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Proc. nº 426/2003
2ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal Central Administrativo, em que figura como recorrente a Assembleia Municipal de Matosinhos e como recorrida A., é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a norma dos nºs 4 e 7 do artigo 36º do Anexo I ao Regulamento e Tabelas de Taxas e Licenças do Município de Matosinhos, publicado no Aviso nº 1610/99, D.R., II Série, nº 61, Apêndice 31, de 13 de Março de 1999. A recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1ª — O Regulamento e as suas normas são plenamente válidas e, por isso, inquestionavelmente aplicáveis;
2ª — Actualmente, o subsolo é considerado como um espaço autónomo do domínio público e é objecto próprio de incidência tributária, de acordo com o preceituado na nova Lei das Finanças Locais;
3ª — Não podem invocar-se como parâmetros de uma alegada desproporcionalidade os montantes primitivamente fixados, pois a taxa anteriormente prevista era uma mera taxa moderadora, destinada a disciplinar o uso do domínio público municipal: não se tratava de uma taxa em sentido próprio
4ª — Actualmente, o tributo em apreço reveste a natureza de uma verdadeira taxa;
5ª — A concepção constitucional de taxa pressupõe a necessidade de existência de uma relação sinalagmática, a desnecessidade de uma exacta equivalência económica, a aferição do respectivo montante em função não só do custo mas igualmente do grau de utilidade prestada e a exigência de uma não manifesta desproporcionalidade na sua fixação;
6ª — A taxa em apreço tem natureza sinalagmática, visto que é devida em função de uma utilização individualizável de um bem do domínio público municipal;
7ª — A taxa aplicada à situação sub judicio é proporcional e todos os critérios utilizados para a sua fixação e ponderação são perfeitamente legítimos;
8ª — A proporção é demonstrada pela análise da equação custo / benefício: a disponibilização do subsolo municipal representa um elevado custo para a autarquia e, ao mesmo tempo, um assinalável ganho para os utilizadores, na medida em que evita outras utilizações tão ou mais dispendiosas;
9ª — As normas regulamentares são, portanto, de uma validade irrepreensível, prevendo verdadeiras taxas em estrita obediência ao cânon da proporcionalidade e demais requisitos;
10ª — As normas contidas nos n.ºs 4 e 7 do art. 36º do Anexo I do Regulamento não infringem, de forma alguma, a Constituição da República, pelo que a decisão de que se recorre deve ser revogada, com todas as consequências legais;
11ª — O Tribunal Constitucional decidiu julgar não inconstitucionais as normas constantes nos n.ºs 4 e 7 do art. 36º do Anexo I do Regulamento com a Constituição da República, conforme os doutos Acórdãos proferidos a 14.07.2003 nos processos n.ºs 241/02 e 246/02.
A recorrida contra-alegou, propugnando a inconstitucionalidade da norma desaplicada.
Cumpre apreciar.
2. A questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade foi recentemente apreciada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 365/2003 (D.R., II Série, de 23 de Outubro de 2003), ao qual se seguiu o Acórdão nº 366/2003, de 14 de Julho (www.tribunalconstitucional.pt). Neste Acórdão, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma desaplicada nos presentes autos. A recorrente apresentou, porém, um parecer, no qual se sustenta a inconstitucionalidade da norma em apreciação, invocando, para além de fundamentos já invocados nos anteriores Acórdãos, os princípios da confiança e da boa fé (enquanto “vectores” do princípio da segurança jurídica), princípios com os quais o Tribunal Constitucional não confrontou directamente a norma em causa no Acórdão nº 365/2003. A argumentação da recorrida invoca o carácter “radical” da alteração legislativa operada pela norma em apreciação, bem como a sua “impossibilidade de continuar a actividade”, por força das modificações verificadas. No Acórdão nº 365/2003, o Tribunal Constitucional considerou que a norma impugnada não viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Quanto a este último princípio, o Tribunal ponderou o princípio da adequação, o princípio da exigibilidade e o princípio da justa medida, para concluir pela não violação de qualquer desses princípios, tendo sido dito, nomeadamente, que não se provava uma desproporção intolerável entre a quantia a pagar e “por exemplo, o montante que o particular teria de desembolsar se recorresse a outro meio alternativo de circulação, ou se tivesse de pagar a utilização de subsolo sob propriedade privada” e considerado que o Tribunal não tinha elementos que lhe permitissem concluir “pelo manifesto desajustamento entre o montante a pagar a título de taxa pela utilização do subsolo do domínio público municipal e o valor que o particular retira dessa utilização”. Entendeu também o Tribunal que não bastava a mera circunstância do aumento considerável da taxa para poder concluir-se pela violação da proporcionalidade. Considerando, agora, o princípio da segurança jurídica, entende o Tribunal que este, diferentemente do que parece estar implicado no entendimento da recorrida, não confere sem mais, por si, aos particulares um direito à manutenção do quadro legal de um dado momento, alicerçado na protecção de expectativas. De um tal princípio, apenas, decorre uma protecção de confiança, sempre com base em critérios de proporcionalidade. Assim, não viola o princípio da confiança a aplicação imediata a situações já constituídas, e que persistem, de alterações legislativas que se possam justificar por ideias de adequação e de exigibilidade
(cf., exemplificativamente, os Acórdãos nº 24/98 – D.R., II Série, de 19 de Fevereiro de 1998, e nº 237/98 – D.R., II Série, de 17 de Junho de 1998, que, apreciando a conformidade à Constituição de normas alegadamente lesivas de expectativas dos sujeitos, concluíram pela não violação do princípio da confiança, e nº 37/96 – D.R., II Série, de 3 de Maio de 1996, que apreciou uma norma fiscal retroactiva, concluindo pela violação do princípio da confiança). Ora as exigências de adequação e proporcionalidade já foram analisadas, nos termos referidos, no Acórdão nº 356/2003. Por outro lado, a autorização concedida para o exercício de uma dada actividade, que afecte a propriedade pública e bens vários que com ela se conexionem, nomeadamente bens ambientais, pressupõe, naturalmente, o cumprimento das exigências legais, que podem, evidentemente, sofrer alterações ou evoluções. Tais exigências reportam-se necessariamente aos encargos ambientais (actuais e previsíveis em face de actividades perigosas) que decorrem para as entidades públicas licenciadoras dessas actividades, presumindo-se, por isso, que se justificam pelo interesse público e sejam exigíveis nessa medida. No caso concreto, não se pode concluir, por não ter sido demonstrado num plano objectivo e na perspectiva do interesse público, que não seja divisável fundamento relevante para a solução consagrada, tal como resulta do aresto citado, pelo que não procede a invocada violação do princípio da segurança jurídica (princípio da confiança e princípio da boa fé). Por último, a alegada “impossibilidade de continuação da actividade”, por não ter sido provada anteriormente, constitui matéria cuja apreciação não cabe no
âmbito dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional. E a relevância de qualquer argumento a partir daí teria de se confrontar sempre com a referida ponderação de proporcionalidade em face do interesse público. Assim, remete-se, no mais, para a fundamentação do Acórdão nº 365/2003, concluindo-se pela não inconstitucionalidade da norma desaplicada nos presentes autos.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma dos nºs 4 e 7 do artigo 36º do Anexo I ao Regulamento e Tabelas de Taxas e Licenças do Município de Matosinhos, publicado no Aviso nº
1610/99, D.R., II Série, nº 61, Apêndice 31, de 13 de Março de 1999, concedendo provimento ao recurso e revogando a decisão recorrida que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 19 de Maio de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos