democracia participativa e, por outro lado, violar o princípio da não retroactividade das leis restritivas de direitos e garantias, não significa que se esteja perante duas interpretações normativas.
Portanto, apesar do teor literal da resposta ao despacho de aperfeiçoamento, impõe-se uma terceira conclusão: o objecto do recurso reconduz-se, não a dois entendimentos, mas à interpretação segundo a qual os n.ºs 1 e 3 do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, possibilitam a reposição de uma classificação como área protegida já caducada ex lege.
12. Saliente-se, por último, que nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (supra, 8.), a recorrente parece pretender ampliar o objecto do recurso, tal como ficara definido no requerimento de interposição do recurso e na resposta ao despacho de aperfeiçoamento.
Na verdade, a recorrente censura ainda a circunstância de o entendimento perfilhado no acórdão ter ignorado o disposto nos artigos 12º e
13º, n.ºs 3, 4 e 5, do Decreto-Lei n.º 19/93, e de tal entendimento ter possibilitado a manutenção do carácter excepcional da reclassificação do PNA operada pelo Decreto Regulamentar n.º 23/98, bem como a de o Governo ter omitido as medidas previstas no artigo 8º da Lei dos Solos.
Como é evidente, a conformidade constitucional de tais preceitos não pode ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, desde logo porque o requerimento de interposição do presente recurso nem sequer lhes fez referência.
Nem o Tribunal Constitucional pode, como é também óbvio, determinar se o tribunal recorrido fez uma boa ou má aplicação do direito ordinário: nomeadamente, se ignorou ou não o disposto nos artigos 12º e 13º, n.ºs 3, 4 e 5, do Decreto-Lei n.º 19/93.
Analisar-se-á, pois, de seguida o objecto do recurso, tal como ficou definido no ponto n.º 11 do presente acórdão: a interpretação segundo a qual os n.ºs 1 e 3 do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, possibilitam a reposição de uma classificação como área protegida já caducada ex lege.
Violará tal interpretação as várias normas e princípios constitucionais indicados pela recorrente?
13. Sustenta a recorrente que a interpretação normativa que constitui o objecto do recurso viola o princípio da não retroactividade das leis restritivas dos direitos e garantias dos cidadãos, consagrado no artigo 18º, n.º 3, da Constituição (cfr. conclusões P. e Q. das alegações).
13.1. Quanto à alegada violação do princípio da não retroactividade das leis restritivas dos direitos e garantias dos cidadãos, já se pronunciou em termos claros e completos o tribunal recorrido, alicerçado aliás na jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria.
No Acórdão n.º 517/99 (publicado no Diário da República, II, n.º
263, de 11 de Novembro de 1999, p. 17054 ss), amplamente transcrito no acórdão aqui recorrido, o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre o problema enunciado a propósito de normas relativas a licenças de loteamento, de obras de urbanização e de construção aplicáveis a actos administrativos de licenciamento anteriores à respectiva entrada em vigor.
Disse então este Tribunal:
“[...] Pois bem: para decidir esta questão, não se torna necessário tomar posição sobre saber se, como sustenta alguma doutrina, o ius aedificandi constitui parte integrante do direito de propriedade, sendo uma das faculdades em que ele se analisa, sucedendo apenas que o seu exercício está dependente de uma autorização da Administração; ou se, como pretende outro sector da doutrina, é, antes, «o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico-urbanístico, designadamente dos planos» – ou seja, «um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas» (cf., sobre isto, o Acórdão n.º 329/99 e a doutrina aí citada). E tão-pouco é preciso decidir se, como pretende o recorrente, um tal direito se deve reconduzir à liberdade de iniciativa económica privada. O direito de propriedade é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, gozando por isso mesmo (ex vi do artigo 17º da Constituição), do respectivo regime naquilo que nele reveste natureza análoga
(cf. o citado Acórdão n.º 329/99 e a jurisprudência aí citada). E outro tanto se pode dizer da liberdade de iniciativa económica privada. Simplesmente, como se escreveu no mencionado Acórdão n.º 329/99, a liberdade de iniciativa económica privada «não sofre restrição pelo facto de ser proibido construir num determinado solo ou de isso apenas se poder fazer dentro de certos limites ou com determinados condicionamentos. De todo o modo, mesmo que deva entender-se que a dita liberdade foi nalguma medida limitada pelas normas sub iudicio, uma coisa é certa: a garantia constitucional da liberdade económica privada há-de exercer-se sempre ‘nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral’ (cf. artigo 61º, n.º 1, da Constituição). Ora, o interesse geral não pode deixar de atender às necessidades de ordenamento do território, pois que constitui tarefa fundamental do Estado
‘assegurar um correcto ordenamento do território’ [cf. o artigo 9º, alínea e), da Constituição]». As normas sub iudicio não violam, pois, o princípio da proibição da retroactividade das restrições de direitos – e, assim, as normas dos artigos
61º, n.º 1, e 18º, n.º 3 (ex vi do artigo 17º), da Constituição.
[...].”
Nesse mesmo Acórdão n.º 517/99, apreciando a eventual violação, pelas normas então questionadas, do princípio da tutela da confiança, ponderou o Tribunal Constitucional, retomando a fundamentação do Acórdão n.º 329/99
(publicado no Diário da República, II, n.º 167, de 20 de Julho de 1999, p. 4061 ss):
“[...] Escreveu-se aí, tendo, naturalmente, em conta os planos de ordenamento do território que interessavam ao caso:
«Pode, desde logo, questionar-se se as normas sub iudicio, ao determinarem (para o que aqui importa) a ‘caducidade’ das licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, que não forem confirmadas, são verdadeiramente retroactivas [cf. o Acórdão n.º 339/90
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas 333 e seguintes)]. De todo o modo, acontece que, fora do domínio penal, em que a retroactividade in peius é constitucionalmente inadmissível (cf. artigo 29º, n.ºs 1,3 e 4, da Constituição); do domínio fiscal, em que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroactiva (cf. artigo 103º, n.º 3, da Constituição); e, bem assim, do domínio das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, em que a lei não pode ser retroactiva (cf. artigo 18º, n.º 3, da Constituição); este Tribunal tem sempre entendido que uma lei retroactiva não é, em si mesma, inconstitucional [cf. Acórdão n.º 95/92
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 21º, página 341 e seguintes)]. Fora dos domínios apontados – e isto é o que acontece no presente caso, como decorre do que se disse atrás –, uma lei retroactiva só será inconstitucional, se violar princípios ou disposições constitucionais autónomos. Será o que sucede, quando a lei afecta, de forma ‘inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa’ direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos. Num tal caso, com efeito, a lei viola aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, de facto, que organize a ‘protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida’ [cf. Acórdão n.º
330/90 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas
277 e seguintes). Cf. também os Acórdãos n.ºs 574/98 (por publicar) e 575/98
(publicado no Diário da República, II série, de 26 de Fevereiro de 1999)]. Por conseguinte, apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático [cf., entre outros, o Acórdão n.º 11/83 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 1º, páginas 11 e seguintes), o citado Acórdão n.º 287/90, o Acórdão n.º 486/96 (publicado no Diário da República, II série, de
17 de Outubro de 1997) e os Acórdãos n.ºs 574/98 e 575/98, citados por último].
[...].» As normas sub iudicio não violam, pois, o princípio da protecção da confiança, corolário do princípio do Estado de Direito.
[...].”.
13.2. A doutrina exposta é inteiramente aplicável na apreciação das normas impugnadas no âmbito do presente recurso.
No caso dos autos, tudo reside em saber se a retroactividade da lei afecta de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, assim violando o princípio da confiança. Ora, quanto a essa eventual violação do princípio da confiança, disse o tribunal recorrido, e com razão, que ela não se verificava, atendendo a que, quando o pedido da recorrente ficou apto a ser apreciado, em termos de poder ser deferido ou indeferido, já estava em vigor o Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, sendo que nenhuma garantia a recorrente tinha de que pudesse construir no local.
13.3. Acrescente-se que, em duas decisões recentes, o Tribunal Constitucional teve oportunidade de apreciar as normas contidas no artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, questionadas no presente recurso, em confronto com o princípio da não retroactividade das leis restritivas dos direitos e garantias dos cidadãos e com o princípio da protecção da confiança.
À luz da jurisprudência anteriormente referida (no ponto n.º 13.1.), o Tribunal decidiu, nos Acórdãos n.ºs 360/04, de 19 de Maio, e 394/04, de 2 de Junho (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), que tais normas não contrariam os princípios constitucionais invocados.
14. Relativamente à alegada violação dos princípios da participação dos cidadãos (na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território e na criação de parques naturais) e da democracia participativa, a argumentação da recorrente é essencialmente a seguinte (cfr. sobretudo as conclusões F., J. e R. a T. das alegações, supra, 8.): a reposição de uma classificação já caducada, através do mecanismo da retroactividade, não permite a participação dos cidadãos no processo de classificação de áreas protegidas.
Esta questão de constitucionalidade foi igualmente apreciada nos mencionados Acórdãos n.ºs 360/04 e 394/04, tendo o Tribunal Constitucional concluído no sentido da não violação da Constituição.
Disse o Tribunal no Acórdão n.º 394/04:
“Quanto à violação do princípio da participação democrática, que o recorrente desentranha do artigo 2º da Constituição, é de notar que «o aprofundamento da democracia participativa» com consagração no texto constitucional teve já uma expressão directamente relevante para o caso com a introdução do actual n.º 5 do artigo 65.º e do aditamento da parte final do artigo 66.º da Constituição, pela Revisão Constitucional de 1997. Avulta, portanto, a eventual violação do direito
(constitucionalmente reconhecido) de participação dos cidadãos na criação e desenvolvimento de parques naturais (artigo 66.º, n.º 2, alínea c), da Constituição). Isto, porque a moratória concedida para a aprovação do plano de ordenamento (no n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002) não dispensa o processo normal de participação dos interessados, tal como consagrado no artigo 65.º, n.º
5, da Constituição. É dizer que o que pode estar em causa é um défice de participação na reconstituição retroactiva do Parque Natural, não em qualquer outro instrumento de planeamento, designadamente nos respeitantes à definição das «regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos» (artigo 65.º, n.º 4, da Constituição), que os solos dos Parques Naturais não são, nem no Plano relativo ao Parque da Arrábida, enquanto integrado na Rede Nacional de Áreas Protegidas, previsto no Decreto-Lei n.º 19/93 (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs
213/97, de 16 de Agosto, e 151/95, de 24 de Junho), e que, com os Planos de Ordenamento da Orla Costeira (Decreto-Lei n.º 309/93, de 2 de Setembro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 218/94, de 20 de Agosto, 151/95, de 24 de Junho, e
113/97, de 10 de Maio) e os Planos de Albufeiras de Águas Públicas (Decreto-Lei n.º 45/94, de 22 de Fevereiro), constituem os três tipos de Planos Especiais de Ordenamento do Território previstos na Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto (artigo
33º), e regulados no Decreto-Lei n.º 151/95 (alterado pela Lei n.º 5/96, de 29 de Fevereiro). Aquele Plano relativo ao Parque da Arrábida está sujeito a prévia apreciação pública (artigo 21º da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território – Lei n.º 48/98). Ora, a participação dos interessados está constitucionalmente prevista em quaisquer instrumentos de planeamento físico do território (artigo 65º, n.º 5, da Constituição), mas apenas na sua elaboração, e só a criação e desenvolvimento de parques naturais (e reservas, e parques de recreio) obriga ao envolvimento e participação dos cidadãos (artigo 66.º, n.º 2, alínea c), da Constituição).
É dizer que a prorrogação do regime pré-existente, não sendo este constitucionalmente definido como transitório, não carece, à face da Constituição, de participação obrigatória dos cidadãos. Aliás, as próprias razões que depõem a favor da criação de Parques Naturais depõem a favor da sua natureza permanente, salvo circunstâncias excepcionais, e sem prejuízo da alteração do regime que lhes é aplicável (quer no sentido de o flexibilizar, ou reduzir, quer no sentido de o endurecer, ou aumentar), justificando-se então, de novo, a participação dos cidadãos, como constitucionalmente previsto («criação e desenvolvimento de parques naturais»). Não é, portanto, ao contrário do que invoca o requerente, a natureza retroactiva da prorrogação de um regime que inicialmente se previu como transitório salvo aprovação de outro instrumento de planeamento que obsta ao cumprimento de uma obrigação constitucional. Tendo-se já estabelecido que a retroactividade não estava vedada ao legislador, vê-se agora que ela não interferiu com uma qualquer obrigação de renovar a participação pública na prorrogação do estatuto de Parque Natural já anteriormente conferido: por um lado, porque a Constituição não o impõe senão no momento inicial (criação) ou numa sua alteração significativa
(desenvolvimento). Por outro lado, porque a natureza transitória do regime atribuído ao Parque o foi por opção do legislador, sem interferência constitucional, razão pela qual o legislador pôde, legitimamente, alterar-lhe essa natureza – e pôde fazê-lo, já o vimos, com eficácia retroactiva. Nem se diga que a pendência indefinida do mesmo regime coarcta o direito de participação dos cidadãos, porque, ainda que assim fosse, não haveria desconformidade constitucional, por a Constituição o admitir exactamente nesses termos a propósito do que está em causa: o envolvimento e participação dos cidadãos na criação e desenvolvimento de parques naturais, não no prolongamento do seu regime. E nem se diga, também, que a prorrogação, retroactiva, de um regime já caducado, importa antes uma nova «criação» dos parques naturais em causa. Se, do ponto de vista da melhor aplicação do Direito, a questão pode ter pertinência, do ponto de vista da aferição constitucional da solução, a resposta a tal problema dilui-se na da legitimidade constitucional da atribuição de eficácia retroactiva
à prorrogação do regime – e esta já foi estabelecida. Não cabe aqui, pois, nenhum simile com os direitos de participação dos trabalhadores, que têm contornos constitucionais diversos (artigos 54º e 56º da Constituição, designadamente). Em sentido convergente com o que se disse, de inexistência de violação de garantias constitucionais de participação, escreveu-se, aliás, também no citado acórdão n.º 360/2004:
«Quanto à garantia de ‘participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território’ (artigo 65.º, n.º 5, da CRP) e de
‘participação dos cidadãos’ no desempenho, pelo Estado, da sua incumbência de criar e desenvolver reservas e parques naturais (artigo 66.º, n.º 2, corpo e alínea c), da CRP), para além de não estar em causa uma dimensão desse ‘direito fundamental’ que seja de qualificar como ‘análoga’ aos ‘direitos, liberdades e garantias’, acresce que não radica na norma impugnada a alegada ‘restrição retroactiva’ desse direito. Quanto ao primeiro aspecto, entende-se, com José Carlos Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 2.ª edição, Almedina, 2001, pág. 193), que tal ‘analogia de natureza deve
(...) respeitar, cumulativamente, a dois elementos: tratar-se de uma posição subjectiva individual ou de uma garantia que possa ser referida de modo imediato e essencial à ideia de dignidade da pessoa humana, isto é, que integre a matéria constitucional dos direitos fundamentais; e poder essa posição subjectiva ou garantia ser determinada a um nível que deva ser considerado materialmente constitucional’. E, quanto ao segundo, assinale-se que a norma em causa não procedeu, ela mesma, a qualquer classificação de áreas protegidas, limitando-se a fazer retroagir o alargamento do prazo de aprovação dos planos de ordenamento dessas áreas, com manutenção em vigor das anteriores classificações; e depois, importa ter presente que o n.º 2 do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 19/93 declara inaplicável o disposto no n.º 3 do seu artigo 13.º (que prevê a realização de inquérito público prévio) relativamente aos decretos regulamentares que venham a proceder à reclassificação de áreas protegidas já existentes, designadamente
àquelas cuja classificação fora feita ao abrigo da Lei n.º 9/70, de 19 de Junho, lei ao abrigo da qual foi emitido o Decreto-Lei n.º 622/76, de 28 de Julho, que criou o Parque Nacional da Arrábida. Não radica, assim, na norma agora impugnada a dispensa de inquérito público relativamente ao decreto regulamentar, nem ela afecta que, quanto ao subsequente plano de ordenamento do território e seu regulamento, o direito de participação dos interessados se efective quando os respectivos projectos forem concluídos e colocados em discussão pública.».
É também este entendimento que cumpre reiterar no presente processo, concluindo pela não inconstitucionalidade das normas em questão.”.
Pelas razões constantes do acórdão transcrito, inteiramente transponíveis para o caso dos autos, reafirma-se que as normas questionadas não violam os princípios da participação dos cidadãos (na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território e na criação de parques naturais) e da democracia participativa.
15. Conclui-se assim que não violam a Constituição as normas constantes dos n.ºs 1 e 3 do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, interpretadas no sentido de possibilitarem a reposição de uma classificação como
área protegida já caducada ex lege.
Nem sequer se justificaria, no caso dos autos, equacionar a questão de uma eventual violação, pelas normas impugnadas, do disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição. É que, mesmo para quem sustente um entendimento como o que justificou o voto de vencido aposto ao Acórdão n.º
517/99 pelo Conselheiro Luís Nunes de Almeida, o problema agora em discussão é distinto do que foi tratado nesse Acórdão n.º 517/99. Tendo em conta que, quando o pedido da recorrente ficou apto a ser apreciado, em termos de poder ser deferido ou indeferido, já estava em vigor o Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, e considerando portanto que a recorrente não tinha qualquer garantia de que pudesse construir no local, não há que discutir aqui a questão do “regime orgânico” de tal diploma. Por outras palavras, não se coloca, no caso dos autos, o problema da inconstitucionalidade orgânica das normas impugnadas – a entender-se que elas versam, sem autorização parlamentar, sobre o direito de propriedade –, por não ter existido, na situação em análise, qualquer ablação ou privação do direito de propriedade.
III
16. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Junho de 2004
Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida