Imprimir acórdão
Processo n.º 593/04
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A fls. 363 e seguintes, foi proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal pelo Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), por não ter sido suscitada pelo recorrente, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de fundar o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
2. Notificado dessa decisão, o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE) veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal (requerimento de fls. 371 e seguintes), invocando, para o que agora releva, o seguinte:
“[...]
2- [...] a actuação do poder-dever consignado no n.º 6 do art. 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional impunha-se, como decorre cristalinamente da lei, não colhendo a argumentação de que «tal convite seria, no caso dos autos, um acto inútil».
3- Se tivesse sido formulado o convite, o recorrente teria dito o que agora expressa com toda a convicção: o presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n° 1 do art. 70° da Lei do Tribunal Constitucional, indicando-se como violados o princípio material da Constituição da proporcionalidade e o art.
62° n.º 2 da Constituição; a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 1º do art. 23° do Código das Expropriações aprovado pelo Dec-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, foi suscitada nas alegações para o Tribunal da Relação de Évora e para o Supremo Tribunal de Justiça.
4- Nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, o IGAPHE, na veste de agravado, e na esteira do que já tinha expresso nas alegações para o mesmo Alto Tribunal, como agravante, (textualmente) exarou [...]
[...]
5- É evidente que sendo o entendimento da Relação de Évora, no que concerne à interpretação do disposto no art. 23°, n.º 1 do CE de 91, declarado inconstitucional, o competente acórdão terá de ser reformulado em conformidade; tal não é mais do que a consequência natural do processo de fiscalização judicial concreto da inconstitucionalidade adoptado no ordenamento jurídico português. Sempre respeitando opinião diversa, o que o reclamante-recorrente pretende é que, no caso concreto, a norma do n.° 1 do art. 23° do Código das Expropriações, aprovado pelo Dec-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, indubitavelmente aplicada pelo Tribunal da Relação de Évora – o Supremo Tribunal de Justiça não conheceu do recurso do reclamante, ancorado no disposto do art. 66°, n.º 5 do actual Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro –, seja interpretado de acordo com a Constituição, em sintonia com o disposto no n.º 2 do art. 62° da CRP e do princípio da proporcionalidade, princípio este que informa e enforma o texto constitucional português. Manifestamente o douto acórdão da Relação de Évora não interpretou este inciso legal (n.º 1 do art. 23° do CE 91) no sentido propugnado pelo IGAPHE, sendo, portanto, inconstitucional semelhante norma no entendimento do mesmo acórdão.
[...].”
3. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, o recorrido A. respondeu (fls. 386 e seguintes):
“[...]
1º. A presente reclamação é manifestamente improcedente [...].
2º. O Instituto reclamante interpôs o recurso de constitucionalidade do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 2004, o qual não tomou conhecimento dos recursos de agravo por considerar que os mesmos tinham por objecto a questão da fixação da indemnização por expropriação por utilidade pública; matéria subtraída à competência decisória do mesmo Supremo.
3º. A norma aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça foi, pois, uma norma de natureza processual sobre os pressupostos de recorribilidade de decisões proferidas pelas Relações em processo de expropriação por utilidade pública – art. 66º, n.º 5, do Código de Expropriações de 1999 (Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro).
4º. Era, pois, relativamente à norma aplicada pela decisão recorrida – repete-se, a norma utilizada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão sob recurso – que o ora Reclamante tinha tido de suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa, ou então tinha de suscitá-la pela primeira vez, invocando a impossibilidade de ter previsto que a mesma iria ser aplicada. [...]
6º. A invocação da questão da inconstitucionalidade do art. 23º, n.º 1, do Código das Expropriações de 1991 só teria sentido se o recurso tivesse sido interposto do Acórdão da Relação de Évora, ao abrigo do art. 75º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
[...]
9º. [...] tendo de situar-se o recurso de constitucionalidade na previsão da alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o ora Reclamante limitara-se a aludir de forma vaga nas anteriores alegações a uma interpretação de certa norma de direito ordinário num sentido contrário a normas ou princípios inconstitucionais, muito embora fundasse a questão de inconstitucionalidade no momento de aplicação pela decisão de norma, em termos de fixação da indemnização.
[...]
13º. O que consta desta douta Decisão Sumária é ilustrado pelos passos da sua reclamação em que o Reclamante se encarrega de relembrar (Ponto 4 da sua aliás douta reclamação), que, no fundo, o que o preocupa é o quantum indemnizatório concreto («não menos mas também não mais, não muitíssimo mais (cfr. arts. 1º do Código das Expropriações e 62º, n.º 2 da CR)»).
[...].”
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Na decisão sumária reclamada, o Tribunal Constitucional entendeu que, embora o requerimento de interposição do presente recurso não desse cumprimento aos requisitos exigidos pelo artigo 75º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC, não se justificava proceder à notificação do recorrente, nos termos previstos no n.º 6 do mesmo artigo, para que indicasse os elementos em falta em tal requerimento, uma vez que “o recorrente não suscitou, durante o processo, de forma clara e precisa, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa” susceptível de fundar um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade. Assim, foi proferida imediatamente decisão sumária, tal como permite o artigo 78º-A, n.º 1, da LTC, no sentido do não conhecimento do recurso.
Na reclamação agora deduzida, o reclamante começa por sustentar que se impunha “a actuação do poder-dever consignado no n.º 6 do art. 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional” e que, “se tivesse sido formulado o convite, o recorrente teria dito o que agora expressa com toda a convicção: o presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n° 1 do art. 70° da Lei do Tribunal Constitucional, indicando-se como violados o princípio material da Constituição da proporcionalidade e o art. 62° n.º 2 da Constituição; a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 1º do art. 23° do Código das Expropriações aprovado pelo Dec-Lei n.° 438/91, de 9 de Novembro, foi suscitada nas alegações para o Tribunal da Relação de Évora e para o Supremo Tribunal de Justiça”.
5. Ora, a este respeito, importa começar por distinguir entre os pressupostos do recurso de constitucionalidade, tal como se encontram enunciados nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e os requisitos do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, a que se refere o artigo 75º-A da mesma Lei.
No caso sub judice, decidiu-se não tomar conhecimento do recurso por não estarem verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a única alínea susceptível de ser invocada no caso dos autos, muito embora não tenha sido indicada no requerimento de interposição do recurso –, tal como se prevê no artigo 78º-A, n.º 1, da mesma Lei.
Ainda que o ora reclamante tivesse indicado no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade “a alínea do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual o recurso é interposto”, “a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie” e “a norma ou o princípio constitucional que se considera violado”
(requisitos do requerimento de interposição do recurso), o recurso não poderia ser admitido, por falta de pressupostos processuais.
Com efeito, e como se ponderou na decisão sumária impugnada, o ora reclamante não suscitou, durante o processo, de forma clara e precisa – isto é, não suscitou de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida –, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que pudesse servir de base a um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Por isso se considerou que seria inútil ordenar a notificação do ora reclamante, nos termos do artigo 75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional, para completar o requerimento de interposição do recurso. Ao ora reclamante seria porventura possível indicar os elementos em falta no requerimento, mas não lhe seria certamente possível suprir a falta dos pressupostos processuais típicos do recurso interposto; isto é, no caso, não lhe seria possível suprir a falta de invocação, durante o processo, da inconstitucionalidade da norma em que se fundamentou a decisão recorrida.
6. A reclamação apresentada apenas vem confirmar o bem fundado da decisão sumária proferida nos autos.
Diz o reclamante que pretendia interpor o presente recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC para apreciação da
“inconstitucionalidade da norma do n.º 1º do artigo 23° do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 438/91, de 9 de Novembro”.
A norma do n.º 1º do artigo 23° do Código das Expropriações não foi porém aplicada na decisão aqui recorrida – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Março de 2004, que não admitiu o recurso interposto pelo ora reclamante do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora.
A decisão aqui recorrida aplicou apenas a norma do Código das Expropriações segundo a qual não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação que fixa o montante da indemnização devida.
Ora, quanto a tal norma, não foi invocada pelo ora reclamante qualquer questão de inconstitucionalidade, sendo certo que – como se disse na decisão sumária reclamada –, face à jurisprudência deste Tribunal, não poderia considerar-se o recorrente dispensado do ónus de a suscitar perante o tribunal recorrido.
7. Conclui-se assim que a decisão do Tribunal Constitucional foi proferida com total observância das regras legais aplicáveis, porquanto, em síntese:
– se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso, o relator, no Tribunal Constitucional, profere decisão sumária (artigo 78º-A, n.º
1, da Lei do Tribunal Constitucional);
– se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos nos n.ºs 1 a 4 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, o relator, no Tribunal Constitucional, convidará o requerente a prestar essa indicação (n.ºs 6 e 5 do artigo 75º-A da mesma Lei);
– não é lícito realizar no processo actos inúteis (artigo 137º do Código de Processo Civil);
– no caso dos autos é manifesto que o recorrente não tinha suscitado perante o tribunal a quo qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de servir de base ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a única alínea susceptível de ser invocada no caso dos autos, muito embora não tenha sido indicada no requerimento de interposição do recurso.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido. III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada, que não tomou conhecimento do recurso.
Sem custas, por o reclamante delas estar isento.
Lisboa, 13 de Julho de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos